terça-feira, 7 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai nas matas do Rio Biesse... (Luís Graça)



Guiné > Zona leste >Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) > Um coluna logística ao Xitole... O pessoal fazendo uma paragem na Ponte dos Fulas, destacamento do Xitole.


Foto: © Arlindo Teixeira Roda (2010) & Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Continuação da série A Minha CCAÇ 12, por Luís Graça (,foto à esquerda, ex-Fur Mil Ap Arm Pes Inf] (*).

Resumo (1):  A CCAÇ 12, composta por quadros e especialistas metropolitanos,  chegados à Guiné em finais de Maio de 1969 (CCAÇ 2590), e por soldados africanos, praticamente todos oriundos do chão fula que tinham feito a sua instrução básica e de especialidade em Contuboel, é dada como operacional, a partir de 18 de Julho de 1969, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, ficando pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5).

Durante a sua primeira comissão (1969/71), actou sobretudo no Sector L1 (Bambadinca, correspondente ao triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, mas incluindo também, a norte do Rio Geba, os regulados do Enxalé e do Cuor onde começava o famoso corredor do Morès...). A CCAÇ 12 foi uma das primeiras unidades da nova força africana, criada por Spínola.

No subsector de Galamaro (Sector L3) a CCAÇ 12 tem o seu baptismo de fogo e os seus primeiros feridos graves, a 24 de Julho de 1969, em Madina Xaquili. Nos meses seguintes, em plena época da chuva, irá ter uma intensa actividade operacional. Em Setembro, no decurso da Op Pato Rufia (assalto a uma acampamento avançado do IN na zona da Ponta do Inglês), a CCAÇ 12 irá sofrer o seu primeiro morto.

No texto a seguir relata-se a actividade operacional relativa ao mês de Agosto de 1969, donde se destaca a Op Nada Consta, com forças da CART 2339 (subunidade de quadrícula de Mansambo, pertencente ao BCAÇ 2852, 1968/70), o Pel Caç Nat 53  e tropas pára-quedistas do BCP 12 (ao serviço do COP 7, Bafatá), no decurso da qual é feito um prisioneiro, Malan Mané,  e ferido gravemente o comandante Mamadu Indjai, entre outras baixas. (**)



Agosto de 1969: Op Nada Consta, operação conjunta da CCAÇ 12 com forças pára-quedistas do BCP 12 (Galomaro), o Pel Caç Nat 53 (Bambadinca) e a CART 2339 (Mansambo)

Candamã, tabanca fula em autodefesa do regulado do Corubal, é atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de Julho. Esse brutal ataque (o PAIGC utilizou  um bigrupo e armamento pesado) surgiu na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada.

Nesta operação que se realizou, de 8 a 18 de Março último, a nível de agrupamento, estiveram empenhados 1.300 homens (incluindo milícias e carregadores civis), tendo as NT penetrado em santuários do IN, como a mata do Fiofioli

Embora desarticulado o seu dispositivo na área compreendida entre a linha geral Xime-Mansambo-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, o IN não deixaria, no entanto, de desencadear um ou dois meses depois uma série de acções de guerrilha que culminariam com um ataque, em força,  ao aquartelamento de Bambadinca, na noite de 28 de Maio de 1969.

Só no subsector de Mansambo, o IN tinha até então montado 2 emboscadas (1 com mina comandada) às NT, flagelado 5 vezes o aquartelamento de Mansambo e atacado em força o destacamento de milícias de Moricanhe (retirado a seguir). 

Desta vez (isto é, com o ataque a Candamã, a 30 de Julho),  tudo indicava que o IN se tinha instalado no regulado do Corubal, dispondo para o efeito duma cadeia de acampamentos temporários (barracas) que lhe dava ligação às suas bases mais recuadas, junto ao Rio Corubal (Galo Corubal, Mina/Fiofioli, Mangai, Ponta Luís Dias... vd. cartas do Xime, Xitole e Fulacunda).



O triângulo Bambadinca-Xime-Xitole. Pormenor do mapa do Sector L1. 

Infogravura: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados



A missão da CCAÇ 12 era, portanto, detectar o IN. Assim, a 2 de Agosto, 3 Gr Comb (1º, 3º  e 4º) voltam a Candamã para um patrulhamento ofensivo na região de Camará. Estava-se então no auge das chuvas, o que tornava muito difícil a detecção de vestígios humanos no mato. Descobriu-se, no entanto, o trilho que o IN utilizara na retirada do ataque à tabanca de Candamã, dias antes,  e que ia dar a região de Galo Corubal / Biro (Op Guita I).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada de Bambadinca-Mansambo. Eu e o Dalot, o Diniz G. Dalot, talvez o melhor condutor de GMC do mundo ou pelo menos o melhor que eu alguma vez conheci... Berliet e GMC nas mãos dele, carregadas de sacos de arroz, não ficavam atoladas na famosa estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, a menos que rebentassem debaixo de uma mina. Eu dizia que era preciso ser maluco para conduzir uma GMC. Ele ofendia-se: era o mais profissional dos nossos condutores auto... Reguila, setubalense, de apelido francês, apanhou logo no princípio da comissão, em Julho de 1969, cinco dias de detenção. (LG)

Foto: © Luís Graça (2005) / Blogue Lúís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



A 4 de Agosto, efectua-se a Op Belo Dia em que participa o 2º Cr Comb com forças da CART 2339, de Mansambo (Destacamento A),  para abertura do itinerário Mansambo-Xitole, interdito deste Novembro de 1968, altura em que uma coluna logística do BCAÇ 2852 sofrera 2 emboscadas (a primeira com mina comandada) no regresso a Bambadinca, a cerca de 2 km da Ponte dos Fulas,  tendo prosseguido com apoio aéreo. 

Na Op Belo Dia, não foram encontradas minas nem abatizes mas o IN emboscou 1 Gr Comb do Dest B (Xitole) na Ponte dos Fulas quando estava a reabastecer-se de água.

Entretanto, de 5 a 17 de Agosto, o 4º Gr Comb foi reforçar o Sector L2, sendo destacada 1 secção para Saré Gana e 2 para Sare Banda (subsector de Geba). Dias antes o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutù.

A 6 de Agosto, 2 Gr Comb levam a efeito uma batida conjugada com emboscada na região de Candamã, não tendo encontrado quaisquer vestígios (Op Gungadim). Porém a 11, numa nova batida efectuada pelo 3º Gr Comb e e Pel Rec Inf da CCS/BCAÇ 2852 detectaram-se sinais muitos recentes do IN. De regresso a Candamã, as NT foram flageladas à distância com morteiro 60 e LGFog (, Lança-granadas-foguetes), da direcção de Camará (Op Gancho).

A 12, a CCAÇ 12 realiza a Op Gancho II. E a 15, a Op Gancho III, juntamente com forças da CART 2339, para uma batida à zona de Áfia / Camará. Às cinco da manhã, aquela tabanca em autodefesa (reforçada com 1 secção de um pelotão de Mansambo) tinha sido atacada pelo mesmo grupo IN que fora a Candamã, sofrendo a população 3 mortos e 9 feridos.

Vestígios deixados pelo IN (peugadas no capim e terra remexida pelo prato-base do morteiro 82) durante um alto ou mais provavelmente no ponto de reunião, levariam entretanto as NT à localização dum acampamento, situado na mata a sul do Rio Biesse onde foram surpreendidas pelo ruído do pilão, tendo avistado alguns elementos armados na orla da bolanha. Os efectivos das NT não eram, porém, suficientes para o golpe de mão imediato e, de resto, a sua missão era apenas de reconhecimento, pelo que retiraram o mais cautelosamente possível.

Três dias depois, a 18 de Agosto, e com base no reconhecimento que se efectou à área, forças pára-quedistas fariam um heli-assalto ao acampamento em referência, numa operação conjunta do Sector L1 e COP 7 (Bafatá). As forças do COP 7 eram constituídas pela CCP 123, a 2 Gr Com, e a CCP 122,  a 1 Gr Com, aquarteladas em Galomaro. (Op Nada Consta)


Op Nada Consta: Desenrolar da acção


Enquanto as forças do Sector L1 ficavam emboscadas nas proximidades da bolanha do Rio Biesse (a leste, a CCAÇ 12 com 3 Gr Comb dispostos em semicírculo; a norte, o Pel Caç Nat 53; a oeste, forças da CART 2339, a 2 Gr Comb; e ainda  1Gr Comb da CART 2339, na estrada Mansambo-Xitole,  junto à ponte do Rio Bissari, XIME 7A5-85 ), veio a primeira vaga de pára-quedistas que foram colocados na ponta oeste da bolanha, penetrando imediatamente na espessa mata que se estende para sul.

Cinco minutos depois, é capturado um elemento IN armado de RPG-2. Sucederam-se mais duas vagas de helicópteros, transportando outros tantos Gr Comb dos páras e a mata passou a ser percorrida de norte para sul.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Interrogatório a um prisioneiro, o guerrilheiro Malan Mané. Quem preside ao interrogatório é o Alf Mil Torcato Mendonça. A foto é do Alf Mil Cardoso, e chegou-nos à mão através do ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos, de Coimbra. "Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita" (TM).

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


0 prisioneiro, Malan Mané, de seu nome, de etnia mamdinga, entretanto, não dera nenhuma informação que permitisse levar à localização de qualquer arrecadação de material ou acampamento importante. Confessou apenas que no local se encontravam cerca de 80 homens (dois bigrupos), sob o comando de Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata, e com quem os páras estabeleceriam depois contacto, fazendo 2 mortos e capturando 3 armas automáticas (***).

0 mau tempo não permitiu o bombardeamento prévio da zona na direcção N-S, pelo que o IN conseguiu fugir da zona do heli-assalto, não obstante o fogo do helicanhão [, o Lobo Mau]. Na retirada, porém, um grupo cairía numa emboscada afastada que forças da CART 2339 tinham montado no itinerário Mansambo-Xitole, próximo da ponte sobre o Rio Bissari, e em resultado da qual ficaria gravemente Mamadu Indjai (soube-se mais tarde). Houve ainda dois mortos confirmados do lado do IN.

