quarta-feira, 31 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


1. Mensagem de José Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 25 de Março de 2010:

Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais um pouco do meu passeio pela Mata dos Madeiros.
A Páscoa de 1971 deixou-me marcas bem vivas. Tenho pena, sim, de no meu álbum de recordações não haver fotos alusivas aos acontecimentos desse dia.
No contexto da história também uso algum palavreadao que, ao tempo, era tabú nos Açores. A intenção é relatar o que então se passou.

Um abraço amigo para ti e para todos os camaradas,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (16)
Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


Para os militares da CCaç 3327 a Páscoa, a festa religiosa mais importante do calendário litúrgico do povo açoriano, passada na Mata dos Madeiros foi diferente. Ali, no meio do mato, o cordeiro pascal seria protagonizado pelo Furriel Miliciano Fernando Pedro Ramos da Silva, que passaria à classe de sargentos milicianos casados.

Não consituíu surpresa que, a meio da tarde do dia de Páscoa de 1971, o Comandante da Companhia Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, um homem culto e humanista, mandasse regressar os dois Pelotões que se encontravam no mato. Para ele, a Páscoa tinha que ser partilhada em família, e a CCaç 3327 já o era; também havia que celebrar o casamento do Furriel Miliciano Fernando Silva do 2.° GComb.

O nubente, sorridente, surgiu do mato acompanhado por muitos amigos. Vinham todos vestidos da mesma cor, com adornos de todos os gostos (fossem eles morteiros, metralhadores, granadas e outros tais), perfumados com o suor de alguns dias, e cheiinhos do pó da terra que lhes servia de leito desde que chegaram à Mata. Tanto assim era que se se passasse a unha na pele, lá ficava um sulco parecido com os regos feitos pelos arados nas terrinhas dos Açores.

José Câmara no seu belo, arejado, solarengo e confortável escritório da Mata dos Madeiros.

A messe improvisada que também foi inaugurada nesse dia, e nunca mais foi usada, cujo ar condicionado era proporcionado pelos buraquinhos entre as folhas de palmeira, serviu de palco a estas celebrações da Páscoa e Casamento por Procuração.

Depois do almoço melhorado (se bem me recordo bacalhau com grão), seguiram-se os discursos, atentamente escutados pelos presentes. O mais aguardado era, sem dúvida alguma, o do Fur Mil Fernando Silva. Estoicamente, com aquele seu ar de bébé sorridente, enfrentou a plateia formada pelos seus camaradas, e botou palavra:

- Porra, eu aqui a ração de combate e ela lá, a comer bolo!

Os camaradas maravilhados com aquele longo e corajoso discurso desataram aos vivas, aos bravos, às palmas e às palmadinhas nas costas do nubente. Ninguém queria perder esta ocasião única na história da CCaç 3327, e desejar a melhor das luas-de-mel ao feliz noivo. A emoção era forte. Em algumas caras viam-se correr algumas lágrimas.

Passada a euforia e a emoção do momento, os chefes de mesa, homens experientes nestas coisas de casamentos elegantes, abriram as portas brancas de um frigorífico a petróleo que por ali tinha sido montado. Por detrás delas estavam as dançarinas que iriam deliciar os presentes.

Aleluia!

Eram todas loirinhas, fossem elas Sagres ou Cucas. Em corridinho saltaram para as mesas improvisadas, chocando umas nas outras. O tilintar dos seus adornos espicaçavam a nossa curiosidade, e aquele "pop" do abrir a boca soava a beijos mandados com a palma da mão, e faziam crescer água na boca. Aquelas meninas evoluíam nuas, frescas, jorrando suor em bica (tal era o calor) por todos os poros. Retorciam-se em velúpias de prazer todas as vezes que lhes tocávamos, para desaparecerem por encantos, todas as vezes que as beijávamos. Eram beijos de paixão contida, sôfregos de dias sem pinga.

José Câmara: na Mata dos Madeiros o visual adaptava-se à medida do tempo ali passado

De repente todos se calaram. A realidade voltava ao presente. Na face de alguns daqueles meninos ainda rolavam algumas lágrimas rebeldes. Ali, ao nosso lado, estava a guerra.

O Fernando Silva tinha que dar continuidade à sua missão. Tinha que voltar para o desconhecido, para a mata, para a segurança nocturna afastada. Vi-o caminhar com o seu grupo.

Dizem as más-línguas do tempo, que o jovem noivo cometeu o pecado de adultério durante a noite. Não se sabe ao certo o que o levou a cometer tamanho sacrilégio.

Agarrado à sua amante de ocasião, a G-3, entre suspiros, ais e velúpias de prazer a que não era alheio a ajuda do mel deixado pelas formigas, mosquitos, e outros picantes e trepadores, o Fernando lá ía atraiçoando a sua jovem esposa, que ainda comia bolo em Lisboa, perante o olhar maroto e complacente da lua que pairava sobre a Mata dos Madeiros. O barro vermelho da Mata era testemunha silenciosa dos orgasmos prazenteiros da sua traição.

Nunca se soube, se a jovem esposa perdoou o facto de ter sido, assim, repudiada na sua noite de núpcias.

No dia 13 de Abril de 1971 escrevi uma carta à minha madrinha de guerra. Foi assim que me referi a esta história:

"Tivemos uma jantarada especial, pois houve um casamento por Procuração de um Furriel da minha Companhia. Um casamento que nós jamais poderemos esquecer... discursos... e algumas lágrimas à mistura.
Enfim, este foi o meu Domingo de Páscoa. Saudade e nada mais."


