quarta-feira, 11 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, com data de 5 de Abril de 2012:

Caro Luis e Carlos Vinhal,
Num comentário ao mais recente Post da minha série de memórias de infancia, o Luis Graça, com a perspicácia que lhe é caracteristico, perguntou-me se, por acaso, havia alguma relação entre o velho Irã dos Poilões sagrados e o Djinné dos muçulmanos.
Nunca tinha pensado no assunto e na tentativa de refletir e encontrar as (des)semelhanças acabei compilando o texto que agora vos envio para vossa apreciação. É um texto de pura curiosidade e criatividade pessoal sem qualquer pretensão de carter sociológico ou etnológico.

Um abraço amigo aos dois e cumprimentos aos demais editores e colaboradores da TG.
Cherno Baldé


Viagem pelas maravilhas da minha terra

O Irã animista e o Djinné muçulmano

Entre o temível e poderoso Irã dos povos animistas das florestas do sul e o Djinné, vizinho ciumento, atrevido e folgazão dos muçulmanos da região Sahelo-Sahariana, coexistem algumas similitudes da mesma forma que se podem observar grandes diferenças, dependendo do ponto de vista de quem observa de fora.


O Irã - onde vive e como se manifesta?

Entre os chamados animistas, o Irã desempenha, por meio de cerimónias, rituais próprios e canais de comunicação específicos, uma importante função reguladora da vida social, económica e politica das comunidades que animam a sua existência, formando um tronco comum cuja base se assenta no culto dos mortos e se reproduz através de mitos fundadores, à volta dos quais se constroem os pilares (a cosmogonia) das sociedades tribais e se processa a ligação essencial entre o mundo visível (dos vivos) e o mundo invisível, ou seja, dos que tendo partido para o além, ainda continuam a influenciar a vida quotidiana dos vivos por meio de sinais e de linguagens que apenas os iniciados, pessoas consagradas, os Djambakôs, podem entender e decifrar.

Falar do Irã é falar da vida que, por sua vez, nos faz retornar a terra, a mãe que gera a vida e que é, ao mesmo tempo, o centro, o umbigo do mundo onde convivem e interagem dois mundos que se afrontam e se completam. A trinómica ligação entre as dimensões: Irã-vida-terra, é tão importante para o funcionamento do culto tradicional como é essencial a manutenção da eterna e fundamental ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, entre as ideias, a magia e a religião dos homens.

Os Djambakôs, sacerdotes por excelência e intermediários da comunicação entre dois mundos, não usam artefactos alógenos. Os seus pés nus devem estar em contato com a terra, devem ser puros na sua conduta moral e espiritual e fazer uso de uma linguagem simples e genuína.

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Local de culto animista

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Divertido, às vezes, sem nunca sair do sério, o Irã é justo nas sentenças que aplica e implacável nas suas represálias. Não esquece uma promessa dada, que pode passar dos avós aos seus bisnetos, de geração em geração, sem mudar a sua essência. As regras que impõe são para cumprir a risca (...)


Djinnégi – vizinhos, admirados e odiados

Quanto ao Djinné dos muçulmanos, qual um rei (Irã) destronado do seu trono de culto, trata-se de um ser ambivalente, dessacralizado, com características que variam entre o ser humano e o ser diabólico, mas sobretudo ele é um ser extraordinário que em certas ocasiões é dotado de super-poderes e noutras não passa de um ser velhaco e oportunista que não hesita em trocar suas pernas tortas e moles com as de uma pobre criança desprotegida.

O Djinné, vizinho admirado e odiado ao mesmo tempo, serve de bode expiatório para justificar as fraquezas do muçulmano assim como todas as frustrações da vida no mundo estreito, obscuro e adverso em que se tenta impor, malgrado a sua crença num Deus Único e Omnisciente. Não estando autorizado a tirar a vida dos homens, uma dádiva de criação divina, ele é, frequentemente, culpado de estar na origem da paralisia infantil e da doença dos pés moles, dos maus-olhados e dos ventos quentes, maléficos das regiões tropicais.

Por vezes tido como profundamente religioso e praticante assíduo, cuja devoção não é valorizada por Deus, Senhor da terra e dos céus, na justa medida da sua dedicação, outras vezes é tido como um alcoólatra incorrigível que estimula a desordem e o caos e atormenta os espíritos mais fracos.

O Djinné, também, habita na natureza, com morada nas grandes árvores, em particular nas mais frondosas e saborosas, a Tabay e a Tambarina. Como as pessoas, em relação aos quais sente inveja e tem ciúmes devidos a benevolência que Deus lhes concedeu em seu detrimento, há Djinnés de todos os tipos e para todos os gostos: homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus. O seu meio de locomoção preferido são os nossos vulgares remoinhos de vento que acompanham o período quente da quaresma tropical.