Devido às condições atmosféricas (péssimas, segundo os relatórios), a Op Nada Consta só começaria às 9.30h, com o heliasssalto. Sempre sob mau tempo, os páras regressam a Galomaro às 16.30h do mesmo dia.

Entretanto, o  IN retirava na direcção de Biro onde os páras foram no dia seguinte, na exploração imediata das informações dadas pelo prisioneiro, Malan Mané, capturando mais material.

O material apreendido pelos páras incluiu: 

- 1 Metr Lig Degtyarev; 
- 1 LGFog RPG-2; 
- 1 Esp Aut Kalashnikov (distribuída a um elemento IN, de nome Baio); 
- 1 Pist Metr PPSH; 
- 3 cunhetes com munições; 
- 7 granadas de RPG-2;
-  9 granadas de Mort 60; 
- diversos bormais, marmitas, fardamento e botas novas; documentos de interesse, incluindo relatórios onde se refere a ocorrência de 2 mortos e 6 feridos, por parte do IN, no ataque a Candamã, a 30 de Julho de 1969.

Pela CART 2339, foram levantadas duas minas A/C.

Entretanto, a 30 de Agosto, o 1º, o 3º e 4º Cr Comb da CCAÇ 12, num patrulhamento ofensivo à região do Rio Biesse, Demba Ioba, Sambel Bare, Sinchã Mamadi e estrada de Mansambo, percorreriam 6 acampamentos IN recém-abandonados, ao longo dum trilho principal que conduzia à região de Biro, atravessando o itinerário Mansambo-Xitole.

No primeiro acampamento, encontrou-se o cadáver dum chefe IN identificado pelo prisioneiro que servia de guia, e que teria morrido em consequência de ferimentos recebidos em combate, durante a Op Nada Consta. Em escassos dias, as formigas carnívoras e os abutres tinham-no reduzido a um esqueleto desconjuntado.

Vestia uma espécie de dolmen impermeável que ainda estava em bom estado, assim como as botas... Num outro acampamento a seguir, foram encontradas um maço de cartas escritas em árabe (ou caracteres arabizados) e uma planta do aquartelamento de Mansambo, com as posições da artilharia, localização dos abrigos-casernas, espaldões, etc.

Em virtude do guia se ter perdido, os 3 Gr Comb da CCAÇ 12 só atingiram a estrada de Mansambo no dia seguinte de manhã, tendo regressado juntamente com o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 e forças da CART 2339 que haviam ficado emboscados no trilho de Biro, paralelamente à estrada. Até Mansambo, verificaram-se numerosos casos de esgotamento físico entre os Gr Comb da CCAÇ 12 que efectuaram a Op Gancho IV.


Fontes consultadas:


História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 8-11.

Guiné 68/70: História do Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. Bambadinca: BCAÇ 2852. 1970. Cap. II. 102.

Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, I e II Séries

Diário de um Tuga (notas pessoais de L.G.)
__________

Notas de L.G.

(*) Vd. postes anteriores desta série:

29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6490: A minha CCAÇ 12 (3): A única história da unidade, no Arquivo Histórico-Militar, é a que cobre o período de Maio de 1969 (ainda como CCAÇ 2590) até Março de 1971... e foi escrita por mim, dactilografada e policopiada a stencil (Luís Graça)

25 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6686: A minha CCAÇ 12 (5): Baptismo de fogo em farda nº 3, em Madina Xaquili, e os primeiros feridos graves: Sori Jau, Braima Bá, Uri Baldé... (Julho de 1969) (Luís Graça)


(**) Repare-se na desproporção de meios: as forças do IN são estimadas em 60/80 elementos; as NT mobilizaram para esta operação 10 grupos de combate, ou sejam, cerca de 250/300 homens: 3 Gr Comb do BCP 12 (CCP 122 e 123); 3 Gr Comb da CCAÇ 12; o Pel Caç Nat 53; e, por fim, mais 3 Gr Comb da CART 2339.


Vd. também outros postes sobre a Op Nada Consta e o prisioneiro Malan Mané:

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXV: A Op Nada Consta vista pelo lado da CART 2339 (Mansambo)

26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2683: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (9): O Jorge Félix e o Prisioneiro

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(...) Só um apontamento sobre o Malan.

Em Agosto de 1969, o meu Grupo de Combate reforçado com Milícias, estava no COP 7, ou melhor, a trabalhar para a Companhia do Cap Mil Jerónimo, em Galomaro [CCAÇ 2405]. Como as Tabancas, em autodefesa, de Candamã e Afiá voltaram a ser atacadas, fomos chamados com urgência a Bambadinca. Houve uma reunião com o Comandante do Agrupamento – Coronel ou Brigadeiro Hélio Felgas -, o Tenente Coronel Pimentel Bastos, Comandante do BCAÇ 2852 e outros oficiais cujo nome já não recordo.

Recebemos a missão. Partir de imediato para Candamã / Afiá com mais um Grupo da minha Companhia. Recolhemos mais informações, com o Comandante da CART 2339, Capitão do Quadro Permanente Laranjeira Henriques, e, em coluna auto, deslocámo-nos para lá.

Na passagem por Afiá consegui convencer o Lhavo, caçador e guia em várias operações, para nos voltar a orientar. Mostrou-se relutante. Tinha as suas razões e, se bem me lembro, estavam correctas.

No dia seguinte lá partimos com o Lhavo e encontrámos a pista do IN. Seguimo-la, em progressão balanta. Vimos um local de pernoita, calculámos quantos seriam e, no fim do dia, descobrimos o possível local do acampamento. Som de pilão e outros indícios. Além disso, o local era óptimo para um acampamento.

Dois dias depois, salvo erro, forças das CCAÇ 2590 [CCAÇ 12], CART 2339 e o Pel Caç Nat 53 montaram emboscadas em possíveis locais de fuga do IN. Paraquedistas do Cop 7 assaltaram e destruíram o acampamento. Capturaram o Malan Mané. Na fuga o IN, junto á estrada Mansambo/Xitole, caiu numa emboscada da CART 2339. Sofreram baixas e foi ferido com gravidade o Comandante do PAIGC, Mamadu Indjai

A nossa tropa regressou a quartéis e eu voltei a Mansambo. Uns dias depois entregaram-nos o Malan Mané. Íamos fazer uma operação – Pato Rufia – na zona do Xime e o Malan era o guia . Ele já tinha sido interrogado, creio que em Bambadinca. Não sei como decorreu mas imagino. Pelo breve relatório que nos entregaram disse pouco.

Em Mansambo o Malan foi para um dos dois abrigos do meu Grupo. Estes abrigos tinham uma sala que servia como refeitório, local de convívio, escrita e leitura e outros fins. Ficava na parte do abrigo virada para a parada, rodeada por duas fiadas de bidões com terra e tecto de zinco e colmo.

Entrei nessa zona e o Malan levantou-se, olhando para mim com um olhar inquieto, no mínimo. Fiquei, eu e os outros militares surpreendidos com aquela reacção. Como ele não falava mandinga e o meu crioulo era fraco, mandei chamar o Lali.É o guineense que se vê a sorrir na foto. Quando sentimos que o Malan estava mais calmo, conversámos com ele durante o tempo necessário para obter muitas informações. Foram passadas, as mais importante, a muitas folhas de papel.

O Malan sabia quem eu e outros camaradas éramos porque vinham, ele e outros militares do PAIGC, espiar-nos aquando da construção de Mansambo; tinha estado na fatídica emboscada da fonte, cerca de um ano antes. Viram-me passar mas não abriram fogo pois o objectivo era a fonte. Nesse dia fui com o meu Grupo á Moricanhe onde estava o Pelotão de Milícias 145. Disse-nos que o Cmdt do PAIGC para aquela zona era o Mamadu Indjai, recentemente reforçado e tendo 120/150 combatentes, com armas pesadas etc, etc. Não sabia o que entretanto sucedera ao seu ex-comandante.

Parece um relato de um santo. Claro que não o éramos. Aplicávamos a dureza julgada necessária, a disciplina, estávamos certos que o suor poupava sangue. Além disso sobre a Convenção de Genebra… só de nome… um conjunto de Leis, será?... Genebra, a cidade Suiça e a detestável bebida!... Mantínhamos era a nossa dignidade e o respeito por quem contra nós lutava. E não só.

Voltando ao Malan Mané. No dia seguinte fomos para o Xime. Correu mal a operação. O Malan enganou-se demasiadas vezes e, além de não atingirmos o objectivo, viemos de mãos a abanar.

Essa operação foi repetida, segundo me parece e o Malan foi ferido…Encontrei-o, em Novembro de 1969 no Hospital Militar em Bissau. (...).

(***) Publicaremos, numa próxima oportunidade a versão de um oficial pára-quedista que participou nesta operação e na captura do Malan Mané. É um precioso testemunho em directo (enviada em 30 de Julho de 2009) do nosso leitor SNogueira que, por razões que desconhecemos mas que respeitamos, não quer integrar a nossa Tabanca Grande. Tal não o impede de, amiúde, ter um papel activo no nosso blogue, visualisando e comentando os postes que publicamos. Na qualidade de combatente na Guiné, é nosso camarada.

Guiné 63/74 - P6947: Caderno de notas de um Mais Velho (António Rosinha) (3): Lembrando antigos colegas de trabalho, guineenses que ficaram amigos para a vida

1. Mensagem do nosso tertuliano António Rosinha para Cherno Baldé, com data de 2 de Setembro de 2010, com conhecimento a Luís Graça:

Amigo Cherno,
Não sei se leste o poste 6916 em que digo que vou recorrer à tua boa vontade dentro da tua disponibilidade, para me localizares uns amigos guineenses com quem trabalhei na Guiné. Inclusive o amigo Balanta de Quiev.

Não sei se te lembras de ler algo meu em que digo que o meu amigo de Kiev me disse que os guineenses é que fizeram a guerra, que os angolanos não valem nada (cá vali).

Bem, já passaram tantos anos que talvez alguns amigos meus e colegas já não trabalhem no mesmo lugar, assim como sei que alguns têm ido para o estrangeiro.

