domingo, 20 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4978: Os Nossos Enfermeiros (7): Excerto do Diário de um Enfermeiro (José Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira (*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 17 de Setembro de 2009:

Carlos
Aquele abraço
Na foto que ilustras o poste do Zé Belo sobre os enfermeiros, eu pareço mais um guerrilheiro que um Enfermeiro. Como sabes, eu logo no principio da Comissão decidi não usar arma e ser apenas Enfermeiro. Aquela foto é uma montagem para brincadeira. Gostava que no mínimo registasses essa informação na legenda da foto.

Sobre o mesmo tema, junto um texto e três fotos:
Uma do Aliu Baldé, tirada de um quadro que a familia me mostrou em 2008; outra da familia da Djobo Ansato, onde se vê a "Maria" (de cordão ao pescoço) e uma terceira do Braima Cassamá, guerrilheiro do PAICG que conheci em 2008, e que participou no ataque que descrevo no meu Diário. Disse-me ele que foi dos que entrou dentro do arame e teve de fugir, rapidamente.

Abraço fraterno
José Teixeira

Aliu Baldé
Foto editada por CV


Família de Djobo Ansato

Nesta foto Braima Cassamá, ex-combatente do PAIGC

Fotos: © José Teixeira (2009). Direitos reservados.


Os Nossos Enfermeiros
José Teixeira

O José Belo serviu-se do nosso blogue para me conceder o mais saboroso louvor pelo trabalho que desenvolvi como enfermeiro, durante a Comissão, na qual ele foi o meu Comandante de Grupo.

Este louvor é extensível a todos os camaradas Enfermeiros que vivenciaram a guerra colonial, muito em especial ao António Lemos e ao Jorge Catarino, nossos companheiros de jornada, os quais viveram situações bem mais difíceis.

Na realidade, aos Enfermeiros, como afirma o Belo, eram-lhe reservadas missões bem diferentes da que lhes estava atribuída.

Fui o irmão mais velho para alguns. Enviei dois camaradas para Lisboa, ao escrever ao governador a expor a sua situação. Um tinha um irmão que falecera em combate em Angola. O outro, o seu irmão morrera ali mesmo ao lado no desastre de Cheche no Rio Corubal. Estavam os dois na Guiné.

Ouvi muitos desabafos: Era o álcool em excesso que por vezes deixava libertar problemas mais ou menos graves; era a carta da namorada/esposa que não chegava; era a vontade de ir às meninas e o medo de apanhar uma doença venérea, ou... o receio de não se sair bem pela primeira vez; era o medo de morrer na guerra; era a dor que aparecia, provocada pelo cansaço físico e psicológico que o ia matar... era... era...

Fui o conselheiro procurado para resolver problemas de relacionamento entre marido na Guiné e esposa no Barreiro.

Li cartas de namoradas e família. Escrevi cartas a namoradas e a madrinhas de guerra.

Escrevi carta aos pais da possível namorada arranjada em tempo de guerra, a pedir autorização para... deixar a filha namorar à porta de casa, quando ele regressasse da Guiné.

E os dramas dos feridos que se viam estropiados; dos feridos que víamos partir sem lhes poder valer!

Do Capitão, com um estilhaço numa perna que agarrado à foto da bebé sua filhinha chorava, não de dores, mas de medo de não a voltar a ver!

Do Miguel que ficou sem uma perna, agarrado à foto da noiva a quem escrevia diariamente e de quem recebia toneladas de cartas, gritava:

- Já não vou casar, ela assim não me quer! - Enquanto eu me esforçava por reduzir a hemorragia e lhe salvar a vida.

Afinal casou e vivem felizes.

Das mães que nos traziam os seus filhotes cheios de febre. O Enfermeiro foi a esperança e tantas vezes a salvação para essas crianças.

Daquela mãe com as nádegas crivadas de estilhaços que queria morrer e eu não entendia a razão... Vira a sua bébé morrer carbonizada na morança incendiada pela mesma granada que a atirou ao chão e a imobilizou.

Os camaradas que procuravam formas de fugir às saídas para o mato, usando artimanhas bem urdidas. Umas vezes com sorte, outras azaradas, sobretudo os abusivamente repetentes.

Sem pretender vangloriar-me, mas sim, enriquecer o seu testemunho com situações reais que confirmam o que ele escreveu acerca das acções dos enfermeiros, vou servir-me mais uma vez do meu "Diário":

Dezembro,1968 / Mampatá /29

A Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras "bajudas", como a Fátma, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança não conseguia compreender a sua razão de ser. Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua morança e a conversa virou para os feridos de guerra, as doenças na população e a acção dos enfermeiros.

Fiquei espantado ao ouvi-la dizer:

- No último ataque dos bandidos eu vi o “Tissera” correr pela Tabanca, debaixo de fogo, perguntar à gente se havia feridos. Eu nesse dia fiquei muito contente com ”fermero” . Tissera é amigo de Africano.

