quarta-feira, 21 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

1. Terceiro capítulo do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:

O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (3)

DE MANSAMBO PARA COBUMBA

O pior da nossa comissão estava para vir. No fim de Março, a nossa Companhia foi informada que íamos ser transferidos para Cobumba, nome para nós desconhecido, mas logo nos disseram que ficava na zona sul próximo do Cantanhez, e estava tudo dito, uma das piores zonas de guerra na Guiné.

Deixamos Mansambo, e depois de cerca de uma semana em Fá Mandinga e mais três ou quatro dias em Bissau. Era chegado o dia de rumarmos ao Sul na LDG que nos haveria de levar até Cobumba. Iniciamos a viagem ao começo da tarde do dia 7 de Abril de 1973, sábado, acompanhados daquilo que era indispensável para início da nossa instalação no terreno. Ao anoitecer chegamos algures à foz do rio Cumbijã e ali tivemos de ficar o resto da noite. Ao mesmo tempo que a LDG parava, levantou-se uma trovoada violentíssima ao ponto de ficarmos todos assustados com a agitação do mar que até aí tinha sido de calma absoluta, depois dos marinheiros terem descido as âncoras e a trovoada acalmar, passamos uma noite com a normalidade possível.

No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sitio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa. Chegamos ao inicio da tarde, estava na região muita tropa especial (Paraquedistas) mantendo segurança ao nosso desembarque. À medida que as quatro viaturas que levávamos (duas Berliet e dois Unimog 404) iam saindo da LDG, eram carregadas e seguiam fazendo uma pequena viagem de cerca de quatrocentos metros onde eram descarregadas.


Localização de Cobumba no itinerário Bedanda/Estrada de Catió

As viaturas tinham sido dias antes levantadas em Bissau por quatro condutores que para esse efeito tinham saído mais cedo da Companhia. Durante a descarga foram esses condutores a manobrar as viaturas (eu não indo a conduzir fui um dos que foram nas primeiras quatro carradas), à medida que descarregavam voltariam ao rio para novo carregamento. 

Sendo eu o condutor que naquele momento estava mais próximo da primeira que descarregou, o Capitão, Comandante da Companhia, disse-me para eu seguir com ela para o cais, tendo eu perguntado ao condutor que fizera o primeiro trajecto se ele queria que eu fosse ao rio, respondendo-me que não, que ia ele. Com toda aquela confusão nem sequer pensávamos em minas, pois a estrada teria sido supostamente bem picada e já tinham passado as quatro viaturas uma vez.

O condutor Cabral, e o Varela das Transmissões eram os únicos ocupantes que seguiam na viatura de regresso ao rio, percorreram cerca de trinta ou quarenta metros e a viatura accionou uma mina, que pelo estrago feito talvez fosse anti-pessoal, mas mesmo assim ficou alguns dias inutilizada, tendo o Cabral e o Varela ficado feridos, voltado logo para Bissau, rumo ao Hospital Militar num helicóptero que passados poucos momentos chegou ao local. 

O Varela não tendo nada de grave no dia seguinte voltou para a Companhia, o Cabral não mais voltou, foi ferido com gravidade numa vista tendo sido enviado para o Hospital Militar Principal de Lisboa.

O desembarque do resto do pessoal e de carga continuou, mas com atenção redobrada dado as coisas começarem a correr mal logo de início, o resto da operação de desembarque decorreu sem sobressaltos de maior. 

Na primeira noite a Companhia ficou toda no mesmo sitio. Na manhã do dia seguinte quase toda a formação:criptos,  radiotelegrafistas, condutores, padeiros, mecânicos, enfermeiros, alguns elementos de transmissões, uma secção de artilharia tendo a seu cargo o morteiro de 107 milímetros, o Comando da Companhia e mais dois pelotões de atiradores, foram instalar-se a cerca de quatrocentos metros. Os outros dois pelotões ficaram no mesmo sitio, assim como uma secção de especialistas de armas pesadas tendo como função ocupar-se de um canhão sem recuo, a precisar de reforma.

A cerca de trezentos metros do pessoal da nossa Companhia estavam mais dois pelotões que estando connosco pertenciam a outra Companhia, ou seja, estávamos distribuídos em três sítios formando um triângulo separados por poucas centenas de metros, um desses três era como que o equivalente à CCS do Batalhão já que aí se situava o Comando da Companhia, e quase toda a formação.