Mas talvez algum, com calma e com tempo os localizes, e lhe digas que lhe mando um abraço, e ao fim de tantos anos me lembro muito bem deles, até porque tivemos uma colaboração muito boa.

Em primeiro lugar referencio-te o topógrafo SEBASTIÃO, que em 1994 estava no Ministério das Obras Públicas (O.P.), o tal balanta de Kiev, onde estudou, e que além de me explicar a Guiné, me explicou o que era Kiev. Muito corremos as estradas da Guiné a tapar buracos, durante 3 anos.

Um manjaco, engenheiro que estudou em Cuba, conhecido por LOPES, trabalhámos juntos tambem nas O.P. durante muito tempo, tenho muito boas lembranças dele. Um abraço também.

Passei um ano no Gabu a trabalhar nas estradas da região, 1987, com o meu amigo Oliveira Nhanque, engenheiro vindo da URSS, embora balanta, só tinha familiares em Farim.

Se não foi para o estrangeiro, facilmente o localizas. Um abraço também.

Tive um amigo, condutor ao meu serviço e até chegou a ter taxi, SANA JANA de nome, também como tu, conviveu em jovem com militares em quarteis e em Bissau.

Este meu amigo, se ainda tiver saúde, o que espero, encontras através da Mesquita de Bissau, pois ele tem um lugar de algum relevo dentro da hierarquia religiosa.

Dizia ele para me explicar que era com se fosse bispo na igreja católica. Este SANA JANA, é uma pessoa muito especial.

Cherno, fico por aqui para não te incomodar muito, porque foi muita mais gente boa com quem convivi.

Embora o tempo tenha passado, se localizares um deles, principalmente o SANA JANA, ele próprio te localiza os outros.

Sou apenas conhecido como o ROSINHA, da Tecnil, da Somec, da Soares da Costa e da minha passagem pelas Obras Públicas e pelo Banco Mundial.

Cherno, dentro do possível, transmite a minha estima a estas pessoas.

Para ti um abraço,
António Rosinha
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6940: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (2): Luís Cabral e a TECNIL não fizeram a cerimónia ao Irã no Poilão de Brá e a autoestrada Unidade Guiné - Cabo Verde jamais seria terminada!

Guiné 63/74 - P6946: In Memoriam (49): Elegia à Fernanda de Castro, escritora que viveu em Bolama e dedicou alguns dos seus livros à Guiné (Leopoldo Amado)



Fernanda de Cstro (1900-1994)



1. Mensagem de Leopoldo Amado, historiador guineense, membro da nossa Tabanca Grande, com data de 30 de Agosto de 2010:

Caro Vinhal,

Segue um texto para a partilha na Tabanca Grande, caso assim entendam.

A todos e, em especial para ti e para o Luís Graça, um abraço do amigo, sempre ao dispor.

Leopoldo Amado


Elegia à Fernanda de Castro

Fiquei feliz por saber da existência de uma página na Net sobre Fernanda de Castro [, 1900-1994]. Ela mais que merece.

Fui, provavelmente, o primeiro e o único africano a privar-se intensamente com Fernanda de Castro pouco tempo antes da sua morte, numa altura em que ainda concluía a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa.

Vale talvez a pena que aqui recorde as circunstâncias em que travei conhecimento com Fernanda de Castro: corria o ano de 1985 e já tinha eu decidido encetar um profundo estudo sobre a imagem do Negro na literatura colonial portuguesa, durante o Estado Novo. Leituras aqui, contactos acolá, facilitadas ou recomendadas pelo meu sempre mestre, Prof. João Medina, permitiram-me que tivesse aguçado a curiosidade de conhecer alguns literatos coloniais ainda vivos na altura.

Assim, esses contactos proporcionavam-se-me, cada vez mais, a oportunidades de privar com literatos coloniais vivos. Da longa lista, efectivamente, figurava a incontornável Fernanda de Castro. Conheci-a, efectivamente, em Lisboa, pela mão de uma das suas melhores amigas, no caso, a portentosa escritora Maria Graça Freire (irmã de Natércia Freire), tal como, de resto, o era também a Fernanda de Castro.

Quando se vislumbrou pois a possibilidade de a entrevistar, já sabia, de antemão, que iria estar na presença de uma nonagenária, acamada, mas uma mulher de fibra e com uma extraordinária força interior. Aprazado o dia e a hora, não sem antes me munir de um sugestivo arranjo floral para a oferecer, lá me pus a caminho das imediações do Bairro Alto, onde então vivia Fernanda de Castro. A ansiedade e as expectativas eram mais que muitas, pelo que já no elevador da Glória, imaginava de mil maneiras a figura da escritora, pois as fotografias que dela vira, até então, datavam já de umas valentes décadas.

Quando cheguei a casa de Fernanda de Castro e conduzido depois à sua presença, tornou-se visível para todos os presentes (cerca de quatro ou cinco pessoas) a minha emoção, mas igualmente a alegria contagiante de Fernanda de Castro que, ao ver-me, cumprimentou-me efusivamente, remexendo-se, inclusivamente, da cama, como se dela quisesse erguer-se para me abraçar.

Ainda me lembro das palavras que seguiram à minha calorosa recepção:

- Sabe, Leopoldo, é com enorme prazer que lhe recebo em minha casa. É pena ter de o fazer acamada, mas espero que, por tanto, não se estranhe e que possamos conversar, pelo menos o suficiente. Sabe, estou ultimamente a escrever um último livro que talvez se intitule “Memórias In Extremis”, aliás, é isso que estava justamente a fazer, antes da sua chegada, ditando as coisas a esta minha sobrinha que vai escrevendo o que a digo, pois já não dá para ser eu própria a escrever.

- Mas quero que aqui se sinta à-vontade e que saiba que a Guiné, pelas recordações que possuo das suas gentes, pelo cheiro da terra e por muito mais, está no meu coração, e que a levarei para a minha última morada, pois lá repousa eternamente a minha mãe, que foi lá enterrada.


Enquanto devolvia com palavras simpáticas a calorosa e afectuosa recepção de que fui alvo, Fernanda de Castro prosseguia:

- Sabe, Leopoldo, a sua presença traz-me, profusamente, recordações da minha rica adolescência, vivida em parte na Guiné, em Bolama, onde meu pai chegou de servir como capitão dos portos. E digo-lho, convictamente, que éramos mais fortes. A nossa mística, sabe, ainda há-de consumar-se, pois acredito piamente no mito de um Portugal imperial e no Quinto Império, algo que seja capaz de nos irmanar na fé, na igualdade, na justiça e na crença de um mundo melhor, sem que para isso tenhamos que olhar para a cor da pele ou para a condição social da pessoa humana. É isso, aliás, que procurei plasmar nos três ou quatro livros que escrevi sobre a Guiné e sobre a África.

- O Leopoldo devia ler o meu grande poema intitulado “África Raiz” de que, aliás, lhe vou oferecer um exemplar autografado. Em boa verdade, Leopoldo, África marcou-me profundamente. Leia “O Veneno do Sol” e o “Aventuras de Mariazinha em África” ou o “Mariazinha em África”, livros meus que foram até hoje dos mais vendidos em Portugal, com tantas edições – talvez duas dezenas ou mais – já não consigo lembrar ao certo quantas.

- Sabe, Leopoldo, os dois últimos livros, “Aventuras de Mariazinha em África” e o “Mariazinha em África” são autobiográficos. Procurei neles narrar a inolvidável experiência que a África, a minha África mística, provocou em Mariazinha, de resto, personagem central a quem literariamente emprestei a minha experiência. Aliás, outros personagens, como o Vicente, também eram reais. O Vicente acabou por vir para Portugal connosco e aqui veio até veio a ser campeão de atletismo e acabou mesmo por se casar com uma portuguesa, de quem teve dois filhos.


Porém, nas semanas e meses que se seguiram, foram de intermitentes mas intensos contactos entre mim e a Fernanda de Castro, resultando tudo numa grande entrevista que a própria fez questão de caucionar e que, pela sua valia e importância, sobretudo pela sua profundidade, darei um dia desses a conhecer ao grande público.

Efectivamente, sobre Fernanda de Castro e a sua produção literária, sobretudo àquela que mais directamente diz respeito à Guiné, muito escrevi, quer em revistas científicas, quer em jornais, aqui e acolá. Fi-lo pela necessidade de dar a conhecer esta grandiloquente escritora que, um dia ou anos, que sejam, tal como Castro Soromenho o fez em relação a Angola, logrou narrar a Guiné com uma extraordinária mundividência e lucidez literárias que, não obstante ter feito recurso a um discurso oficial ou oficioso e ainda ter abordado uma realidade social matizada pela colonização – curiosamente –, os discursos ontológicos, neles subjacentes, não raras vezes, raiam os limites de um humanismo universal e mesmo universalista.

Talvez não fosse despiciendo, antes pelo contrário, a reedição na/para a Guiné de algumas obras de escritora sobre a Guiné, as quais podiam ser lançadas, quiçá, em Bolama, de resto, ilha onde repousa os restos mortais da mãe da escritora (**) e, igualmente, torrão que acolheu Fernanda de Castro e que, afinal, inspirou a componente africana da sua abundante e profícua produção literária.

Seria, sem dúvida - afora as politiquices – uma forma sublime e altruísta de, merecidamente, homenagear alguém que, no Mundo lusófono, quer se queira quer não, escreveu das mais belas páginas literárias sobre a Guiné e sobre a África.

Leopoldo Amado
Agosto de 2010.

PS: cf. o site sobre Fernanda de Castro: http://fernanda-decastro.blogspot.com/

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Poetisa, romancista, dramaturga e tradutora Fernanda de Castro (1900-1994) estreou-se aos 19 anos com o livro de poesia Ante-Manhã. Vence nesse ano (1919) o Primeiro Prémio no concurso de originais do Teatro Nacional, com a peça Náufragos. Com o romance Maria da Lua (1945) foi a primeira mulher a obter o prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa. Em 1969 é-lhe atribuido o Prémio Nacional de Poesia. Fernanda de Castro foi ainda tradutora de Rainer Maria Rilke (Cartas a um Poeta), de Katherine Mansfield (Diário), de Pirandello (Uma verdade para cada um) e Ionesco (O novo inquilino).

