sábado, 31 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6811: Notas de leitura (139): Contos Mandingas, de Manuel Belchior (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Estou quase a fazer uma pausa, regresso às lides aí por 10 de Agosto.
O cabaz de leituras não pára de crescer, é uma permanente tentação. Mas não posso desleixar-me mais o livro que tenho em mãos, praticamente suspenso há dois meses por afazeres profissionais.

Um abraço do
Mário



Contos Mandingas: voltar a um clássico de Manuel Belchior

por Beja Santos

Manuel Belchior foi um prestigiado funcionário colonial, tem uma vastíssima bibliografia onde Moçambique e a Guiné ocupam lugar de relevo. Em 1971 editou os seus “Contos Mandingas” (Portucalense Editora), que mereciam, tal o valor histórico-cultural e a beleza narrativa neles contidos, uma justa reedição.

O investigador justifica o seu trabalho depois de ter permanecido largos meses, entre 1967 e 1968, na região de Bafatá e Gabu, trabalhando com fulas e mandingas num inquérito etnológico. Ao fazer o inventário do material recolhido, descobriu, muito agradado, que recolhera quase uma cinquentena de contos e fábulas. O conjunto de generalidades sobre o povo mandinga ainda hoje se lê com deslumbramento. Não querendo abstrair o número de mudanças operadas nos últimos 40 anos, continua a ter a maior utilidade o que Manuel Belchior escreve sobre a distribuição dos mandingas no território da Guiné-Bissau, as suas origens, o tipo de povoamento, a sua organização familiar, social e política, a religião, a visão do trabalho, as actividades económicas e os divertimentos.

Dito resumidamente, até aos anos 70 do século passado, os núcleos principais da população mandinga distribuíam-se pelas regiões do Gabu, por Gussará, Ganadu e Badora (Bafatá) e região do Oio (Farim e BIssorã). Os mandingas pertencem ao grande ramo dos negros sudaneses, aparecem historicamente relacionados com os povos mandés, com o império de Ghana e mais tarde o império Mali. Tornaram-se na etnia preponderante até ao século XIX, quando foram derrotados pelos Fulas. Em termos de organização social, a generalidade da população dedica-se à agricultura, mas já que ter em conta os artífices (como os ferreiros, os ourives, os tintureiros e os sapateiros) os cantores e músicos e os comerciantes.

Os contos e fábulas recolhidos são um repositório impressionante da amálgama e do sincretismo cultural dos mandingas: a influência do Corão e do animismo; a influência da literatura árabe e da narrativa oral africana; a exemplaridade de justiça muçulmana, o rigor a que se deve sujeitar o comportamento do soberano justo; o prémio da fidelidade do amor; a importância do Irã, a divindade protectora dos povos animistas; a história dos clãs; o castigo da inveja e da infidelidade, entre outras manifestações.

O fabulário mandinga tem atraído muitos investigadores, nele se cruza um vasto património de narrativas morais que acabam por aparecer na generalidade das narrativas de toda as etnias. O estudo que Benjamim Pinto Bull fez às fábulas crioulas decorre deste complexo interétnico: envolve lobos que comem cabras, lebres ladinas que conversam com jagudis e crocodilos; serpentes que esperam a hora de vingança; lobos que conversam com hipopótamos, mas há também morcegos, leoas, macacos e personagens como os curandeiros.

Enfim, contos e lendas onde encontramos toda a trama da história, da língua, da educação, dos conceitos de direito e justiça deste povo. A problemática religiosa, insiste-se, tem bastante complexidade. Não só o mandinga islamizou povos pelo poder da espada como se mantém intransigente na recusa em abandonar as práticas de fundo animista (caso da circuncisão).

Quem puder, não se furte ao esplendor desta literatura que ajuda a dissipar o preconceito de que estes povos não possuem um elevado recorte literário.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6808: Notas de leitura (138): Os Tempos de Guerra De Abrantes à Guiné, de Manuel Batista Traquina (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Mário e restantes amigos

Por acaso encontrei este livro, recentemente, numa daquelas bancas de livros em segunda mão e comprei. E estou a ler.... a minha velocidade de leitura é muitíssimo menor...

Mas, realmente, estou a gostar.

Duas coisas já me chamaram a atenção.
Uma delas é o facto de o autor estar a fazer a recolha em 1967 e omitir ou ignorar completamente o facto de o território estar nessa exacta época com um 'conflito' em desenvolvimento. Dá-me para pensar que se trata de algo propositado para fazer passar a idéia de que 'não se passava nada'...
A outra coisa é a referência abundante, nos próprios contos, à figura do lobo. Tinha a idéia que esse animal não era corrente em África mas lá que aparece muitas vezes nas histórias e narrativas, isso é verdade.

Abraço
Hélder S.