Depois foi instalarmo-nos o melhor possível o que não foi fácil, estávamos habituados a ter luz, abrigos com alguma segurança e menos guerra, ali tudo era diferente, houve que fazer valas apressadamente, montar tendas, fazer um forno para cozer o pão, tendo sempre como companhia a inseparável G3. 

No primeiro mês o PAIGC não nos incomodou… durante esse tempo foram feitos outros trabalhos, mas aquela calma… deixava antever qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que seria!

Entretanto conforme estava previsto vim a segunda vez de férias à Metrópole; numa zona sem vias de comunicações viárias, isolada com guerra por todos os lados, restava-nos fazer o trajecto pelo rio ou via aérea «mas pelo ar só em casos especiais», e lá fui numa coluna de pequenos barcos de fibra,  os “Sintex”, até ao aquartelamento de Cufar, onde existia uma pista de aviação, creio ser a melhor do sul da Guiné. 

No mesmo dia embarquei num avião Nordatlas até Bissau, foi a aeronave mais barulhenta das sete em que viajei durante o meu tempo de guerra que foram: o DC 6, o Dakota, a avioneta DO 27, o Boeing 727, o Nordatlas, o Helicóptero, e o Boeing 707, que nos trouxe de regresso à metrópole no final da comissão.

Passados dois dias em Bissau, embarquei em Bissalanca rumo a Lisboa onde cheguei ao cair da noite, se da primeira vez que vim de férias o meu pensamento estava quase sempre no dia em que teria de regressar a África, agora a confusão era ainda maior; mesmo junto da minha esposa e do meu filho muitas vezes a minha ausência era quase total, foi um tempo de tal confusão que quase nada me lembro daquilo que por essa altura terá acontecido.

Se da primeira vez conhecia bem o sitio para onde iria voltar; da segunda apenas sabia ir para uma das zonas de maior actividade operacional do IN. Ainda bem que durante as férias não tive qualquer noticia daquilo que por lá se passava, pois se tal tivesse acontecido a partida teria sido ainda mais dolorosa.

Terminadas as férias lá fui uma vez mais rumo a Bissau onde cheguei ao fim da manhã, no mesmo dia tive transporte para Cufar e de novo no barulhento Nordatlas, como os homens por mais que fossem eram sempre poucos naquela zona, à tardinha arranjaram-me boleia para Cobumba, desta vez de helicóptero com uma breve passagem por Bedanda, onde o heli que me levava se manteve no ar enquanto o heli-canhão foi a terra, cheguei a Cobumba ao fim do dia.

Ao chegar, ainda no ar, tive oportunidade de ver que muito havia mudado durante o tempo que eu estivera fora, as muitas árvores que ali existiam tinham sido quase todas derrubadas, muita terra mexida, abrigos subterrâneos que começavam a ser feitos, tudo estava diferente. 

Ao chegar a terra era grande a curiosidade que tinha em saber o que teria por ali acontecido durante a minha ausência, e, não era menor a vontade que os meus camaradas tinham de me pôr ao corrente de tudo que tinha mudado, e que não tinha sido pouco.

E o que tinha acontecido durante a minha ausência, é que, a acalmia dos primeiros dias tinha sido quebrada com enorme violência, quando certo dia pela madrugada o inimigo se infiltrou dentro do triângulo que era formado pela disposição das nossas forças no terreno, onde existiam muitas árvores que lhe serviram de abrigo, e estando eles no meio das nossas tropas e muito perto, a poucos metros, foi necessário ter muito cuidado em particular das nossas armas pesadas para não sermos nós a bombardear as nossas próprias forças, terá durado esse ataque cerca de duas horas junto ao “arame” que nessa altura ainda não havia. 

Mas como em tudo na vida também na guerra havia momentos de sorte, e apesar da violência do ataque, dos nossos apenas um militar que estava na nossa Companhia acidentalmente ficou ligeiramente ferido (pertencia à Engenharia sediada em Bissau e tinha ido acompanhar material), do lado do inimigo segundo informações posteriores, terão tido várias baixas. Isto de estar tanto tempo debaixo de fogo não é coisa que se deseje a ninguém, só quem por lá passou pode fazer ideia do que isso era.

Durante as primeiras semanas foram levantadas várias minas próximo do sitio onde passámos a primeira noite, para sorte nossa estavam uns metros mais ao lado, talvez o sitio onde o inimigo pensasse que íamos acampar, o furriel que levantou essas minas assim como outras que entretanto vieram a ser colocadas, viria a ser uma das baixas da nossa Companhia, vitima dum acidente estúpido como são quase todos os acidentes.