OBS:-Retirado do Blogue Fernanda de Castro, com a devida vénia
CV
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6829: Efemérides (48): Acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no cais do Pindjiguiti, Bissau (3) (Leopoldo Amado)

Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6710: In Memoriam (48): Adelino da Silva Sineiro da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67 (Vasco Santos)

(**) Vd. nota biobliográfica na Wikipédia:

(...) Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros Ferro (Lisboa, 8 de Dezembro de 1900 – 19 de Dezembro de 1994), foi uma escritora portuguesa.

Fernanda de Castro, filha de João Filipe das Dores de Quadros (oficial da marinha) e de Ana Laura Codina Telles de Castro da Silva, fez os seus estudos em Portimão, Figueira da Foz e Lisboa, tendo casado em 1922 com António Joaquim Tavares Ferro. Deste casamento nasceu António Gabriel de Quadros Ferro que se distinguiu como filósofo e ensaísta e Fernando Manuel Teles de Castro e Quadros Tavares Ferro. A sua neta, Rita Ferro,  também se distinguiu como escritora.

Foi juntamente com o marido e outros, fundadora da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, actualmente designada por Sociedade Portuguesa de Autores.

O escritor David Mourão-Ferreira, durante as comemorações dos cinquenta anos de actividade literária de Fernanda de Castro disse: “Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite”.

Parte da vida de Fernanda de Castro, foi dedicada à infância, tendo sido a fundadora da Associação Nacional de Parques Infantis, associação na qual teve o cargo de presidente.

Como escritora, dedicou-se à tradução de peças de teatro, a escrever poesia, romances, ficção e teatro. (...) 

Guiné 63/74 - P6945: Notas de leitura (145): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,


Há páginas muito curiosas neste testemunho do Major Lobato. Pena é que não tenhamos o seu relato mais detalhado da Guiné, entre 1961 e 1963. Dá que pensar o que era a implantação do PAIGC no Sul, logo em Maio de 1963. E sente-se o amadurecimento de um resistente numa prisão tenebrosa, num estatuto infame de criminosos de guerra.


Um abraço do
Mário


Major António Lobato, o mais longo cativeiro da guerra colonial

Beja Santos

Alistou-se na Força Aérea como voluntário, em 1957. Embarcou para a Guiné, em 1961. Em 1963, em consequência de uma colisão entre dois aviões, depois de uma operação na ilha do Como, foi feito prisioneiro pelos guerrilheiros do PAIGC. Começava um longo cativeiro que só iria terminar com a operação Mar Verde, em finais de 1970.

O seu relato intitula-se “Liberdade ou Evasão” (Editora Ausência, 2001). É um documento de real importância: fica-se a saber a implantação do PAIGC no sul da Guiné, logo no primeiro ano da luta armada, a sua mobilidade até à República da Guiné; as ambiguidades de ser prisioneiro de guerra e de viver em silêncio, sem poder comunicar com a família e com o país; temos acesso a conversas com dirigentes do PAIGC e o que deles pensa o prisioneiro; acima de tudo, o testemunho da tragédia do isolamento, o modo como se procura ultrapassar o abismo de viver rodeado de outros camaradas, num cocktail com presos do regime de Sékou Touré.

A despeito de diferentes contradições (como aquela de estar plenamente informado sobre a ditadura de Sékou Touré quando é enclausurado na Maison de Force de Kindia com o rótulo de criminoso de guerra, ele, sargento Lobato, que dizia nada saber de política) é um documento que de longe regista as múltiplas dores e sofrimentos de estar preso em terra alheia, sem nunca vacilar diante das propostas de desertar ou mancomunar-se com o inimigo. É um relato por vezes minucioso, confessional, dá pormenores relevantes sobre a vida em campo de concentração.

Vejamos o que diz do seu encontro com Nino Vieira, pouco depois da sua captura na região de Tombali:


“Sentado no tronco seco de uma velha árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de kaki verde-escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de corno pendurado ao pescoço por uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, de que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”. 

Metido numa prisão em Boké, manifesta o nojo pela degradação a que sujeitam o ser humano:

 “A luz que a grade filtra é agora um pouco mais intensa do que ontem, à minha chegada. Sento-me na cadeira-cama em que dormi e fico a olhar a parede em frente, a menos de meio metro do meu nariz… Não tem qualquer cor definida, está cheia de nódoas indecifráveis, de sulcos cavados no reboco, de matéria que sobre ela deve ter sido projectada, que aderiu à superfície e solidificou com o tempo: sangue?… escarros?… fezes?… É uma parede suja, muito suja, uma daquelas paredes de calabouço que só conhecemos através da imaginação dos romancistas”.


Começam os interrogatórios, é perguntado sobre o regime político em Portugal, o que é uma república unitária e corporativa, o que é que ele pensa sobre a guerra colonial. Depois encontra Otto, um cabo-verdiano, ex-radiotelegrafista da Aeronáutica Civil que trabalhou com ele no aeroporto de Bissau. Otto leva-o até junto de guineenses que se juntaram ao PAIGC. E escreve, sentenciador:

“Os pobres guineo-portugueses fitam-me com um ténue sorriso nos lábios gretados pelo calor e pela subnutrição e naqueles olhos esbugalhados pela surpresa, lê-se a esperança longínqua de um regresso à terra-mãe, ao doce chicote do colonizador que durante quinhentos anos lhes garantiu a banca fresca, pão, água e alguma aprendizagem técnica, científica e cultural”. 

Transferido para Conacri, é de novo interrogado: a guerra que Salazar faz em África é justa? O que sabe sobre as prisões políticas em Portugal, explique-nos a organização da PIDE, o que pensa da conferência da Adis-Abeba, quer trabalhar com o general Humberto Delgado? Nega a responder, recusa colaborar, vai direitinho para a Maison de Force de Kindia. Assim se inicia a longa etapa da sobrevivência, é um prisioneiro posto à disposição não se sabe bem de quem e como. Vai sofrer estados de revolta, sentir as entranhas corroídas pela angústia.

Um homem da Guiana, ali preso por roubo, oferece-se para mandar uma mensagem até à família. É tocante o que escreve, a revelação dos seus sentimentos. Temos depois um dos pontos mais altos do seu relato, a descrição da vida do Forte, a situação dos degredados, os seus gritos, a observação que faz para ver se pode fugir, a luta contra os percevejos, os exercícios de ginástica. Começa a receber encomendas por via da Cruz Vermelha, recebe as visitas de Amílcar Cabral, inabalável, recusa colaborar. Depois tenta fugir. É interessante comparar a sua descrição com aquela que fez o alferes Rosa, e que já aqui publicámos no blogue. Ajuíza positivamente o comportamento de dirigentes do PAIGC como Fidelis Cabral, Aristides Pereira ou Joseph Turpin dizendo que são homens bons, moderados e sensatos.

Até que chegamos a 22 de Novembro de 1970, a operação Mar Verde. Refere o seu encontro com o capitão tenente Alpoim Calvão e a partida de Conacri. E, por fim, as peripécias da chegada a Portugal e a sua amargura quanto a atitudes e comportamentos de oficiais da Força Aérea, que o desiludem. Termina o seu relato citando Emanuel Mounier: “Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão”.

Chegara a hora de recomeçar a vida, vencida estava a duríssima etapa de sobrevivência, anos e anos a viver à beira do desespero (*).

Este livro passa a pertencer à biblioteca do blogue.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6941: Notas de leitura (144): Amílcar Cabral Documentário (Mário Beja Santos)

(*) Relacionado com este poste,  vd. 27 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

(...) Depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008). As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo.

Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correio, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-me para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 foi abatido em 1963, na Ilha do Como .

Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde. "Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta.

Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... "Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. "Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao seu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada...(...)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6944: Contraponto (Alberto Branquinho) (14): Discorrendo sobre a(s) água(s) na Guiné

1. Alberto Branquihno (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem datada de 2 de Setembro de 2010, discorre sobre o excesso e/ou falta de água na Guiné do nosso tempo.


CONTRAPONTO (14)

DISCORRENDO SOBRE AS “ÁGUAS” NA GUINÉ

Quem leia o título pensará que vou discorrer sobre água. Não, não se trata de escrever somente sobre o composto H2O.

Trata-se de alinhavar umas recordações sobre “águas” na Guiné e sobre as diversas situações, circunstâncias e formas em que a “água” se apresentava para satisfazer as necessidades orgânicas dos combatentes (e de outros militares) ou para dificultar a sua vida. E quando escrevo “combatentes” não estou a referir-me aos muitos militares que dizem ter estado “no mato”, porque estão convencidos (ou querem convencer quem não tenha tido conhecimento da realidade) que viveram as circunstâncias e as realidades da guerra. Apesar disso, dissertam sobre a experiência da “guerra”, tendo estado somente dentro de aquartelamento(s) no interior da Guiné (com melhores ou piores condições). Mas nunca dele saíram para fins operacionais, usando as suas próprias pernas para se locomoverem. Dormiram todas as noites nas suas camas, sofrendo (talvez) algum ataque ao quartel, abrigados em trincheiras ou em abrigos de cimento, sem riscos de maior.

Ora o tema deste discurso – AS ÁGUAS – é matéria que esteve presente no dia-a-dia do efectivo combatente, embora o “combatente dentro de portas” tenha conhecido algumas dessas “águas” (as mais agradáveis). O “combatente dentro de portas” não sofreu a “sede” e a “água fora de portas”, como abaixo vão referidas.

Quando havia poço de água (propriamente dita) dentro de portas era feita a recolha e distribuição da mesma pelos depósitos do quartel (bidões habitualmente). Mas quando o poço de água era fora de portas, o “carro de água” era acompanhado/protegido na ida e no regresso por combatentes, que o enquadravam, em coluna apeada.

