sexta-feira, 17 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4202: Dia 17 de Abril de 1972. A emboscada do Quirafo, 37 anos depois (Mário Migueis)

1. Ainda a extensa mensagem do dia 12 de Abril de 2009, nosso camarada Mário Migueis, reparem que já vamos no terceiro poste, desta feita com uma mensagem não enviada ao Paulo Santiago.

O fim é dramático. Um homem só, entregue aos seus sentimentos de revolta e impotência.

Hoje perguntamos, quem mandou fazer as guerra e porquê. Que fomos nós? Peões manejados em nome da defesa de um Império desajustado à realidade do País e dos tempos. Mortos, feridos, estropiados, para quê?

Foi preciso derrubar o regime para acabar com a guerra. Descolonização precipitada, face à desorganização própria de um país em mudança.
As mortes continuaram nos países palcos da guerra. Não foram perdoados aqueles que se sentindo portugueses, lutaram ao nosso lado. Foram abandonados à sua sorte, e nós, ainda que sãos e salvos na nossa terra, fomos esquecidos, pior ignorados.

Passados tantos anos, quanta dor ainda persiste nos ex-combatentes e seus familiares.
CV


2. Continuação da mensagem de Mário Migueis da Silva, iniciada no poste 4194 (1)

Carlos Vinhal:

Peço-te desculpa, mas, ao mexer para aqui nos meus canhenhos, já após ter concluído o texto acima (1), fui encontrar o print de uma mensagem inacabada (escrita entre Outubro e Novembro/2006 – o print não tem data), a dirigir ao Paulo Santiago, via e-mail, mas que, devido àquele problema de saúde a que atrás aludi, não cheguei a expedir.

Como sei que o Paulo é homem para, uma vez mais, me perdoar, até porque, curiosamente, fica aqui comprovado que eu poderia tê-lo ajudado a desmontar aquela confusão de nomes do desaparecido na emboscada e não o fiz, vou pôr à tua consideração a publicação de parte da inédita mensagem (desde que o Paulo aprove, claro…)

Ora, aí vai:

Caro Paulo Santiago:

Acabo de constatar que tomaste a liberdade de providenciar a publicação da minha msg no blogue do Luís Graça. Não estava a contar que o fizesses, caso contrário não teria falado das eventuais “imprecisões da emboscada do Quirafo”, já que tal poderia levar os nossos amigos tertulianos a pensarem que a história estava muito mal contadinha. E, na verdade, não é assim. O teu relato corresponde ao que basicamente se passou e as imprecisões a que quis aludir são meramente de pormenor . Não te vou falar ainda em concrecto sobre elas, como me pedes, porque, como te disse anteriormente, quero, antes disso, trocar impressões com, pelo menos, um ou dois elementos da companhia do Lourenço, o que espero poder fazer brevemente. É que há alguns pormenores a que fazes referência que me surpreendem e, em relação aos quais, acabei, eu próprio, por ficar com dúvidas. Por exemplo (apenas um, por agora), nunca me constou, e considero tal inverosímil, que, em Madina Bucô, o Armandino tivesse sido avisado de movimentos suspeitos para os lados do Quirafo na véspera (domingo), conforme te deram a conhecer (suponho que durante as visitas que, entretanto, fizeste à Guiné). Tu próprio, aliás, te mostraste incrédulo (“qual a razão que levou o Armandino a não acreditar?...”). E, por outro lado, nem estou a imaginar o Armandino, com avisos ou sem eles, a obrigar civis e milícias a entrarem para a GMC. Como sabes, a malta da Companhia tinha pouco mais de três meses no Saltinho , não tendo qualquer ascendente sobre as populações locais. Para além do mais, seria, no mínimo, absurdo que, perante um pequeno sinal de perigo que fosse, o Armandino e o Santos permitissem que fosse tudo para ali ao monte dentro da GMC, como passarinhos indefesos numa gaiola. (…)

A propósito de mentiras inocentes, onde é que o Cosme, esse desinformador do caraças (um abraço para ele!), foi descobrir que o desaparecido em combate se chamava Ferreira?!... O desaparecido chamava-se e chama-se BATISTA, aliás, ANTÓNIO DA SILVA BATISTA, aliás, MORTO-VIVO, que é assim que, ainda hoje, é conhecido na terra em que foi sepultado (salvo seja!...), e mora aqui para os lados do Porto. Falei com um grupo de “velhos camaradas da sueca” de Pedras Rubras – aquela malta que, em dias de sol, se diverte a bater umas cartitas ao ar livre – os quais me remeteram para a mercearia lá do sítio, onde a filha do dono me apresentou ao pai, que me disse conhecer bem o Batista (até assistiu ao seu funeral, que passou mesmo ao pé da porta do estabelecimento!...) e me remeteu, por sua vez ( anunciando-me prévia e educadamente por telefone), para o farmacêutico, que ficava para os lados do estabelecimento prisional de Stª Cruz do Bispo, que me passou para o barbeiro ao lado (este com origens no interior montanhoso, mas casado em Santa Cruz já vai um “rôr” de anos), que logo incumbiu um amigo, que passava ao pé da porta, e que, por sinal, era antigo guarda prisional do hotel em frente, de me ir indicar o café do filho do Batista, aquele que morreu na tropa e depois apareceu na terra.

(“Tás a ver a trabalhêra?!...)*. Como, com tanto “passa a palavra”, se fez entretanto noite e me recomendaram ao ouvido algum cuidado, àquelas horas, ali pelas imediações da prisão – “algumas visitas, sabe!”, explicava em surdina o meu guia de circunstância(?!) -, regressei à base sem ter chegado ao Batista. Mas, um dia destes, com mais vagar, vou procurá-lo de novo, para que ele diga também de sua justiça.