Nessa altura ainda as valas eram de certo modo improvisadas, e abrigos só os destinados às comunicações, era pouca a luz eléctrica que havia, fornecida por um pequeno gerador que quase não iluminava a zona circundante de um dos três sítios em que estávamos sediados. 

Foi a partir desse ataque quase corpo a corpo que tudo se alterou, as árvores que tinham servido de abrigo ao inimigo foram quase todas deitadas abaixo, valas mais organizadas foram feitas, todos passamos a dormir em abrigos que tivemos de ser nós a fazer.

Para que o buraco a abrir tivesse mais segurança tinha de ser pequeno, assim juntaram-se dois ou três e cavavam até que coubessem de pé, depois era coberto com troncos de palmeiras e com cerca de um metro de terra por cima. 

Eu e outro condutor, o meu amigo Cruz, abrimos o nosso abrigo, se não tem sido o incidente do primeiro dia certamente também o Cabral faria parte do nosso grupo de abrigo. Durante a abertura sofri um ataque, não de fogo inimigo mas sim de abelhas, presumo que estivessem na terra entretanto remexida, pois apenas as vi quando começaram a espalhar sobre mim ferrões sem dó nem piedade, a minha primeira reacção foi meter-me debaixo de um chuveiro improvisado que nós tínhamos, três barris em cima de um cajueiro, mas elas não me deixavam, foi então que comecei a correr pelo meio do capim e só assim me vi livre delas.

Mas a tormenta não terminou ai, é que a tenda que servia de enfermaria ficou cheia de abelhas, e o enfermeiro que estava por perto enquanto viu por ali uma abelha não me quis ir tratar, com muita sorte minha não sou alérgico às ferroadas! Quando as abelhas abalaram lá veio o enfermeiro que me retirou cerca de trinta ferrões do rosto, dos quais sete estavam numa orelha, para além das dores que senti que foram muitas, não provocaram qualquer inflamação, mesmo a esta distância no tempo, ainda não esqueci a actuação menos própria do enfermeiro, coisa rara entre camaradas, mas mesmo em situações de guerra há sempre alguém que...

Depois de feito o abrigo era tempo de nos organizarmos, aproveitando alguma madeira que por lá havia fizemos cada um a sua cama onde colocamos o colchão de campanha que tinha sido distribuído a todos os elementos da Companhia, só que, o meu durante o tempo em que dormi no chão rompeu dois dos cinco canos de ar que o compunham, a almofada era independente, como não podia dormir assim, foi necessário vazar os três que ainda tinham ar e ficar só com a almofada. No sitio do colchão estava uma manta dobrada, e assim tive de dormir durante os quase nove meses que lá estivemos, dentro do abrigo tínhamos como companhia a G3,  os cinco carregadores, e mais um cunhete com mil munições.

O trabalho dos condutores era quase nada, tínhamos pouco mais de um quilómetro de picada para percorrer desde as nossas instalações até ao rio, à medida que o tempo ia passando também as viaturas que tínhamos eram cada vez menos, a primeira a ficar inutilizada definitivamente foi uma Berliet. 

A comida era feita para toda a Companhia no mesmo local e depois transportada para o sitio onde estavam os outros elementos. Certo dia seguiam na viatura o condutor e um cozinheiro levar o café, era madrugada, porque estava previsto uma saída das nossas tropas, o que não viria a acontecer, porque uma mina rebentou fazendo ir pelos ares a viatura e os dois ocupantes, e claro o pequeno almoço que eles iam levar.

Mas uma vez mais a sorte esteve connosco, perdeu-se a viatura mas os ocupantes sofreram apenas o susto e já não foi pouco, o condutor foi o mesmo que em Mansambo conduzia a viatura que accionou a primeira mina das várias com que fomos contemplados, onde o furriel Ferreira perdeu um pé, - de seu nome José de Sousa

A viatura que tinha accionado a primeira mina em Cobumba, se da primeira vez foi possível ser recuperada, à segunda já não; ficou completamente destruída, ao accionar mais uma mina dentro do arame junto a casas que andávamos a construir para a população, por essa altura já o PAIGC possuía os mísseis Strela com que tinha abatido várias aeronaves, era a terceira mina a ser accionada em Cobumba e também a que fez mais estragos, para além da perda da viatura houve três feridos graves. 

