sábado, 18 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4207: In Memoriam (20): Para o António Ferreira e demais camaradas mortos no Quirafo (Juvenal Amado)

1. Mensagem do Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74:


Caros Luís, Carlos,Vírginio e restante Tabanca Grande:

Não vou esconder que este texto é motivado pelo que senti, ouvi e que presenciei, no Saltinho após a tragédia [de Quirafo, em 17 de Abril de 1972].

Efectivamente eu estive no Saltinho, ainda a tempo de ver a caserna abrigo, quase transformada em Santuário. As camas todas feitas de branco sem uma marca, que alguém lá podesse ter deixado.

No entanto, para além de dedicar à mulher (foto à direita) do nosso camarada Ferreira (foto à esquerda), gostaria de o dedicar também a todos que deixaram os seus sonhos naquelas paragens.

Sem mais um abraço

Juvenal Amado

2. SÓ DEUS TEM OS QUE MAIS GOSTA
por Juvenal Amado


O vazio que ficou.
A dor que nos atingiu, vai transformar-se em ausência
e mais tarde saudade.
O calor o suor, cheiro adocicado do sangue e carne queimada
não nos largará mais.
As bocas abertas falam, mas ninguém ouve.
Os gritos estão presos na garganta,
as lágrimas ameaçam soltar-se e cair em cascatas,
abrindo sulcos entre o pó acumulado nos rostos.
Se pudéssemos,
voltaríamos atrás uns breves minutos,
alteraríamos o rumo da história.
O calor que nunca nos dá descanso.
O que não daríamos para poder escolher,
escolhermos outro caminho,
não fazermos da mesma forma.
As mãos estão negras em volta dos punhos das armas.
O silêncio é opressivo,
de nada vale tentar ouvir se até a natureza se calou
perante a violência, de que só o homem é capaz.
Ali jazem sonhos anseios futuros aguardados.
As últimas cartas ainda queimam no bolso,
não vai haver resposta.
Os rostos jovens nas fotos nunca vão envelhecer.
O tempo passará para todos,
menos para quem está naquelas fotos.
O que somos será sempre reflexo das nossas vivências passadas?
Há quem defenda que é um CARMA.
Viemos completar com a passagem por esta vida,
mais um elo para a nossa eternidade
ou vida melhor noutra dimensão.
Aquele é o filho de...
Marido de...
O pai de...

Alguém escreveu que o que separa da Paz e da Guerra são os enterros.
Em Paz os filhos enterram os pais...
Em Guerra os pais enterram os filhos...
Invertem-se assim os valores
tidos como certos pela ordem natural das coisas.
Como diz a canção «Só Deus tem os que mais gosta».
Que este pensamento minimize a dor de todos
que viram partir os seus na flor da idade.

Juvenal Amado



[Fixação / revisão de texto: L.G.]

__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior desta série > 18 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4205: In Memoriam (19): António Ferreira, 1.º Cabo TRMS da CCAÇ 3490, morto em combate no dia 17 de Abril de 1972 (Cátia Félix)

1 comentário:

Luís Graça disse...

A todos os camaradas e amigos que perderam alguém querido, no contexto ou não da guerra colonial, e a propósito de "luto": a palavra quer dizer isso mesmo, "dor pela perda de alguém que nos é/era querido" (mas também por animal de estimação, ou um objecto que tem um grande simbolismo, carga afectiva, para nós: por exemplo, a casa da infância)... "Fazer o luto" é literalmente passar pela dor, para além da dor...

Em condições normais, fazemos (quase todos nós) esse processo de luto, que é doloroso, mas que temos de fazer...Há o suporte social (o apoio da família e dos amigos, dos vizinhos, da comunidade) é fundamental... Mas também há "terapias" que nos podem ajudar: umas delas é a "blogoterapia" que utilizamos aqui, no nosso blogue.

Verbalizamos, exteriorizamos, partilhamos os nossos sentimentos, contamos e recontamos as nossas histórias de dor e de luto, sentimos as palavras, dizemo-las em voz alta (ou pomo-las em letra de forma)...

Obrigado ao Juvenal Amado por este belíssimo texto, que deve ser lido em voz alta... Faz-nos bem, faz bem todos os camaradas e amigos que têm (ou tiveram) dificuldade em "fazer o luto", pela perda de alguém, na guerra ou noutro contexto...

Aconselho a visita uma sítio na Net, que conheço há anos, e que foi criado para dar apoio aos pais que perderam os seus filhos...

A NOSSA ÂNCORA - Apoio a pais em luto

http://www.anossaancora.org/

Quem são as pessoas que estão por detrás desta iniciativa ? Pais que perderam os seus filhos:

"O número vertiginosamente crescente e assustador de jovens que anualmente perdem a vida no nosso país (cerca de 5.000 dos 0 aos 30 anos), por razões de ordem vária, deixa as famílias que sofrem tal perda totalmente destroçadas" (...)

Vale a pena fazer uma visita a este sítio e explorar os recursos que disponibiliza...