domingo, 8 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9331: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): A guerra em Dunane

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 6 de Janeiro de 2012:

Amigo Vinhal
Junto mais uma história, para as "Memórias boas da minha guerra".
As fotos foram tiradas lá no "resort" de Dunane. Escolhe o que julgares mais adequado.

Um abraço do
Silva da Cart 1689



Memórias boas da minha guerra (28)

A guerra em Dunane


Dunane era um destacamento sob a responsabilidade da Companhia instalada em Canquelifá.

Estávamos em 1968. A Companhia, em final de comissão, foi transferida para Canquelifá, deixando um pelotão aquartelado em Dunane. Em poucos dias deu para entender que estavam a gozar o merecido descanso do guerreiro. Não havia suspeita de guerra, os serviços eram poucos e o tempo ia-se gastando da melhor forma.

Dormia-se muito, bebia-se bastante e brincava-se com o relax da situação. Havia tempo e mais que tempo para colocar a escrita em dia e ainda foram inventadas algumas distracções: uns joguitos de futebol, uns jogos à malha e outros às cartas e lá se ia aproximando o fim da comissão. Acrescentemos que este laxismo tinha os seus pontos altos numa ou noutra bebedeira inerente a algum aniversário ou alguma outra data que a tropa julgasse dever assinalar.

A quebrar esta situação quase idílica, veio uma ordem para se fazer um simulacro de ataque nocturno, para testar se tudo estava bem e, ao mesmo tempo, manter aquela qualidade guerreira que tanto caracterizou a prestigiada Companhia. Falava-se que esta zona iria piorar devido à subida dos turras de Madina de Boé e à intenção do PAIGC isolar o “bico” nordeste da Guiné. Pelo menos, foi disto com que nos alarmou o Alferes “Maluco”, agora investido na categoria de chefe máximo da Tabanca e das Operações Militares, que ficou excitadíssimo com tanta responsabilidade.

Pois, nesse dia, o Areosa festejou o seu aniversário e fez questão de ter como convidados, os principais “esponjas” de Dunane. E, numa de gajo porreiro, foi também convidado o Furriel Semedo.

Comeram uma churrascada de frango que estava um mimo. Carregadinho de piri-piri, funcionou como uma chama ardente difícil de dominar. A hora do simulacro (22h00) aproximou-se rapidamente mas os convidados ainda tiveram a oportunidade de desfrutar do espectáculo proporcionado pelo Areosa. Então, não é que o gajo se lembrou de cuspir fogo como se estivesse num circo!!! Bebia goladas de petróleo e soprava para cima, ao mesmo tempo que lhe chegava o archote a arder. 

Porém, como a tabanca era baixinha, acontece que ele cuspiu o petróleo contra o tecto de palha (capim). Aquilo começou a arder e o Areosa, mais os convidados, tiveram que sair da tabanca a rastejar. A gritar, enquanto tossiam, tossiam, tentaram alertar toda a gente para o que se estava a passar. E, num ápice, o incêndio foi debelado. Todavia, o grupo da festa privada causou alguma apreensão, porque quase ninguém se segurava de pé. Foi do fumo, da aflição ou da bebida? – Eram as dúvidas que circulavam.

Quando o Alferes, armado até aos dentes, de óculos escuros, apito na mão, e sob o olhar divertido dos miúdos da tabanca, filhos dos miliíias, foi para o meio do aquartelamento dar início ao simulacro de ataque, já estava toda a gente nos seus postos de defesa, salvo alguns dos afectados pela festa do Areosa, que não atinavam com o caminho. Deles, apenas o Furriel Semedo assegurou logo a sua posição. Meteu-se no pequeno fosso do Morteiro, inactivo há mais de um ano, e toca a dar azo à sua destreza na utilização desta arma. Era um viciado por tiro instintivo de G3 e de morteiro (60, de preferência).

O Comandante do destacamento circulava apressadamente com a potente lanterna acesa (tipo holofote) e de forma bem visível entre os vários abrigos, incentivando os seus homens para uma concludente resposta ao inimigo. Até parecia um herói americano de banda desenhada, a comandar de peito aberto às balas. Logo ele, que era sobejamente conhecido por medricas.

Os tiros não foram muitos, até porque ninguém desejava perder tempo depois, a repor o stock. O Furriel Semedo já mandara umas granadas e estava a aproximar-se o alvo, a julgar pela explosão no embondeiro a uns 400 metros. E para realçar as suas capacidades já demonstradas desde a Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas e do Monte das Meadas, nos Rangers de Lamego, vira-se para norte e grita:
- Oh Felgueiras, vai buscar uma terrina e segura-a que eu vou lá meter uma granada dentro.

O Felgueiras (um dos “afectados” pelo aniversário), ria-se muito e dizia para o Joaquim Faquista, de Fafe:
- Vai, vai buscar a terrina a ver se ele é mesmo capaz.
- Estais bonitos, estais!!! Estais com uma carga bonita! Vou o caralho, é que eu vou – respondeu o Faquista, talvez chateado por não ter sido convidado para a churrascada.

Como esta discussão se prolongou uns quantos minutos, o Simões puxa o tubo do morteiro mais para a vertical, por forma a aproximar a mira para uma pequena árvore (mangueira?) visível a menos de 200 metros, já perto do recinto do futebol, e diz para o Chiribita meter mais uma granada no morteiro.

Logo que despoletou a carga, notou-se que não fora normal, dado o reduzido som produzido. Percebeu-se que parte das cargas não tinha despoletado. Logo de seguida, ouve-se o rebentamento junto ao muro do abrigo do Felgueiras. O Faquista, aflito, acelera dali a gritar:
- Foooddaa-se, os gajos estão doudos!

O Felgueiras manteve-se do outro lado do abrigo (a uns 5 ou 6 metros do rebentamento) e grita para o Faquista:
- Estás a ver, ó morcom, como ele é capaz! Porque é que não foste lá pôr a terrina???

Silva da Cart 1689

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9306: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Bolos de bacalhau à moda de Catió

4 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Caro Camarada e amigo J. Ferreira.

Se, em Mansambo e nas Tabancas por aonde andamos, aparecesse um militar assim vestido de certeza que havia gritos de chamaento. Furriel Enfermeiro....depressa...e etecetera.

Mas gostei o preto eo branco estão sempre na moda.

Abraço do T.

Anónimo disse...

Caro Silva:

Sabes o que é que eu acho? Ainda vais apanhar uma porrada retroativa e voltas para o mato.Era bem feito.

Um abraço

Carvalho de Mampatá

Manuel Joaquim disse...

1ª foto:
Ó Torcato, essa do "preto e o branco estão sempre na moda" está bem metida!

Mas que bela "passerelle"! E o modelo não lhe fica atrás! Para quem será a exibição, com aquele sorriso maroto e superconfiante?

Meu caro Ferreira da Silva, vocês devem ter servido de inspiração aos Monty Python! Um abraço

Hélder Valério disse...

Bem... o efeito do visual do civil a passear calmamente pelo meio de uma tabanca 'desabitada' acabou por fazer esquecer o 'petisco'.

Pelo teu relato parece mesmo que aquilo era só 'comer e beber'... talvez, talvez, mas olha que mais tarde já penaram bastante por esses lados...

Abraço
Hélder S.