Como de costume foi pedido uma evacuação urgente via rádio, ficando nós à espera que não demorasse muito tempo, como normalmente acontecia, mas com a introdução dos Strela na guerra tudo se alterou; os nossos camaradas feridos estiveram no local onde supostamente o helicóptero os ia buscar, cerca de três horas! A mina rebentou por volta das duas horas da tarde, já passava das cinco quando de Bissau informaram que a evacuação tinha que ser feita em Cufar, depois de toda aquela espera foi necessário organizar uma coluna via rio Cumbijã com os nossos três barcos, e com o apoio dos fuzileiros que estavam próximo de nós, no Chugué. 

Era já noite quando a evacuação se efectuou, não de helicóptero como era costume, mas sim de outra aeronave que suponho ter sido um Nordatlas.

Era já tarde quando o pessoal e barcos utilizados na evacuação regressaram, se o nosso moral era já muito baixo, a partir dai ficou de rastos, todos pensávamos que um de nós poderia ser a próxima vitima do novo rumo que a guerra tinha tomado, necessitar de ser evacuado e não ser possível em tempo útil.

Das quatro viaturas que tínhamos, duas já estavam inutilizadas, mais ou menos de oito em oito dias estávamos de serviço de condução, o resto dos dias era esperar que o tempo passasse, quase sempre por perto dos abrigos. Todas as noites tínhamos de fazer reforço, o primeiro turno era apenas feito por um militar, os outros eram feitos a dois, a zona era tão má que não podíamos facilitar em nada, como éramos poucos, até os furriéis tinham de fazer reforços, e, contrariamente ao que estavam habituados, ir como nós à cozinha buscar a comida, pois ali tudo era diferente.

A razão que nos levava a estar sempre perto dos abrigos é que as flagelações à distância de quando em vez aconteciam, e a qualquer hora, mas mais grave ainda é que eram muitos os aquartelamentos ou acampamentos na zona, e no inicio dos bombardeamentos não sabíamos a quem se destinavam, só depois de começarem os rebentamentos, e de informações via rádio ficávamos a saber quem eram os destinatários.

Em Cobumba quase todos usávamos chinelos de plástico, quando começava um ataque e tínhamos de fugir para os abrigos, perdíamos logo os chinelos. A correr sem ser a medo nunca os perdíamos. Era mais um passatempo que tínhamos, depois da “festa” acabar havia que procurar onde estariam os chinelos.

Os ataques do IN por vezes tinham também como objectivo desmoralizar as nossas tropas, pois chegavam a disparar duas ou três vezes o RPG, uma ou duas morteiradas e depois paravam. De realçar que a zona onde nos encontrávamos era terra do PAIGC. Algumas vezes nem sequer respondíamos às provocações ou respondíamos na mesma medida.

Certo dia apareceu uma mulher com uma galinha para vender, coisa rara naquelas paragens, pois por ali o povo não estava connosco. Passado este tempo chego a pensar se a galinha não terá sido um pretexto para fazer algum reconhecimento atendendo ao que a seguir se passou.

Alguns de nós condutores compramos a galinha, e claro, fomos logo tratar de a pôr a jeito de ir para a frigideira. Ainda que funcionasse poucas vezes, tínhamos uma máquina a petróleo que o condutor Cruz logo se prontificou para pôr a trabalhar para fritar a galinha. 

Estava a começar a aquecer o azeite, começam a cair algumas morteiradas, há que deixar a galinha e fugir para o abrigo, mas o fogo foi pouco e sem consequências. O Cruz volta ao trabalho, estava a pôr os primeiros pedaços na frigideira volta a haver mais fogo, uma vez mais tudo para os abrigos, o Cruz começava a ficar impaciente, o fogo inimigo voltou a ser pouco, as nossas armas pesadas respondiam de igual forma, esperamos mais algum tempo tudo se calou e nós pensamos que para aquele dia já chegava,mas bem nos enganamos. 

O cozinheiro voltou ao serviço convencido que desta é que era, mal começa a pôr a máquina a trabalhar nova flagelação, desta vez com um míssil à mistura e mais umas poucas morteiradas, e como sempre todos a fugir para os abrigos, daquela vez as nossa artilharia creio que nem respondeu ao fogo do IN. O Cruz bastante aborrecido com a situação decidiu, agora ataquem mais ou não, eu é que não saio daqui enquanto não fritar a galinha! E desta vez pararam mesmo, mas só naquele dia, que a festa haveria de continuar quando eles entendessem.

