sexta-feira, 23 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9643: Notas de leitura (344): A descolonização da África Portuguesa, por Norrie MacQueen (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 22 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
Este livro de Norrie MacQueen é considerado pelos especialistas como a primeira síntese rigorosa sobre a descolonização da África portuguesa, nada tem a ver com os textos de exaltação a favor da independência e da descolonização nem procura recriminar quem defendeu o Império português nem aprecia o comportamento por vezes destrutivo dessas ex-colónias. Este estudo tem a originalidade de pôr em destaque as raízes metropolitanas da desagregação imperial, associa o fenómeno à evolução da Guerra Fria e toma sempre em consideração a extrema debilidade do que se convencionou chamar o Terceiro Império Português, baseado em África.

Um abraço do
Mário


A descolonização da África Portuguesa

Beja Santos

Não se pode ignorar o nome do investigador Norrie MacQueen quando se pretende ter uma visão de conjunto de como se processou a descolonização da África portuguesa. Terá sido o primeiro estudioso a apresentar uma investigação equilibrada quanto às principais premissas que conduziram por obstinação do Estado Novo a uma luta armada que conduziu à dissolução do Império. O livro “A Descolonização da África Portuguesa” (por Norrie MacQueen, Editorial Inquérito, 1998) é uma análise exaustiva dos porquês do colapso desse império em que se analisa o funcionamento do Portugal metropolitano e as interdependências económicas entre a metrópole e o Ultramar. Quando surgiu a edição inglesa (Norrie MacQueen é o professor de Ciência Política na Universidade de Dundee, Grã-Bretanha) logo a crítica saudou o trabalho classificando-o como “a primeira síntese séria sobre este importante acontecimento”.

Obviamente que esta recensão parte de algumas categorias gerais da leitura do investigador para se cingir à Guiné.

O autor adverte que pretende preencher uma lacuna: A partir dos anos 60 apareceu uma considerável quantidade de materiais sobre as lutas de libertação na África Portuguesa e, depois, sobre o desenvolvimento dos novos Estados saídos da descolonização. De maneira geral, esses estudos orientavam-se segundo um ponto de vista africano e descuravam a análise sistemática das ligações entre o nacionalismo revolucionário na África lusófona e o processo revolucionário na metrópole. Também a década de 70 foi um período de significativas alterações nas relações entre as superpotências. A década começou com o desabrochar do desanuviamento e terminou com o seu colapso. Consequentemente, os especialistas em relações internacionais tenderam a interpretar a evolução na periferia africana do equilibro central, nesta altura mais em termos gerais do que em termos locais. Poucas tentativas houve para ligar estas grandes alterações nas relações entre as superpotências à evolução da política revolucionária e ao processo de descolonização em Lisboa, durante 1974 e 1975. São estes os meus dois objetivos: destacar as raízes metropolitanas da desagregação imperial e tentar integrá-las num conjunto de outros fatores ocasionais existentes em África e no vasto sistema internacional.

Primeiro, o colapso do Terceiro Império de Portugal prende-se com o fenómeno de ocupação, depois da Conferência de Berlim tornou-se crucial ocupar o território e marcar-lhe fronteiras. O Brasil já estava praticamente afastado da órbita política e cultural de Lisboa, em breve vão surgir cobiças nomeadamente da Alemanha sobre as parcelas do Império. O autor refere minuciosamente as etapas da ocupação e pacificação, o modo como o Estado Novo encarava as parcelas africanas e as aspirações nacionalistas da época. Em meados dos anos 50 começam a soprar os “ventos da História”, em 1957 a PIDE abre delações em todos os territórios africanos e começa a organizar a rede de informadores. A Casa dos Estudantes do Império acaba por ser o berço das futuras chefias africanas, é neste tempo que se vão organizar os movimentos de libertação. O autor descreve minuciosamente os acontecimentos metropolitanos de 1961, o início da guerra em Angola, depois na Guiné-Bissau e por último em Moçambique. E questiona: “O que é que determinou a adoção de diferentes análises e programas marxistas dos três movimentos? Contribuíram fatores globais, africanos e, particularmente portugueses. As lutas armadas foram cronologicamente enquadradas pela revolução cubana e pela vitória do Vietname do Norte e deram-se durante o período em que o terceiro mundo estava a afirmar o seu lugar no sistema internacional. Durante esses anos, o discurso do anticolonialismo e da libertação nacional era inseparável das críticas radicais, sociais e económicas”. Como se compreenderá, depois da queda do Muro de Berlim e do colapso soviético estas experiências socialistas ficaram na maior orfandade, decompuseram-se.