Infelizmente, e após a nossa comissão, nunca mais tive contacto com o Fernando Silva. Dele apenas sei que viveu durante alguns anos na Póvoa de Santo Adrião.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6067: (Ex)citações (53): As tropas Pára-quedistas preparavam-se para a guerra como para uma cerimónia em Parada (José da Câmara/Hoss)

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6018: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (15): Um erro de periquitos e o piar dos nossos camaradas

7 comentários:

Anónimo disse...

Caro Amigo José da Câmara

Mata dos Madeiros ! Não há duvida que o nubente teve gosto na escolheu as instalações dessa belíssima quinta para o casório!! E com loirinhas dançarinas ?? `da-se !!

Esse teu amigo Fernando era VIP na certa!E tinha cá um dom de palavra crítico e apurado como poucos!!

Quer dizer,nessa quinta por onde andaste faziam-se casórios,procissões,noitadas eram aos montes... enfim,diversão e boa -vida!!!

Um abraço
Luis Faria

José Marcelino Martins disse...

Estória encantadora!!

Sabes o nome completo do Fernando Silva? É que como estou perto da Póvoa de Santo Adrião, poderia ver se ainda por lá mora.

Manda mensagem. Vem na Lista do Vinhal.

Abraço José Martins

Anónimo disse...

Caro Amigo José Câmara

Bela descrição das festividades passadas em tão encantadoras paragens e luxuosos resortes.

Como vejo pelo comentário ao lado, de outro ilustre frequentador desses lugarejos, não tenho mais nada a gabar, desses bons momentos.

Nesse dia de Páscoa, por acaso um domingo, comemorava eu, ainda em Mansabá, também uma data marcante.
Apenas 34 aninhos. Ai que saudades...não desses tempos, subentenda-se, mas da idade...

O camarada José Martins ficou tão encantado com a estória, que nem reparou no nome completo do nubente, que está todo "escarrapachado" logo no início.
Teria sido pelo baptismo que o amigo Carlos fez ao local? MARTA em lugar de MATA?
eh,eh,eh,apanheite Carlos!

Abraços para todos e Boa Páscoa
Jorge Picado

rui esteves disse...

Olá José,
Mais uma história engraçada para recordar.
E eu que estive lá contigo, já não me lembrava que o Fernando Silva casou nesse domingo de Páscoa.
Recordo a atmosfera do almoço -- demorado, pela tarde fora, muito calor, o sol a entrar pelas frestas das folhas das palmeiras -- mas do casamento, nada !
Quero dizer: lembro-me que o Fernando Silva casou durante a nossa guerra. Só não associava o casamento ao Domingo de Páscoa na mata dos Madeiros.
Ainda bem que tens tudo isso na memória e vais contando para a gente reviver.
Grande abraço e desejo de uma boa Páscoa aí nos States, do
Rui Esteves

Hélder Valério disse...

Caro José Câmara

Simplesmente maravilhoso.
A história, a memória, o relato, tudo!
Não há dúvidas que muitas vezes a realidade ultrapassa a ficção.
Tenho a certeza que muitos jovens de hoje têm dificuldade em acreditar que se viveu assim, que as coisas se passaram assim..

Um abraço
Hélder S.

António Matos disse...

José Câmara, és um verdadeiro contador de estórias !
Excelente o relato e todo o conjunto de adereços de que te serviste para desenhares de maneira soberba, todo o cerimonial.
Dou-te os parabéns e faço votos que o Fernando Ramos da Silva ainda esteja entre nós e que dê sinais de vida deliciando-se com esta homenagem que lhe dedicas.
Um abraço,
António Matos

Anónimo disse...

Caros camaradas,

Contando com a ajuda de vários camardas, soube que o Fernando Silva faleceu no dia 1 de Janeiro de 2003.

Contactei a Sra. Celeste Silva, esposa do nosso malogrado camarada e amigo Fernando, tendo-lhe encaminhado uma cópia deste Post.

Dela recebi autorização para publicar o email com que agradeceu.

"Sr. José Câmara

Os meus cumprimentos.

Quero agradecer a sua gentileza em me enviar o artigo que escreveu sobre um dia tão especial e que de certeza também o foi para todos os camaradas do meu querido marido de tal forma que passados tantos anos ainda o recordam.

No dia em que me ligou e pelos dados que me deu, vi o artigo na internet e depois recebi o seu envelope.

Como deve calcular, fiquei muito comovida com o seu gesto e é com muita tristeza que recordo esse dia pelo facto do meu querido marido já não se encontrar entre nós, pois quis o destino que partisse cedo de mais da nossa companhia…tinha tantos projectos por concretizar e tudo acabou assim….

Como lhe disse ao telefone, tenho um filho e uma filha que me deu uma netinha neste momento com cinco anos e que é a razão do meu viver….infelizmente o meu marido não chegou a conhecê-la pois partiu no dia 1 de Janeiro de 2003 com 53 anos de idade.

Não encontro palavras para exprimir a minha gratidão e tenho a certeza que onde ele estiver certamente ficará feliz pelo facto de ser lembrado pelos antigos camaradas de guerra.

O meu agradecimento muito sincero e um grande BEM HAJA!!

Sempre ao dispor

Celeste Silva".

O Fernando viverá sempre na nossa memória.

Descansa em paz amigo!

Pelos camaradas da CCaç 3327,
José Câmara