Por essa altura ainda tínhamos duas viaturas operacionais. Certo dia à tardinha o furriel mecânico, acabado de chegar de férias da Metrópole, foi dar uma voltinha com uma Berliet. Andou cerca de quinhentos metros, estava uma mina na picada que o fez ir pelos ares, mas também desta vez com sorte, a viatura ficou destruída mas ele apanhou apenas um grande susto, o que não foi nada que ele não merecesse. 

Em Mansambo, quando tínhamos muitas viaturas e percorríamos muitos quilómetros, víamos condutores de outras Companhias que debaixo e em volta dos bancos traziam vários sacos com areia, tendo em vista proteger um pouco o possível impacto do rebentamento das minas a que estávamos sempre sujeitos, mais que não fosse do ponto de vista psicológico protegia-nos. Pois o nosso furriel mecânico não autorizava que puséssemos esses sacos!...

A partir dessa altura ficamos apenas com uma viatura operacional, o serviço dos condutores era cada vez menos, em boa verdade também não podíamos ser sujeitos a grandes esforços físicos, pois a alimentação a que estávamos sujeitos não permitia que tal acontecesse. 

À medida que o tempo passava mais difícil se tornava o abastecimento de géneros alimentares. Até parece mentira mas não é, houve um dia em que o almoço foi arroz cozido acompanhado com marmelada, e no local que servia de cantina, não havia nada que pudéssemos comprar.

Não havia bicho que chegasse ao arame que escapasse. Certo dia, um que os nativos diziam ser gato foi atraído à luz durante a noite tendo sido abatido, mais parecia ser um cão na fisionomia, mas pouco importou se era cão ou gato, o destino foi ser assado com batatas no forno dos padeiros. 

De outra vez foram os nativos que mataram uma cobra muito grande para lhe tirarem a pele, mas logo houve alguém que achou por bem não desperdiçar tal manjar, e também a cobra foi parar ao forno. Eu não consegui comer mas lá que o petisco parecia estar bom isso parecia. Outro dia foi a vez de esquilo guisado com batatas, dessa vez também eu quis provar, ainda pus um bocado na boca mas não o consegui comer.

A pouco mais de um mês de abandonarmos Cobumba, num dia em que eu estava de condutor de serviço com a única viatura que tínhamos operacional, os picadores como era costume fizeram a picagem do trajecto que eu depois teria de percorrer onde detectaram uma potente mina anti-carro, que foi levantada pelo Furriel Trindade o homem encarregado de fazer esse trabalho. Ao contrário de outras que foram accionadas no local, essa foi levada para a nossa arrecadação onde estava muito material relacionado com a construção, enxadas, picaretas, pregos e outro material, parte dessa arrecadação servia também de depósito de géneros alimentares, onde se encontravam umas dezenas de sacos de farinha para cozer pão. No que à alimentação diz respeito o pão foi a única coisa sempre boa.

Uma tarde, passados três dias após o levantamento da mina, estavam três militares junto do local onde ela se encontrava. Nunca ninguém soube o que se terá passado, o certo é que ouvimos um estrondo enorme, nos primeiros instantes chegámos a pensar que teria caído por ali algum foguetão, mas não, depressa encontramos a causa, a mina que tinha sido levantada dias antes, tinha explodido e feito desaparecer as instalações, ferindo gravemente os três homens que lá se encontravam, que viriam a ser evacuados para o Hospital Militar em Bissau.

Na manhã do dia seguinte recebemos a noticia que dois tinham falecido, o Furriel Galeano e um soldado do 2.º Pelotão cujo nome já não me recordo, o outro esteve cerca de um mês no hospital, vindo ainda a tempo de regressar à Companhia que passados poucos dias regressava a Bissau. 

Foi terrível o que aconteceu, mas podia ter sido ainda pior, do lado que servia de depósito de géneros, separados apenas por umas chapas, estavam mais quatro homens a jogar as cartas, tiveram a sorte de estar encostados a uma pilha de sacos cheios de farinha, que amorteceu o impacto e só por isso a tragédia não foi maior.