Regeneração natural > Flor e fruto da bananeira

Assim, os remoinhos concentrados e longilíneos que circundam a aldeia dirigindo-se, calmamente, as bolanhas, junto as nascentes de água, são os mais velhos que vão matar a sede. Os mais novos, quando se deslocam não resistem a tentação de entrar nas aldeias, devastando casas e campos de lavoura, pondo em prática, pelo seu comportamento odioso, as ideias conspiratórias tecidas pelos mais velhos nas conversas de bentém, a sombra das árvores tambarinas e tabay.

Para seu azar, não tem seguidores nem servidores e os seus detratores são numerosos. Às vezes, pondo de parte o terrível ódio da vizinhança, beneficia um ou outro humano, mais perseverante, com a sorte de uma resplandecente e rápida riqueza, mas apesar disso, é ele que carrega a totalidade do fardo da responsabilidade sobre os malefícios humanos na terra.

O Djinné, estando intimamente associado a revelação de fenómenos raros e não controlados pelos humanos, como a riqueza ou o azar que nos invadem sem bater a porta, ele também é considerado um artista e músico de dotes excepcionais. Isto é tão certo que a música que o homem consegue (re)criar para alegrar a sua alma, leviana por natureza, não passa de uma péssima réplica da original e coreográfica Djinnegi ópera.

Mulheres grandes regressando a casa depois do dever cumprido

Por favor Senhor... atende que é uma urgência

Ter a sorte e o dom de assistir à cena de uma concentração desses seres em festa de consagração é o maior espetáculo a que um humano pode ter na sua curta e miserável vida. Mas, como sempre acontece, esta possibilidade, sendo muitíssimo rara, não está isenta de perigos. No mundo fantástico dos Djinnés o riso é um atributo completamente desconhecido e a melodia excepcional saída dos seus instrumentos musicais únicos é acompanhada de uma grotesca e hilariante dança de pés coxos. Assim, aos humanos que foi dado assistir e que não conseguem resistir a tentação do riso são sancionados com a perda imediata das suas pernas a favor daqueles demónios, passando a ornamentar o corpo disforme de um Djinné afortunado, que se vê assim liberto da sua maldita condição, imposta dos Céus, a sua vil, diabólica e Djinnégi raça:

Ao infeliz humano que assim se vê privado dos privilegiados meios de locomoção que Deus, por amor e a sua imagem lhe concedeu, no princípio dos tempos, restará olhar para o céu coberto de nuvens sombrias e marcadas pela fugaz passagem da chuva que demorou a chegar e entoar a cantilena da sua triste sorte nascida no rápido deslize de um (sor)riso humano:

- Nâgghel Nâgghel fêthtu-ferééé!... Ndúunda wyôô kanh-wawymma!!! (1)

É esta a melodia que sai das flautas nómadas dos pastores fulanis e se espalha infinitamente longe no deserto, levada pelo vento e pela brisa quente do Sahara. Cantilena de esperança num mundo em rápida transformação, caminhando firme nos trilhos secos das suas manadas de bovinos, rumo ao sol nascente.

Se é verdadeiro ou falso, desconheço. É esta a mensagem e o ensinamento que nos transmitiram em prolongadas noites de luar africano. A palavra ao seu dono. Quem falou já não está aqui. Enquanto uns vão outros regressam. O fio da vida se tem princípio não tem fim. Tenham boa noite e bons sonhos.

Bissau, Abril de 2012.
Cherno Abdulai Baldé

Notas de Cherno Baldé:
- Djinné - Singular
- Djinnégi - Plural

(1) - “Sol, oh sol amigo, mande a tua luz, intensa, pois as trevas dizem que são mais fortes que tu!!!
Canção de crianças pastores após a passagem das chuvas. Apelo as forças da natureza.

Consulta bibliográfica:
1. Tratado da história das religiões, Edições ASA. 1992 e 1994 de Mircea Eliade.
2. Antropologia: Ciência das sociedades primitivas? De J. Copans, S. Tornay, M. Godelier e C. Backes-Clément. Perspectivas do homem, Edições 70, 1988.

Fotos: © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9671: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34): Cherno Fanca, aliás Cherno Comando, aliás Cherno Amadu...As peripécias de um jovem fula nos labirintos da guerra colonial

6 comentários:

Luís Graça disse...

Cherno, continuas a ter aquela rara capacidade, que só têm algumas pessoas, de nos surpreender - agradavelmente - sempre que escreves e publicas aqui no nosso blogue.