Este discurso terá quatro capítulos, a saber:

I – Introdução (da qual o texto acima faz, também, parte);
II – As águas dentro dos aquartelamentos;
III – A água propriamente dita, fora dos aquartelamentos;
IV – Efeitos das águas na saúde dos militares (combatentes ou não).

O evoluir deste trabalho fará (espero) aflorar recordações que estarão no sótão ou na cave da memória.
Ele destina-se, principalmente, a informar os leigos que o lerem acerca das realidades hídricas que os combatentes (e, em alguns casos, os outros militares) deparavam no seu quotidiano.

Esta ideia surgiu ao autor no dia em que lhe faltou a água na torneira. A EPAL foi, portanto, a inspiradora. Obrigado, EPAL.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) >  A cambança de uma lala ou bolanha... no decurso de uma operação.

Foto: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


I – INTRODUÇÃO

Em primeiro lugar dá-se aqui como reproduzido o texto inicial, que é, claramente, o pai (ou a mãe) desta Introdução. O que a seguir vai escrito é, portanto, uma ejaculação consequente do texto inicial e… introdutório.

Importa dizer que muitos camaradas foram depositados na Guiné num quartel ou espaço afim e aí permaneceram (incluindo os arredores do mesmo) durante os dois anos de tempo de Guiné. Quem tenha estado assim todo o tempo e numa zona situada mais para norte, não terá consciência que no sul mais a sul dessa linha a água e a terra não estavam devidamente separadas (agravado na época das chuvas). Aí Deus, ao tempo da criação do Mundo, esqueceu-se de separar a terra das águas.

As terras a norte, onde se encontra paisagem tipicamente de savana, mesmo na época das chuvas, não se assemelham às terras do sul mais a sul, nomeadamente no que respeita às dificuldades de progressão no terreno. Nesse sul, os rios grandes, rios médios, rios pequenos, riozinhos, braços de rio, braços de mar, lodo, lodo, lodo e mais lodo e água-lodo cercavam povoações e aquartelamentos.

Os rios, devido à baixíssima altitude do terreno, divertem-se a ziguezaguear, assim como em dança africana, em que cada curva e contracurva quase tocam a curva e contracurva anteriores, criando pequenas e grandes penínsulas lodosas, com vegetação variada e exuberante. Há, também, as grandes poças de água, lodosas (chamadas “bolanhas”) que, vistas do ar, são muito agradáveis de ver. Mas quem tem (tinha) que caminhar por lá não via essa beleza e o cheiro a maresia podre permanecia no camuflado, nas meias e nas botas.

Outro aspecto é a salinidade da água. Mesmo quando a água dos rios se apresenta límpida (o que é pouco comum, porque é, habitualmente, escura e lodosa) o grau de salinidade era tal que, se um soldado “periquito” incauto e sedento a bebesse, sofria um choque que nunca mais esqueceria. À sede, assim agravada, sobrevinha um desespero incontrolado.

A minha Companhia só encontrou rio de água doce mais de um ano depois de ter chegado à Guiné – no Rio Balana, junto a Gandembel, durante a construção deste aquartelamento (Operação Bola de Fogo). Mais ou menos a dez quilómetros a sul de Aldeia Formosa (Quebo).

Por outro lado, quem tenha estado todo o tempo nessas terras mais a sul, não conheceu rios de água doce, que só podem ser encontrados a norte, onde o terreno pode apresentar-se com altitudes de... dez/quinze metros. Ora, nestas circunstâncias, as marés, mesmo as mais vivas (e inteligentes...) não conseguem subir tão alto e, portanto, a água é doce (ou, mais propriamente, não salgada). Na época das chuvas esses pequenos rios têm, como é óbvio, um caudal apreciável.


II – AS “ÁGUAS” DENTRO DOS AQUARTELAMENTOS

A água, dentro dos aquartelamentos, era absorvida pelos militares (combatentes incluídos) sob as seguintes formas:

a) Sob a forma de água propriamente dita;
b) Sob a forma de cerveja (a forma mais apreciada e consumida);
c) Sob a forma de “coca-cola” (proibida na “Metrópole”, mas tolerada pelas autoridades locais);
d) Sob a forma de “7upe”(assim mesmo pronunciado, dada a falta de inglês na formação militar e que não existia na “Metrópole”);
e) Sob a forma de dois ou três refrigerantes;
f) Sob a forma “Água de Castelo”, misturada com bebida alcoólica);
g) Sob a forma de “Pérrier” (água francesa de aparecimento misterioso, só explicável pele francofonia envolvente); era consumida misturada com bebida alcoólica ou simples, quando havia necessidade de arrotar;
h) Sob a forma de “água tónica”, também acompanhada da componente alcoólica;
i) Sob a forma de vinho, que chegava em garrafões de tamanho considerável e difíceis de esvaziar; não era uma forma muito habitual de repor os níveis de H2O no organismo; por outro lado, constava que, devido à adição de uma substância química, em vez de matar a sede, matava a fome de outra coisa...

E, parece que é tudo. Caso falte aqui a referência a alguma espécie de “água” que suprisse as necessidades orgânicas de água, faça o favor de a acrescentar à lista.

Falando de água propriamente dita, ela era recolhida de poços pelas chamadas “viaturas da água”, que tinham na carroçaria todos os bidões (sim, os de gasolina) permitidos pela volumetria da caixa. Todos os dias (e, por vezes, mais que uma vez) essas viaturas iam a esses poços e, através de bombas manuais ou moto-bombas, aspergiam a água, enchendo os bidões. No quartel, a água era passada para os bidões de reserva existentes junto às cozinhas, para bidões colocados em cima de tábuas horizontais sustentadas por tábuas verticais. Eram os... chuveiros. Onde os havia, porque muitas vezes o pessoal lavava-se (quando se podia lavar... ou devido à falta de água ou ao excesso de “fogachal”) baldeando a água para cima dos corpos com vasilhame mais ou menos adequado. Esses “chuveiros” eram, habitualmente, accionados por dois cordéis – um abria a água e o outro fechava. Quem demorasse mais que xis minutos no chuveiro quase era fuzilado.

Em certas situações não se podia usar moto-bomba na recolha da água, porque, quando o motor começava a trabalhar, havia do “outro lado” alguém que, ouvindo o barulho do motor, enviava para o local, a título de reciprocidade ou cumprimento, umas granadas de morteiro. E, claro, como quando acontece com os protestos do vizinho de baixo, desligava-se a moto-bomba e o pessoal espalmava-se no chão assim como peixe escalado. Algum tempo depois recomeçava a recolha de forma manual.

Já me perguntaram porque é que “os gajos” não envenenavam a água. Respondo que nunca lhes perguntei, mas acho que era porque “eles” tanto bebiam a água a montante como a jusante, porque andavam sempre em passeios.

Muita gente morreu nas “saídas” para ir recolher água, caindo em emboscadas. Quando digo isto a alguém que quer saber “coisas” sobre esses tempos, ficam a olhar-me com ar entre o incrédulo e espantado. Aí, remato:
- Não havia água canalizada…

A terminar, há que dizer, quanto às várias formas de água acima referidas, que:

(i) Água (propriamente dita) era, mais ou menos, como ficou dito acima;
(ii) Sob a forma constituinte de cerveja, lá ia aparecendo, quase nunca faltando;
(iii) Sob a forma de “coca-cola”, e “7upe”, era um luxo (nem sempre havia em muitos quartéis);
(iv) Sob a forma de “Água Castelo” ou “Pérrier”, abundava nas messes das sedes de Batalhão (no “mato”);
(v) Vinho, havia em muitíssimos garrafões nos depósitos, arrumados em pilhas.

Parece que está tudo dito. No entanto, se alguém desejar colmatar alguma lacuna, faça o favor de entrar.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) > Destacamento do Rio Udunduma > 3º Grupo de Combate da CCAÇ 12, no "refeitório": Na foto reconheço, à esquerda, o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão (o homem que foi ferido duas vezes na mesma operação, vivendo hoje na Covilhã) e o Alf Mil Abel Maria Rodrigues, transmontano de Miranda do Douro; à direita o o Fur Mil At  Inf Arlindo T. Roda (natural de Pousos, Leiria; residente hoje em Setúbal) ...  Lembro-me da cara (mas não recordo o nome) do camarada  (sold condutor auto ?) que guarda o recipiente que continha a famosa "água de Lisboa" (segundo os africanos; para nós, era simplesmente  "água do Poço do Bispo" ou "vinho a martelo") ...

O famoso garrafão de vinho da Intendência era uma versão superior (10 litros ?) do nosso alegre e saudoso "palhinhas" dos piqueniques do tempo dos nossos pais e avós... O vidro era revestido, não a verga, mas a tiras de madeira, de modo a protegê-lo das muitas andanças e cambanças, voltas e baldrocas que tinha de fazer desde o produtor ao consumidor final...

O produtor era o o mixordeiro do Poço do Bispo (que da água do Tejo fazia vinho "pró preto"...); o consumidor final era o pobre Zé Soldado que, segundo o regulamento, tinha direito a uma caneca  por refeição dessa mistura hidro-alcoólica que chegava, quando chegava, às margens dos rios da Guiné, como o Udunduma (afluente do Geba), um dos muitos miseráveis e solitários destacamentos das NT... (LG)

Foto: © Arlindo Teixeira Roda (2010) & Blogue Luis Graca  e Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.
 
 
 
III – A ÁGUA FORA DOS AQUARTELAMENTOS

a) A progressão no terreno

Fora dos aquartelamentos, para além da necessidade de repor os desejáveis níveis de água no corpo, aquilo que um homem mais recorda daqueles tempos são as dificuldades de movimentação no terreno durante as operações ou as colunas auto. Terreno? Nessas terras mais a sul poderia falar-se em terreno, principalmente durante a época das chuvas? Era lodo, lodo, lodo, lama e água-lodo. A falar das águas (e dos lodos) convém não esquecer que aqueles rios do sul mais sul da Guiné, porque a altitude do solo está quase ao nível do mar, invadem a terra/lodo em cada maré-cheia. Na baixa-mar deixam à vista as grandes margens lodosas que os enquadram. Qualquer riacho, braço de rio ou braço de mar exibe a sua moldura lodosa de muitos metros, na margem esquerda e na margem direita. Aí um homem atasca-se, com risco, em alguns casos, de ser engolido. Certo foi que, devido ao esforço de tentar levantar cada pé para tentar avançar ou fugir dali, esse esforço continuado foi a causa de, com o decorrer do tempo, rebentarem hérnias inguinais. Surgiam, também, fungos e micoses entre os dedos dos pés e nas virilhas.