Faltavam poucos dias para sairmos de Cobumba sofremos mais um violento ataque que durou cerca de trinta minutos, que pareceram horas, em que o inimigo utilizou várias armas: o morteiro 82, o canhão sem-recuo, o RPG 7 entre outras, mas uma vez mais a sorte esteve connosco, apesar da precisão do bombardeamento pois caíram várias granadas dentro do aquartelamento, e junto há picada que só por sorte ainda não estávamos a percorrer. 

Apenas tivemos dois feridos ligeiros, vitimas do rebentamento de uma granada de RPG7, eram os apontadores do nosso canhão sem-recuo que ao introduzirem a primeira granada ficaram logo inoperacionais. Houve uma vitima mortal, uma mulher da população.

Nesse dia também eu estava de serviço de condução, já tinha tomado banho, tomava banho normalmente três vezes ao dia , havia pessoal nosso que tinha ido a Cufar, como de costume via rio Cumbijã, e nós tínhamos de os ir levar e buscar ao rio assim como aos barcos. Era fim da tarde, estávamos no cais à espera que eles chegassem, ao mesmo tempo que a aviação bombardeava não muito longe de nós, ainda os Fiat iam a caminho de Bissau, já estávamos a ser bombardeados, o que levou alguns a pensar que seria ainda a nossa aviação a bombardear, mas não, era mesmo Cobumba que estava a ser atacada, o rio naquela altura estava com a maré baixa cerca de três ou quatro metros, muitos de nós tentamos abrir buracos no lodo deixado pelo baixar da maré para nos protegermos, se é que isso ajudava alguma coisa, mas era o que nos restava fazer, mas as granadas mais próximas caíram a cerca de cem metros de nós.

Passados alguns dias chegou a Companhia que nos foi render a Cobumba. Durante o tempo em que estivemos com os “piras”., cerca de dez dias, fomos atacados uma vez, para eles era o baptismo de fogo, mas também desta vez apesar de nos mandarem alguns foguetões à mistura não nos causaram qualquer dano, a não ser algumas pisadelas pois os abrigos onde nos abrigávamos, durante este ataque ficaram com o dobro da lotação.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro António Eduardo:
Se há posts com muitíssimo interesse, este é um deles.E mais, este post é de um realismo, de uma descrição tão pormenorizada que, só por si, carateriza com rigor o que foi o primeiro semestre de 73, num dos piores sítios da Guiné e que muito contribuíu para o fermento do 25 de Abril.
São pessoas como tu que tornam este blog interessante e fonte da história.
Um abração
carvalho de Mampatá

antonio graça de abreu disse...

Meu caro António Ferreira

Cobumba era mesmo um grande burako e vocês viveram aquela guerra a sério.
Deves ter permanecido lá durante uns seis meses, eu lembro-me da chegada a Cobumba da companhia de periquitos que vos veio render, creio que em finais de 1973. Eu estava mesmo ao lado, em Cufar, a oito quilómetros de distância e no meu Diário da Guiné faço várias referências a Cobumba, aos ataques que vocês sofreram e a que assisti
subindo ao telhado da minha tabanca,
vendo o fogo de artifício dos rpgs, das balas tracejantes.
Uma adenda apenas, vocês em Cobumba eram abastecidos de frescos, aí umas duas vezes por semana (couves, frangos congelados, carne congelada)
por heli que voavam e iam a Cobumba. Eu próprio fui uma vez a Cobumba de héli em finais de 1973, com os pilotos dos frescos. Ao lado seguia sempre o helicanhão.
Mas é verdade que as evacuações eram quase sempre feitas de sintex pelo rio, até Cufar, e depois de avião para Bissau. Um sofrimento
com alguns homens a morrerem aos poucos. Era mesmo guerra.

Abraço e obrigado pelo teu relato.

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

Um extraordinário relato das duras condições, físicas e psicológicas, em que nós tivemos que atuar, no TO da Guiné, de Gandembel a Cobumba, da ponte Caium à ponte do Udunduma, de Canjambari a Gadamael, de Guidage a Madina do Boé, de Cantancunda a Ponta do Inglês...

Continua, António Eduardo. Li com emoção o teu dramático relato da ocupação e defesa de Cobumba. E fico feliz pelo teu talento para a escrita! Fico feliz por estares no nosso blogue!

Conheci muito bem Mansambo, em 1969/71, Cobumba não. Vou tentar recuperar as referências feitas pelo nosso camarigo António Graça de Abreu, no seu diário, a esse Bu...rako chamado Cobumba.

António Teixeira disse...