Segundo, é igualmente indispensável compreender como a guerra de África afetou internamente o regime, nomeadamente no tempo de Marcello Caetano. Este revelou-se incapaz de concretizar autonomia progressiva, muito provavelmente ficou prisioneiro da lealdade que devia ao salazarismo. A despeito da crise relacional entre Caetano e Spínola, o primeiro ainda fez a tentativa, em 1973 para nomeá-lo ministro do Ultramar. Não há hoje resposta documentada para o que queria Caetano, pode admitir-se que pretendia apoio reformista numa altura em que a comunidade internacional, por larga maioria, tinha reconhecido a república da Guiné-Bissau. O fundamental é que Spínola rompeu com Marcello Caetano e iludiu-se com o que escreveu em “Portugal e o Futuro”, o livro que contribui decisivamente para o golpe do 25 de Abril.

Norrie MacQueen refere as conversações entre o mensageiro do governo de Caetano e os representantes do PAIGC, em Londres, Março de 1974. Dá uma interpretação a esta atitude de Caetano: “A concordância, sob pressão diplomática, em participar em conversações, está longe da conclusão e execução de um acordo. No entanto, ao assumir que estava realmente pronto a encarar um acordo direto com o PAIGC e a fazê-lo sem condições prévias, estava a demonstrar uma flexibilidade relativamente a África pelo menos tão grande como a de Spínola”. Depois o autor discorre sobre as teses federalistas de Spínola, a criação do MFA, detalha as primeiras negociações com o PAIGC, o impasse que se seguiu, o aparecimento da Lei Constitucional n.º 7/74 e o compromisso de descolonização.

Terceiro, o investigador reconhece a importância do MFA na Guiné-Bissau, considera-o como a grande componente do movimento, descreve a destituição de Bethencourt Rodrigues, a interceção de Senghor e o conteúdo das conversações de Londres e Argel. Considera que pesou as atividades do MFA da Guiné o baixo moral das tropas, o MFA começou imediatamente a pedir a retirada incondicional, constitui-se mesmo o Movimento para a Paz em que os militares se manifestavam energicamente contra a guerra.

Quarto, em jeito de conclusão, o autor considera que foi com a Guiné-Bissau que Portugal teve, no período pós-colonial, as mais satisfatórias relações. E justifica: a ausência do problema de uma colónia de brancos, escasso nível de contenciosos económicos e a transferência do poder para um movimento de libertação incontestado. No entanto, Portugal será mantido à margem nas divisões cavadas entre cabo-verdianos e guineenses e mesmo quando a etnia balanta se arvora ou pretende arvorar em etnia dominante. Quando se deu o chamado golpe Paulo Correia, as relações esfriaram temporariamente. A Guiné foi a ex-colónia que se manteve mais próxima do espírito português: advogou a formalização de relações entre os cinco Estados africanos de língua portuguesa e a antiga metrópole; apoiou para que Portugal fosse eleito para um lugar não-permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. E adianta mais um argumento pouco conhecido: “O bom relacionamento da Guiné com Portugal foi facilitado pelo relativo distanciamento que manteve com a União Soviética depois da independência. A rapacidade da frota pesqueira soviética ao largo da costa da Guiné provocou um claro esfriamento das relações, pouco depois da independência, e a Guiné-Bissau tomou o seu confessado não alinhamento suficientemente a sério para recusar os pedidos de Moscovo para a concessão de facilidades para a construção de uma base naval no Rio Grande de Buba”.

Enfim, uma obra que não deverá ser descurada quando se pretende ter uma visão panorâmica dos múltiplos fatores que devem ser equacionados no estudo da descolonização da África portuguesa.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9626: Notas de leitura (343): Testemunho, de Filinto Barros (Mário Beja Santos)

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