É impossível atravessar a pé o mais pequeno braço de água na maré-cheia, arriscado durante o encher da maré e, principalmente, durante o vazar, porque o risco de ser arrastado é grande. Em certas zonas há que esperar a baixa-mar total e aproveitar zonas mais baixas de lodo ou troncos de árvores caídos para atingir o centro da linha de água e caminhar ao longo dele (que não tem lodo ou tem pouco) até descobrir outro espaço que permita passar para a outra margem. Esta manobra é chamada CAMBANÇA. A mesma designação é, também, usada para o atravessamento de um braço de água, feito em canoa.

Muitas vezes o atravessamento de rios (com centenas de metros de largo) era efectuado, por razões de sigilo operacional, durante a noite e a canoa ia engolindo água pela borda esquerda e pela direita, à medida que avançava. Era um susto contínuo. Nem sempre uma canoa... “é uma passagem para a outra margem”.

Imagine-se o cuidado a ter no planeamento de operações, de modo a que o acesso a uma determinada zona fosse ser feito, por cambança, em maré baixa e o regresso (depois da “fogachada” habitual) também em maré baixa, no mesmo dia ou dias depois para evitar que a tropa ficasse encurralada entre “os gajos” e a água em maré alta.

Também as zonas baixas (alagadas e lodosas – “bolanhas”), cobertas de vegetação rasante à água, eram perigosas de ser atravessadas devido à exposição ao fogo inimigo colocado na orla das matas circundantes e porque a água ficava, pelo menos, à altura da cintura ou do meio do peito de um homem médio. Quando surgiam “baixios” ou a água tinha níveis superiores, havia que retirar a arma aos mais pequenos e levantá-los pela gola do “bibe” para evitar que engolissem água. Água que, além de salgada, era lodosa e insalubre.

Como se vê, os homens colocavam o “chispe de molho” logo ao sair do quartel e só o podiam secar no quartel, depois do regresso, que podia ser na noite desse dia, no dia seguinte ou dias depois. Tudo isto na época das chuvas ou imediatamente a seguir.
Depois ia baixando o nível das águas, mas ela (a água) continuava sempre presente.

Convirá dizer que havia algumas situações preocupantes nas circunstâncias descritas – progressão de noite (mesmo com luar), debaixo de chuva intensa, em caso de emboscada ou flagelação à distância.


b) A chuva

No fim da época seca a chuva anunciava-se com pequenas nuvens no horizonte. A seguir vinham as trovoadas semelhantes a rebentamentos de morteiro, consecutivos. Ventos e as primeiras chuvas.
Começava a formação das lamas nos quartéis, que durariam meses, enlameando tudo e todos e então:

(i)  surgiam, como por encanto, milhares de formigas de asa, que, depois de um voo efémero que as salvava de afogamento, se atravessavam à frente dos rostos, chocavam com as pessoas, com os objectos e a construções, em voo irregular, caindo de seguida por terem perdido as asas. Deixavam tapetes e tapetes de asas que, ou se amontoavam nos cantos ou andavam em redemoinhos provocados pelo vento, que acabava por empurrá-las para longe. As que ficavam tinham que ser apanhadas à pá, molhadas pela chuva ou permaneciam durante vários dias;

(ii) quando a chuva já continuava, verificava-se a “aparição” de centenas de rãs e sapos (e outros exemplares afins) que ocupavam todo o espaço enlameado, procurando abrigo em qualquer canto, com os seus saltos contínuos e nada elegantes, invadindo até os espaços habitados; mas o momento mais desagradável era à noite, porque tornavam impossível o sono com o coaxar ininterrupto, com vozes de tenor, barítono, contralto…

No que respeita à actividade operacional, a chuva, que, por vezes, caía em cortinas de água, dificultava o contacto (visual) entre os homens e os que os antecediam, quebrando, assim, a coluna, impossibilitando a progressão e causando o risco de serem confundidos amigos com inimigos. Imaginem como seria, então, em progressões nocturnas.

Apesar de a chuva ter uma temperatura idêntica à da nossa chuva de Verão, no meio da mata sentia-se como fria e quando era necessário parar, evitava-se até agachar por ser desagradável sentir o camuflado molhado totalmente colado às costas, o que poderá parecer estranho para quem tenha frequentado os Rangers durante o Inverno de Lamego. Mas quando se tratava de salvar a pele…

Caminhando debaixo daquela chuva persistente (que se mantém durante os meses dessa estação), havia um pingo de água irritante. Baloiçava da esquerda para a direita e da direita para a esquerda (Não estou a falar de políticos…), à frente do nariz de um homem, obrigando-o a sacudir, repetidamente, a cabeça, para o fazer cair no chão. Mas logo outro surgia, ocupando o lugar do expulso. Nova sacudidela… e assim sucessivamente. Não, não era o pingo do nariz. Era o pingo na pala do quico, que passeava de barlavento para sotavento e de sotavento para barlavento, num movimento sem fim e irritante. Solução – passar a pala para trás da cabeça, até porque não iria haver sol durante muitos meses.

Já me perguntaram se debaixo daquela chuva tropical, as armas encharcavam ou se a pólvora encharcava. Não, isso não acontecia, porque os canos das armas eram virados para baixo e graças à Fábrica de Braço de Prata.

Muitos pormenores poderia escrever sobre a água, as chuvas durante a “ época das chuvas”, mas o sentimento que mais me apetece transmitir a quem não viveu essas situações (ou mesmo a quem as viveu) – ao andar pelos terrenos alagados, bolanhas, debaixo daquelas chuvas que nunca mais paravam, sempre dentro de água – é que nunca na minha vida desejei tanto ser peixe…


c) - A sede

A matéria deste texto é, exactamente, a antítese do que trata o texto imediatamente anterior.

Cada homem tinha distribuído um cantil. Teria uma capacidade de, mais ou menos, um litro. Mesmo durante as operações de um só dia havia que saber doseá-lo. No caso de operações de dois, três, quatro dias TALVEZ em algum momento pudesse haver reabastecimento. As instruções eram para chegar o cantil aos lábios, assim como quem beija. Mas a tropa nova esgotava-o em dois actos.

A sede (sede, sede, sede, sede…) era uma coisa horrível. Na época seca, claro.
- Eh pá, dá-me uma pinga de água.

A palavra ÁGUA (água, água, água…) era equivalente a ouro. A palavra era pronunciada, pensada com a cabeça tonta de sol e sede. Era qualquer coisa de divinal, longínqua. Além disso, havia uma música de sons graves, muito graves e repetitivos na cabeça dos homens. E soava como se ecoasse num espaço cavo, oco e profundo.

Um caso conheci em que o soldado urinou no cantil e bebeu a própria urina. O que mais doía era ouvir feridos e moribundos pedir água, por vezes já com o soro a correr nas veias.

Devido à absoluta necessidade, chegámos a beber de poças de água que tinham excrementos de animais lá dentro e que, portanto, também dela tinham bebido. No caso de excrementos de vaca era duplamente perigoso – pelo facto de a bebermos e porque, se havia vacas, havia população, o que, em terreno longe dos quartéis, significava a presença próxima de guerrilheiros. Enquanto uns bebiam, outros montavam segurança, alternando-se depois. Tal como acontecia junto de rios de água doce, para beber e para encher cantis.


d) – O macaréu

Atrás foi já dito que as marés afectavam os rios e o território da Guiné muitos quilómetros para além da foz dos rios. Ora, no tempo das marés vivas, a massa de água que sobe o rio pode ser tal que a primeira onda de maré e as primeiras a seguir (em movimento contra as águas descendentes), tenham uma força e altura tais que podem perigar a navegação, principalmente de pequenas embarcações. É o macaréu, que no Brasil é chamado pororoca.


IV – EFEITOS DAS “ÁGUAS” INGERIDAS

Estando este discurso a atingir o seu final, compreensível será para o leitor quais poderão ter sido os efeitos das “águas” ingeridas nas circunstâncias já descritas.

Quanto aos compostos “cerveja, vinho ou às “Castelo”, “Pérrier” ou água tónica (estas últimas não elas mesmas, mas o respectivo aditivo alcoólico), claro que poderão ter causado efeitos a médio ou a longo prazo, mas é da outra agua (a propriamente dita) que importa, agora, falar.

O facto de a tropa combatente ter ingerido aquelas águas fora dos aquartelamentos (voluntária ou involuntariamente), acarretou, por vezes, problemas de saúde. Não esquecer as involuntárias goladas ou “pirolitos” no atravessamento de rios e bolanhas. Estas águas transportaram para o interior do corpo micro organismos que causaram ou poderiam vir a causar enfermidades em futuro próximo.

No final da comissão, cada um foi obrigado a fazer aquilo que, na gíria de caserna, era denominado “cagar no frasquinho” – acto que exigia grande pontaria, mais facilitado, portanto, para os atiradores especiais... Analisadas as fezes (se é que eram todas analisadas...), ficávamos a saber a densidade de oxiúros, triquinas e outros familiares que, gratuitamente, transportávamos. E foi então que, mais uma vez, se manifestou um dos tais “combatentes de dentro de portas”, que só bebia águas engarrafadas, comentando com ar desdenhoso:
- Não percebo tanta preocupação. A minha análise é negativa!.

Como terapêutica para matar aquela bicharada toda, transportada clandestinamente nas entranhas, eram distribuídos comprimidos, engolidos a custo e à custa de cerveja. Porquê? – Porque eram grandes, maiores e mais volumosos que a antiga moeda de um escudo, em níquel. Era o sinal que a guerra estava a acabar e que, em breve, estaríamos navegando sobre outras águas, fazendo a GRANDE CAMBANÇA de regresso a casa.