Pois aí está mais um belíssimo, e desta vez erudito, texto sobre duas figuras importantes do pensamento mágico (que é comum a todos os seres humanos e a todas as culturas, sob as mais diversas designações)...

Li, deliciado a tua descrição do irã e do djinné, rica de detalhes, cores, sabores e sons, além do toque de bom humor q.b., e magnificamente documentada com fotos... (Aquela da mulher grande com a falar para o céu é uma obra-prima!).

Conheci o djinné em Bambadinca por ocasião de uma festa do fanado, em 1969 ou 1970, sob a forma de um grande redemoínho de vento que varreu as ruas da localidade, do Rio Geba até ao planalto onde se erguia o quartel dos tugas... E acompanhou-nos em muitas operações, para o bem e para o mal...

Também convivi com o irã de Nhabijões, um conjunto de tabancas balantas em fase de reordenamento...Pagámos caro o abate dos sagrados poilões de Nhabijões... (Na realidade, foi um "etnocídio", em nome da "Guiné melhro"). Senti, na minha própria pele, a ira do irã, no dia 13 de janeiro de 1970, à saída do reordenamento de Nhabijões (talvez o maior da Guiné, naquela época)...

Que o irã e o djinné te protejam! É que hoje em dia não há seguro sem resseguro...

Cherno Baldé disse...

Luis Graca, meu amigo e irmao,

O Ira de Nhabijoes e o Djinné de Contuboel e Bambadinca devem estar, neste momento, ao teu lado.

O primeiro esta com ar muito sério pois a ele compete explicar a origem das coisas. O homem precisa sempre de explicacoes, mesmo que sejam as mais incongruentes, para acalmar as dores e dissipar os medos.

Os Djinnés devem estar a convidar-te para uma boite de noite, para a distraccao, pois sao folgazoes por natureza e irresponsaveis por vocacao para além de que, invejosos como sao, nao se comprazem com a dor humana.

Tens a possibilidade da escolha.

Um grande abraco

Cherno AB.

PS/Nao te esperava tao cedo em servico.

Eu sempre quis ter, na vida, um irmao como voce, Luis que, se quisesse, me diria: Cherno vai ao céu e traz-me a lua. Eu ia e trazia, de certeza, porque teria forca, coragem e magia suficiente para vencer a gravidade terrestre.

O mérito dos meus textos, também é, largamente vosso, tu e o Carlos.

Manuel Joaquim disse...

Meu caro Cherno:
Gostei muito desta tua dissertação, para mim uma bela e estimulante lição. Fiquei mais rico, mais sabedor sobre um tema que me interessa muito.
E fizeste-me lembrar a minha querida mãe a dizer, com ar sério, quando apareciam remoinhos a levantar as palhas dos campos, nas tardes quentes de verão: "anda o diabo à solta!".
Agora, ao ler-te, numa visão de um possível sincretismo religioso, posso perguntar sem qualquer ironia:
Seriam djinnegi?

Um grande abraço

Anónimo disse...

CHERNO

Mais do que informação é erudição!

Posso concluir que:
- IRÃ (IRÃS) é (são) divindade como que panteísta(s): está(ão) na natureza e em todo o lado (embora ABUNDEM mais em certos lugares) e
- DJINNÉ não é uma divindade, é como que uma "lateralidade" a um deus (que, por ser único, não admite a existência de outro), mas com poderes "quase" divinos, tomando os defeitos dos humanos, quase justificando as asneiras dos humanos? (será como a figura do "diabo, belzebu, mafarrico, satanás,etc. para as igrejas cristãs).

Agradecido
Abraço
Alberto Branquinho

Torcato Mendonca disse...

Olá Amigo Cherno

Meses depois de estar na Guiné ofertaram-me um objecto.
Depois mais dois com determinado significado.
Sobre os Irãs, certos usos e costumes, falei com uma ou outra pessoa. Aqui, neste espaço aberto, nada mais adianto.
Digo só: nunca saí sem o primeiro objecto, aí na Guiné. Aqui ele esteve -sempre- presente em certos acontecimentos importantes para mim.
Não frequento igreja nenhuma e sou mesmo anti clerical.
Considero-me cristão e respeito as outras religiões. Respeito igualmente os saberes que são transmitidos desde o inicio da humanidade...
Baralhei de propósito. Respeitemos os Irãs.
Abraço T.

Anónimo disse...

Parabéns Cherno,
O texto é muito bem construído, e contém insólita informação para nós, europeus.
Gostei muito da informação que nos trouxeste sobre comportamentos e rituais, já que sob o ponto de vista da realização de expectativas pelo transcendente, é como aqui, raramente calha.
Um abraço
JD