Devo ter ainda no sótão, lá no meu baú da guerra, as notícias do regresso dele, após o 25 de Abril. Achas que seria interessante a sua publicação no blogue? Devo ter também, pelo menos, cópia do croquis da emboscada. Fotografias não há, que ninguém teve a ousadia… Recordo-me de que, naquele dia, na messe, só eu consegui almoçar. Três da tarde, cheio de fome, cansado de esperar que aparecesse mais alguém, fui-me servir ao panelão abandonado na cozinha. Era jardineira, nunca mais me esqueci, dadas as circunstâncias. Enquanto comia, o aroma do guisado misturava-se com o cheio horrível dos corpos queimados, que vinha pelas portas abertas adentro. Um cheiro enjoativo, acre!... Contudo, saciei a fome descontraidamente. Com a maior naturalidade. O sentido da sobrevivência é realmente extraordinário!... Ao jantar, o enfesado transmontano do bar serviu-me a correr e pirou-se, logo a seguir, para o abrigo: o tipo já sabia que ninguém mais iria aparecer. E, assim foi. Passei toda a noite sozinho, a escrever, enquanto, a cinco metros de distância, na parada, trabalhavam os cangalheiros (chegados, ao anoitecer, penso que de Bissau) naquela infinidade de urnas. A cada martelada, eu recordava já com saudade os infortunados Armandino e Francisco Santos (aqueles que, como sabes, me eram mais próximos) e ia escrevendo “à toa”, para ninguém:



“Vinte e duas horas. Do dia mais triste da minha vida.

Aqui, na desoladora messe de sargentos, apenas eu! Nem o moço do bar ficou. Todos recolheram à solidão dos abrigos, possivelmente para meditar.

Lá fora, um silêncio de morte! Um silêncio sepulcral de que faz parte o bater seco e cadenciado de um martelar, que tende a rebentar-me os tímpanos e o sistema nervoso! Já o não suporto mais.

Corro para a porta, a fechá-la. E não posso evitar um fugidio olhar! Um fugidio olhar suficiente para que sinta o coração esfrangalhar-se-me e este terrível nó seco na garganta, que me comprime a alma: o cangalheiro, rodeado de urnas por todo o lado, trabalha. Sereno. Indiferente.

A certa altura, parece-me ouvir alguém assobiar baixinho ou a trautear uma qualquer cantilena!... Volto a correr para a porta, enraivecido...Nada!... O cangalheiro prossegue no seu trabalho. Com a mesma serenidade, a mesma indiferença. E o sentimento de revolta apodera-se de mim com mais intensidade! Sinto vontade de lhe cair em cima. De o agredir, de lhe dar dois murros!...

Mas, contenho-me. Volto covardemente para o meu canto, como um cão lazarento com o rabo entre as pernas, e ponho-me a pensar. A tentar reflectir sobre o que se passa comigo e com a cena macabra que me envolve.

Vêm-me à cabeça as lágrimas, os abraços e os lenços brancos das despedidas, lá no cais de não sei quantos, em Lisboa. Meu Deus!… , e os pais?!... Que será dos pobres pais, coitados!, quando souberem da triste nova?!... Eles que, cada dia, antes da deita, caem de joelhos aos pés de Cristo, da Virgem, do Anjo da Guarda e de todos os santos protectores, a pedirem a salvação dos seus filhinhos?!...

“Era tão bom, tão alegre, tão cheio de vida!...”, é isso que vos espera, camaradas, lá no outro lado do mundo: o choro, o lamento, a recordação. E nós, por cá,…

…Nós, por cá, todos bem, graças a Deus!... Beijos para os manos, tios e priminhos. Para todos, votos de um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de prosperidade! Adeus, até ao meu regresso!

Saltinho, 17 de Abril de 1972
Mário Migueis Ferreira da Silva

* - Observação actual do autor àquela “trabalhêra” toda, confessada ao Paulo Santiago: o Álvaro Basto, fino!, pegou numa lista telefónica e resolveu o problema da localização do Batista num minuto. Como diria o saudoso Fernando Pessa: “E esta, heim?!...

__________



Nota de CV:

(1) Ver poste de 17 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4200: Ainda e sempre a tragédia do Quirafo. Sortes distintas para António Batista e António Ferreira (Mário Migueis / Paulo Santiago)

3 comentários:

Luís Graça disse...

E um homem com tão grane sensibilidade humana, com enorme talento para a escrita, como este, que tem pérolas destas guardadas no bau do sótão, um homem do Pel Rec, um 'cão rafeiro', que foi capaz de escrever uma peça de antologia como esta, há 37 anos, a quente, ou no rescaldo da tragédia do Quirafo, solitário no bar do Saltinho, enquanto lá fora o cangalheiro ajeita as urnas em que serão despachos os restos mortais do Armadino, do Santos, do Ferreira e dos restantes camaradas mortos da terrível emboscada que marcou oara sempre o Saltinho e a CCAÇ 3490..., este homem andou 'escondido' este tempo todo... Tiro-lhe o quico, em homenagem, em sentida continência, a ele e aos camaradas da CCAÇ 3490 por quem ele mostra este sentimento pungente de impotência e compaixão...

LG

Anónimo disse...

É bem verdade o que dizes Luís e que tão bem traduziste em palavras.
Numa situação daquelas...perdoem-me, mas qual Lobo Antunes, qual quê. Este "nosso" Ferreira da Silva, é soberbo.
Ab
Jorge Picado

Anónimo disse...

Caro Migueis

Não sendo um "expert" da escrita, ao ler o inédito,só tenho que acrescentar ao meu comentário no poste 4194,que realmente e a meu ver "cavalgas(te) e domas(te)" a prosa como poucos

Um abraço
Luis Faria