Tenho dito!
(Embora mais houvesse a dizer).
Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6803: Contraponto (Alberto Branquinho) (13): Cambança com Caronte, ou A última viagem do soldado

Guiné 63/74 - P6943: Em busca de... (142): 1.º Cabo Dório da CCAÇ 2571, Guiné, 1969/71 (João Manuel Mascarenhas)

1. Mensagem de João Manuel Pereira Mascarenhas com data de 31 de Agosto de 2010:

Caros amigos,
Sou um antigo combatente e venho interceder junto de vós por um natural da Guiné que gostava muito de encontrar um antigo combatente da CCAÇ 2571, que esteve nessa antiga colónia entre 1969 e 1971.
Esta Companhia foi mobilizada pelo BII 19 do Funchal.
Só sei que ele era conhecido por 1.º Cabo Dório e estava a prestar serviço na messe dos oficiais.

Sem outro assunto desde já agradeço a vossa colaboração.
João Manuel Pereira Mascarenhas
mascarenhas_faro@hotmail.com


2. Notas de CV:

- A CCAÇ 2571 foi mobilizada pelo BII 19 do Funchal

- Teve como Comandantes:
Cap Inf José Maria Teixeira de Gouveia
Cap Mil Art Francisco José Galier Lindergrun

- Partiu para a Guiné em 13 de Agosto de 1969
- Regressou em 4 de Junho de 1971

- Esteve colocada sucessivamente no Cacheu, Pirada e COMBIS


Pede-se a quem tiver alguma informação acerca do 1.º Cabo Dório da CCAÇ 2571, o favor de a fazer chegar ao camarada Mascarenhas ou a nós.

Entretanto, consultando a página do nosso camarada Jorge Santos (http://guerracolonial.home.sapo.pt/encontroguine.htm), encontrei um pedido de contacto de Orlando Figueiredo, com o telemóvel 964 142 373 e e-mail orlando.figueiredo@fct.mctes.pt
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Vd. último poste da série de 31 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6913: Em busca de... (141): Informações sobre o meu pai, Juvenal Frutuoso Fernandes Dantas, Sold At Inf, CCAÇ 3518, Gadamael 1972/74 (Juvenal Dantas)

Guiné 63/74 - P6942: Memória dos lugares (97): Bolama, a antiga capital colonial, um património em ruínas (Patrício Ribeiro)


Guiné-Bissau > Região de Bolama / Bijagós > Bolama > Agosto de 2010 > Antigo Palácio de Bolama, vai cair brevemente. [Sede da antiga Câmara Municipal, onde Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai,  foi vereador em 1957; em Bolama, em 1949, nasceu o actual 1º Ministro, Carlos Gomes Jr.; aqui também viveu na infância o nosso amigo Prof Leopoldo Amado, cujo pai era chefe dos correios...].



Guiné-Bissau > Região de Bolama / Bijagós > Bolama > Agosto de 2010 > Antigo Banco de Bolama, já caiu.



Guiné-Bissau > Região de Bolama / Bijagós > Bolama > Agosto de 2010 > Futura Sede da AMI em Bolama, em recuperação.



Guiné-Bissau > Região de Bolama / Bijagós > Bolama > Agosto de 2010 > Antiga fonte com minas, casa de bombagem de água de Bolama, em recuperação. “Muitos antigos combatentes, por aqui namoraram as lavadeiras”.


Fotos (e legendas): ©  Patrício Ribeiro (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1.Mensagem do nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro (antigo grumete fuzileiro especial, em Angola, 1969/72; cooperante, primeiro, empresário, depois, na Guiné, há mais de um quarto de século; "pai dos tugas": o nosso agente em Bissau, secretíssimo...) (*)

Olá, Luís:

Junto algumas fotos recentes dos edifícios de Bolama, feitas no meu último passeio por estas bandas, em Agosto de 2010. Destinadas aos que por lá passaram, para poderem recordar. Os morcegos, esses, ainda lá estão…

Alguns destes edifícios são Monumentos Coloniais Portuguese, que se vão perdendo (*)…

Para lá chegar, o mais prático é utilizar as canoas públicas, ou de aluguer.

Há lugar para dormir e comer, no Projecto de Pesca Artesanal PRODEPA, com água corrente e com energia solar 24 horas.

Patrício Ribeiro

2. Comentário de L.G.:

Mano Patrício, e não se pode fazer nada ? Muita malta nossa passou por Bolama (a antiga capital da colónia da Guiné, até 1941, se não me engano). Chegou a ser uma centro de instrução militar importante. Sobre Bolama temos mais de meia centena de referências no nosso blogue. O património edificado pelos povos é pertença da humanidade. Muitos destes edifícios, de traça colonial, falam de uma época, que não pode ser, pura e simplesmente apagada da memória de todos nós, guineenses e portugueses... Não sei se iremos a tempo de os salvar da ruína... Felicitemos, ao menos, o exemplo da AMI que recuperou um destes edifícios... 

Há mais fotos (antigas) de Bolama, do tempo dos portugueses, no blogue Rumo a Fulacunda, do nosso camarada Henrique Cabral. Veja-se também a página de Medeiros Franke. E, naturalmente, a nossa carta militar de Bolama (temos as restantes, do arquipélago dos Bijagós, e demais ilhas, à espera de melhores dias para aparecerem na Internet)...

Obrigado, Patrício, pelo teu cuidado e sensibilidade. Vai mandando as "chapas" e "apontamentos" das tuas andanças por aquela terra verde e vermelha que nos ficou no coração. A terra e as suas gentes.  Um abraço. Luís (PS - Apita, quando voltares a Lisboa: o João Graça e eu  devemos-te um almoço ou jantar).

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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P6941: Notas de leitura (144): Amílcar Cabral Documentário (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Era obrigatório uma referência a esta antologia, abarca em grande angular o homem, o intelectual e o lutador que foi Amílcar Cabral.

Agora vou dirigir o meu olhar para outras leituras.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral: profissional, ideólogo, lutador, líder

Beja Santos

A reputada e económica Biblioteca Editores Independentes deu à estampa uma antologia intitulada “Documentário (textos políticos e culturais)”, de Amílcar Cabral, apresentada por um categorizado estudioso do líder do PAIGC, António E. Duarte Silva (Biblioteca Editores Independentes, 2008).

A principal curiosidade desta antologia tem a ver com a lógica da selecção dos textos. O organizador é autor de livros fundamentais sobre a Guiné-Bissau e domina perfeitamente todas as etapas de Cabral na actividade profissional, na intervenção internacional da luta de libertação, conhece na íntegra toda a reflexão publicada pelo ideólogo consumado. Neste “documentário” encontramos, como é óbvio, textos que figuram nas principais antologias do seu pensamento, mas houve igualmente o cuidado em seleccionar um Cabral prismático, comunicador, político de primeira linha, agitador de massas. Nessa vertente, esta antologia de pouco mais de 200 páginas cobre satisfatoriamente as diferentes facetas de Cabral.

Logo o primeiro texto, alusivo ao seu relatório final de curso de engenheiro agrónomo, a sua tese de licenciatura incidiu sob o estudo da região de Cuba (Alentejo) ou problema da erosão do solo: “A defesa do solo, condição indispensável a um processus racional de exploração da terra, não é um problema meramente técnico. Implica necessariamente a subordinação dos interesses individuais ao interesse geral, da conservação. O uso da terra, na dependência absoluta de quem a possui, tem-se mostrado incompatível com a defesa do solo. Surgem as contradições.

E o problema transcende os limites da técnica, revelando-se a sua faceta principal: tem as raízes mergulhadas na própria estrutura agrária do meio em que surge. No seu conjunto, comporta, portanto, dois aspectos distintos: um, económico e social, pelas suas causas e consequências; outro, técnico, por a sua solução carecer, em parte, da aplicação prática de conhecimentos científicos. Por isso que a sua solução não pode ser simplesmente técnica. Esquecer este facto é esquecer a raiz do problema”.

Em 1960, em Londres, com o nome de Abel Djassi, publica um libelo anti-colonial intitulado The facts about Portugal’s African colonies. Usa uma linguagem incisiva, prima pelas imagens chocantes, da mais fina pedagogia política. Um só exemplo: “99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é considerada “assimilada”. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o estatuto de “assimilada”, tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à “europeia”, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever correctamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de “assimilado”. E com uma carga panfletária bem doseada escreve, desafiador: “Os africanos das colónias portuguesas destruirão o colonialismo português. Será talvez o último regime colonial a desaparecer, assim como é o último em desenvolvimento económico e técnico e o último a respeitar os direitos do homem. Mas, de qualquer modo, o colonialismo português tem os dias contados”.

Todo o ideário de Cabral assentava, como é sabido, no lema da unidade e luta em torno da Guiné e Cabo Verde. Profundamente culto e com uma estrutura de pensamento de matriz europeia, Cabral procedia a todos os malabarismos para provar que a Guiné e Cabo Verde eram dignos de emparceirar no mesmo Estado. Obviamente, sabia impressionar pela qualidade das denúncias, mas o que escreveu, lido cuidadosamente, denota o desequilíbrio da sua argumentação. Em Dezembro de 1962, perante uma comissão da ONU, queixa-se da repressão das autoridades portuguesas, insensíveis aos apelos dos nacionalistas. Refere o acréscimo de tropas, a repressão da polícia política, a destruição de bases como Morés e Salancaur, fala em prisões, torturas e assassinatos políticos como os de Bernardo Soares e Vitorino Costa, menciona 2000 patriotas presos e 250 deportados, milhares de vítimas em S. Domingos, Farim, Oio, Bafatá, Gabu e Bissau. Na mesma sequência, e como se estivesse a falar do mesmo espaço e das mesmas pessoas escreve: “Em Cabo Verde, em especial nas ilhas de S. Tiago e S. Vicente, a repressão foi também aumentada. No mês de Outubro, 14 patriotas foram presos e deportados para o campo de concentração do Tarrafal”. Ao que parece, ninguém se preocupou com estas disparidades.