Caro Ferreira:

Li com bastante atenção o teu post, que desde já te felicito pelo realismo ali patente e por todo o interesse que ele desperta.
No entanto, gostaria de fazer aqui um pequeno reparo:
Logo no início da tua crónica, no 3º parágrafo, tu dizes, e passo a transcrever:
"No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sitio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa".
Bem, desculpa-me lá, mas isto não é bem correcto, e passo a explicar porquê:
Não sei bem ao certo quando, talvez nos finais de 72 ou inicios de 73, e partindo do princípio que Cobumba era um dos locais previlegeados pelas forças do PAIGC para atacarem as tropas que estavam aquarteladas em Bedanda (onde eu estive desde inicio de 72 até Julho de 73), recebemos ordens de deslocarmos para Cobumba um pelotão, que ficaria acampado durante uma semana, e que findo esse tempo, seria substituido por outro pelotão. E digo isto com conhecimento de causa, pois eu fui um dos que fui para lá (embora só uma vez), onde não tinhamos absolutamente nada. Se bem me lembro, a comida era-nos trazida diàriamente de Bedanda, e dormiamos em tendas de lona. à volta de todo o acampamento havia uma pequena vala que nos protegia.
Lembro-me bem que uma noite tivemos um ataque mesmo junto à vala, mas que não durou muito tempo. O pior foi que nessa mesma noite, o ataque foi repetido umas 5 ou seis vezes, mesmo junto à vala e até com direito a bocas, como , vai para Lisboa, Tuga, etc.
Viemos no dia seguinte a saber que todo aquele estardalhaço foi feito apenas por um homem, que além da chatice que nos causou, ainda nos deixou práticamente sem munições, pois elas foram quase todas gastas nesses sucessivos ataques,
Creio que a nossa companhia (C.Caç 6 - Bedanda ) deixou de ir para lá com a vossa chegada.
E pronto. Mais uma vez obrigado pelo teu relato que me transpôs mesmo para lá.
Um grande abraço.
António Teixeira

Luís Dias disse...

Caro António Eduardo

Achei excelente o teu relato da aventura da tua companhia no Burako de Cobumba. De facto, ainda por cima depois de estarem em Mansambo (que eu conheci logo no início da minha comissão na operação Trampolim Mágico), que não sendo nenhum paraíso, tinha já umas instalações razoáveis, irem abrir à força de braços, um novo aquartelamento numa zona privilegiada pelo PAIGC, foi, na realidade, obra de mérito, que o teu relato bem traduz.
Um abraço.
Luís Dias

Luís Graça disse...

António Eduardo:

É membro da nossa tabanca, aliás, o primeiro dos primeiros, a seguir a mim, o nosso tabanqueiro nº 2, o minhoto Sousa de Castro, que esteve no Xime e depois foi para Mansambo, quando vocês receberam ordem de marcha para o Cantanhez.

O Sousa de Castro pertencia, portanto, á CART 3494 (Xime e Mansambo, dez 71 / abr 74), do teu batalhão,o BART 3873, sedeado em Bambadinca...

Da tua companhia temos cá o António Duarte, ex-Fur Mil, que foi "oferecer os seus serviços à CCAÇ 12" (a subunidade que eu ajudei a formar, em 1969)...


Eis como ele se apresentou num poste há tempos aqui publicado, e em que se dirige ao Sousa de Castro, que também criou um blogue, sobre a sua CART 3494:

(...) "Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril.

"Quero dar-lhe os parabéns por ser um activista das nossas recordações, quer através do blogue do Luís Graça, quer noutras paragens na Net. Afigura-se-me que nos faz bem.

"Da sua companhia [CART 3494] tenho encontrado o ex-furriel Luciano, que trabalha em seguros, na CGD. Recordo também com muita saudade o Bento, que esteve comigo na especialidade em Vendas Novas. Faleceu em 22 de Abril de 1972." (...)

Também o nosso camarada Manuel Maia, o nosso bardo/poeta do Cantanhez, foi teu vizinho: esteve em Cafal Balanta...

44
Saídos do inferno de CAFAL,
rumamos,p´ra CAFINE,em zona igual,
dois grupos p´ra COBUMBA, uma outra frente.
Chegados a FATIM vimos o céu,
que o CHUGUÉ, certamente também deu,
e o DUGAL emprestou, seguramente...


Lê o Cancioneiro do Cantanhez!

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Cobumba


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2009/02/guine-6374-p3915-cancioneiro-do.html