Para meu espanto verifico que foi a partir do ataque que sofremos em 3 de Novembro que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !.

Indo um pouco mais atrás no “Diário” tinha escrito o seguinte:

Novembro, 1968 / Mampatá /3

O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá", pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa, para buscar a alimentação junto à cozinha, tentando entrar em Mampatá...

... Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa valentia e à sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva, que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar, quando já estavam dentro do arame.

Onze tabancas ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN, contava ter muito que fazer com feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém esperava tal surpresa, os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro, apenas 2 sacos de soro.

Ainda debaixo de fogo, saí do abrigo onde me protegera e corri pela Tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista, susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.


Não sei porque razão reagi desta maneira, mas aconteceu…

Impulso natural de medo?

Sentido de missão?

Não sei...

Impulso de heroísmo para agarrar uma medalha não foi de certeza.

No entanto foi bom ter acontecido, por duas razões; primeiro pude ver o chefe de tabanca Aliu Baldé, falecido uns anos depois por doença natural, a quem presto a minha homenagem, de morteiro sessenta em punho, com dois milícias carregados com cunhetes de granadas, de ouvido atento a localizar as rajadas e as saídas do adversário e com duas ou três morteiradas bem dirigidas, os calar. Correr a outro ponto da tabanca, sempre com os dois milícias atrás e repetir a dose. Como fiquei a admirar aquele homem!

A outra razão foi o de no fim da contenda me sentir feliz pela forma estranha como agi. Agora sim, aos saltos e gritos cantava vitória. Não houvera mortes nem feridos.

Em 2008 fui a Mampatá de visita, matar saudades. A Djobo estava ausente em Cumbidjá, pelo que não tive o prazer de a ver, mas a sua família ao saber da minha presença, apresentou-se. Vieram ter comigo os velhos e os novos. Aproximaram-se a medo. Um disse-me, a Djobo está no Cumbidjá, nós somos a sua família. Houve ronco e... a foto da família.

Obrigado José Belo por te lembrares de mim e deste modo me ajudares a viver de novo estes momentos.

Zé Teixeira
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4965: Os Nossos Enfermeiros (6): Os Nossos Anjos da Guarda (Joseph Belo)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (36): Mataram o futuro (José Teixeira)

8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4920: Os nossos médicos (5): Um grande homem, militar, clínico e matosinhense que me marcou, o Dr. Azevedo Franco (José Teixeira)

5 comentários:

Anónimo disse...

Caríssimo Maioral! Nem sonhas o trabalho que dá o enviar este comentário do local onde me encontro.Via satélite para a minha família sueca e reenviado pela minha mulher para ti.Mas depois de ver a tua foto todo "armadilhado",tenho que recomendar-te cuidado. O Silvester Stallone está a ficar velhote,e os gajos de Holliwood andam á procura de um substituto para o "Rambo". Um abraco do tamanho do.....Alviela! José Belo.

Zé Teixeira disse...

Amigão.O Carlos Vinhal já corrigiu a legenda, pois como sabes, desde que chegamos a Aldeia Formosa, deixei de usar a G3. Aquela foto é o resultado de uma brincadeira, enquanto esperávamos que tu chegasses para irmos fazer um patrulhamento até Caúr - Empada.
Fico feliz por saber que estás bem e . . .espirituoso.
Abraço do tamanho do. . . O Alviela é demasiado pequeno, talvez do Rio de buba.

António Matos disse...

Caro José Teixeira, julgo que a foto em apreciação é a constante do post 4965, é ?
Nesse caso, não posso deixar de me reguzijar com a tua opção de não mais pegares em armas, primeiro porque a G3 não sendo municiada por fita, levou-me a crer que o "cachecol" seria para contrabalançar o peso dos carregadores, seria ?
Em segundo lugar porque julgo que passarias um mau bocado se tivesses tido necessidade imperiosa de ires a um WC pois bem te borravas todo antes de te desempeçares daquela cangalhada toda !!!
Atenta portanto nas palavras sábias do José Belo e ... o Stallone que se cuide !
Um abraço,
António Matos

Zé Teixeira disse...

Caro António Matos. Parece que foi opção do Chefe de Tabanca mor. Talvez lhe assente melhor - o Régulo Luís, colocar aquela foto minha para chamar bem à atençao de todos os atabancados de que os enfermeiros, além da bolsa de enfermagem, também levavam a G3 e eventualmente outro armamento, isto é; iam aonde os outros iam. Eu também ia, mas desarmado. A foto, não passa de uma brincadeira. Uma mistura de G3 com HK, só faltam as granadas do 60.
De qualquer modo, obrigado pelo conselho. Da próxima vez terei mais cuidado, para não correr riscos e sobretudo não chamar as atenções dos caça talentos eh ! eh!
Abraço fraterno
Zé Teixeira

Anónimo disse...

Olha lá "Maioral-fremêro"! O Alviela talvez seja um rio pequenino,mas está bem próximo do coracao porque......é NOSSO! Aquele abraco do José Belo.