Duarte Silva fez bem em publicar longamente o extracto do seminário de quadros realizado em Novembro de 1969, e de que já aqui se fez a recensão a propósito do título “Análise de alguns tipos de resistência” (Seara Nova, 1974). É uma palestra que prima pelo fulgor, capacidade oratória, talento para comunicar com as massas. É um político confiante que transborda essa confiança para o verbo. Na mensagem de ano novo, em Janeiro de 1973, documento que é conhecido por testamento político revela uma coesão impressionante entre o pensamento e a acção. Deixando sem mais comentários o seu importante texto “A Arma da Teoria”, discurso pronunciado em Havana, em 1966, faz-se referência, por último à sua intervenção lida na UNESCO, em 1972, em que justifica o papel da cultura na luta pela independência: “Uma apreciação correcta do papel da cultura no movimento da pré-independência ou da libertação exige que se faça uma nítida distinção entre cultura e manifestações culturais. A cultura é a síntese dinâmica, ao nível da consciência do indivíduo ou da colectividade, da realidade histórica, material ou espiritual, duma sociedade ou de um grupo humano, das relações existentes entre o homem e a natureza, como entre os homens e as categorias sociais. As manifestações culturais são as diferentes formas pelas quais esta síntese exprime, individual ou colectivamente, em cada etapa da evolução da sociedade ou do grupo humano em questão. Verificou-se que a cultura é a verdadeira base do movimento de libertação, e que as únicas sociedades que podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra o domínio estrangeiro são as que preservam a sua cultura. Esta, quaisquer que sejam as características ideológicas ou idealistas da sua expressão, é um elemento essencial do processo histórico. É nela que reside a capacidade (ou a responsabilidade) de elaborar ou de fecundar elementos que assegurem a continuidade da história e determinem, ao mesmo tempo, as possibilidades de progresso ou de regressão da sociedade”.

Qualquer antologia, por definição, é uma mostra. O que está em casa é a substância da mostra. Neste caso, toda a antologia é substância, como numa sala de espelhos mostra o antologiado em diferentes revérberos, ângulos e matizes. Amílcar Cabral nas principais dimensões da sua vida.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6937: Notas de leitura (143): Três Tiros da PIDE, de Oleg Ygnatiev (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6940: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (2): Luís Cabral e a TECNIL não fizeram a cerimónia ao Irã no Poilão de Brá e a autoestrada Unidade Guiné - Cabo Verde jamais seria terminada!



Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, no período pós-independência.... Assinalada a azul a então projectada Av Unidade Guiné-Cabo Verde.

Imagem: A.Marques Lopes / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005).


1. Texto do António Rosinha (*), com data de 1 do corrente:



Quando um país africano adquiria a independência, dizia-se - pensava eu que por brincadeira  - que a primeira obra que o seu presidente mandava fazer era uma autoestrada desde o Palácio ao Aeroporto...para fugir do Golpe de Estado.

Luís Cabral tambem mandou construir essa estrada, mas não para fugir, mas para modernizar a Capital.


Uma pequena observação: Todos os portugueses, brancos pretos ou mestiços quer fossem de origem angolana ou caboverdeana ou outros, sempre consideraram que eram mais competentes e com mais capacidade para desenvolver os futuros países africanos, porque os caputos, tugas, eram muito tacanhos sem ideias.

E diziam como faziam se fossem eles a mandar. (Embora, em geral também dizia-se que o Salazar era um atraso, logo que ele se fosse, modernizávamos Portugal.)

Com o que vi na Guiné ao Luis Cabral e ministros, e o que sei que se faz em Angola, após a guerra destes anos todos, tinham razão. É tudo em grande. (E, nós com Sócrates e Cavaco e Guterres, tambem fizemos SCUT e vamos ter TGV e pinturas rupestres.)

Uma metamorfose acontecia e deu-se também comigo: Nós,  os rurais do nosso país pequeno e atrasado, quando embarcávamos com carta de chamada para as Áfricas, desinibíamo-nos quando chegávamos à Madeira e tirávamos a gravata e o fatito feito à medida no mestre alfaiate da vilória. E começava uma identificação com os portugueses locais. Fim da observação.

Depois deste àparte, tenho a dizer que Luís Cabral procedia com a desenvoltura e determinação e vistas largas, exactamente dessa ideia que transmitiam os jovens portugueses/africanos, que mais tarde vi aparecerem no PAIGC, MPLA e FRELIMO. Grandes projectos, investimentos enormes, até uma fábrica de automóveis...!

Ora acontece que me calhou a mim, e fiz por isso, fazer a topografia da Avenida UNIDADE GUINÉ BISSAU-CABOVERDE, já tinha começado 2 anos antes e estava atrasadíssima e o dinheiro previsto já estava quase todo gasto, empresta(dado) pela Holanda / CEE, em 1976/7. O projecto, embora de um engenheiro português, era grandioso e bonito.

Mal iniciei o meu trabalho, fui logo avisado pelos pedreiros, operadores de máquinas, mecânicos e ajudantes, da TECNIL,  guineenses com muitos anos de casa, que já vinham das estradas de Gabu/Pitche/Buruntuma, Bambadinca/Xime e ruas de Bissau, que aquela estrada nunca seria terminada, porque fora derrubado um grande Poilão Sagrado, para passar a estrada, e não fora feita a cerimónia exigida pelos Homens Grandes para pedir ao Irã a devida permissão.

Acredite-se no destino ou em coincidências, passado um ano, Luís Cabral é derrubado, a TECNIL estava falida, a estrada nem a meio ia, quando já tinha passado o prazo de contrato, e o dinheiro andaria diluído por qualquer lado, e só iria ser reiniciada 3 anos depois.

E no dia em que os carros de combate provocam o derrube de Luís Cabral, desfazem com as lagartas de ferro, os primeiros quilómetros preparados para receber o primeiro asfalto.

E, o que ia ser a Av Unidade Guiné-Caboverde, passou a ser (provisóriamente) Av 14 de Novembro. E o sonho de Luís Cabral e de Amílcar, além de não ser concretizado, aconteceu naquele dia a sensação que Luís foi abandonado e esquecido e vilipendiado, sem reação do PAIGC da Praia nem de Cuba ou da Rússia, com a mesma tranquilidade, com que a vida continuou quando a 20 de Janeiro de 1973, morreu Amílcar. Não apareceu nenhum aliado abertamente a apoiá-lo. Tudo calado.

"Será que tudo estava previsto pelos segundos planos do PAIGC (PAICV) e por Cuba e URSS, e que naquela luta tremenda na Guiné não era a sua libertação um fim em si mas apenas e só um meio para atingir outro fim mais importante"? E tudo nas costas destes dois irmãos?

Fiz este intervalo sobre a construção da estrada ex-UNIDADE GUINÉ-CABOVERDE, porque não quero mentir a mim mesmo, e às certezas que adquiri, e o povo que passava naquela estrada durante muitos anos, me ia abrindo os olhos. Enquanto se trabalhava na faixa direita, circulava-se pela esquerda e vice-versa. Peões e carros.

Atenção que jamais acharei justo o processo político que os dois irmãos escolheram. Apenas acho que a utopia e o entusiasmo deles foram pura e simplesmente usados, enquanto úteis...e em seguida a Guiné e os dois irmãos ficaram entregues a eles próprios, o seu papel estava terminado.

Continuando com a construção da estrada...
Em 1983 há um novo financiamento para mais uma parte da estrada. O dinheiro vem da CEE.

Estou novamente eu, pela Soares da Costa que fica com a massa falida da TECNIL, e durante uns meses constrói-se entre Chapa-Bissau e aeroporto de uma maneira incompleta (sem cumprir certos pormenores do projecto). Aí já se via que a profecia dos homens grandes se estava cumprindo. Mesmo certas ligações,  por exemplo aos quartéis de Brá,  eram eliminadas.

Só é retomada e terminada a construção em 1990 com a eliminação definitiva da parte mais interessante do projecto. É eliminada uma enorme rotunda que abragia o jardim do Alto Crim, lindíssimo, que até me doeu destrui-lo, a mim e aos estudantes que lá iam estudar à sombra de tarde e à noite quando havia luz. Sobre esse jardim hei-de escrever um poste de propósito. Hoje, está lá o parlamento. construido pelos chineses.

Essa imensa rotunda ia também englobar a área do que mais tarde foi o mercado do Bandim.

Portanto ao eliminar essa enorme rotunda, que logicamente valorizava imenso um lugar que era considerado nobre, cumpriu-se mesmo o que diziam os homens grandes:  "Nunca se vai construir a Av Unidade GUINÉ BISSAU-CABOVERDE".

Quem terminou conforme se pôde, foi a China Taiwan com um salto em flic-flac de Nino Vieira, que passou por cima da China comunista a troco de um voto na ONU.

Acompanhei, pelas Obras Públicas,  esses chineses na conclusão daquele projecto inacabado. Uns tempos antes a China comunista tinha oferecido um lindo campo de futebol à cidade de Bissau para 35.000 espectadores. Colaborei nos arranjos exteriores.

Como esta Avenida/estrada me permitiu ver muitos pormenos do que de mau e sem sentido foi a colonização europeia em África, que Portugal "arremedou", com as próprias improvisações, e me permitiu ver como alguns portugueses de origem africana provocaram uma guerra tão grande num país tão pequeno, para outros fins que não os interesses desse mesmo país, gostaria de ter ocasião de enviar mais uns postes a partir desta avenida que para mim será intimamente a minha Avenida.

Digo sempre: O esforço e sacríficio dos que cumprimos a ordem de Salazar, entre outras coisas serviu para adiar o assassinato de Amílcar Cabral.

Um abraço,

Antº Rosinha

P.S. - Espero não ofender ninguém, ao dizer o que depreendo de tudo o que vi, e que me deixam dúvidas umas vezes, certezas outras vezes. Mas sem qualquer complexo não me calo nem tapo os ouvidos. Passaram-se coisas flagrantes demais, como algumas que já disse, para ficarmos calados.
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior desta série >  1 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6916: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (1): Quando o Partido dizia que logo que colon vai embora a gente não trabalha mais