segunda-feira, 25 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10070: Notas de leitura (372): Obra Escolhidas de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 7 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Para que conste, os dois volumes das obras escolhidas de Amílcar Cabral, pelo critério experiente de Mário Pinto de Andrade, estão esgotados.
Trata-se de uma antologia que garante um conhecimento dos dotes invulgares de Cabral como pensador revolucionário, estudioso, conferencista e cientista, por um lado, e autor de notícias, palavras de ordem, mensagens, improvisos e textos curtos da mais variada índole.
Tudo escrito em português de primeira água, a sua comunicação de que tanto se orgulhava, a língua que ele deu como indiscutível para unir os povos que quis libertar.

Um abraço do
Mário

Obras escolhidas de Amílcar Cabral

 Beja Santos

Trata-se, sem margem para dúvida, de uma seleção representativa do pensamento e da atividade militante de Amílcar Cabral, uma escolha feita por Mário Pinto de Andrade, um amigo e um intelectual de indiscutível mérito que conheceu o líder do PAIGC como poucos outros dirigentes africanos: “A arma de teoria, unidade e luta” e “A prática revolucionária, unidade e luta II”, ambos os volumes editados pela Seara Nova, em 1977 e 1978. Obra infelizmente esgotada e não se compreende a sua reedição. O leitor interessado no pensamento de Cabral tem disponível a antologia “Documentário” organizada por António Duarte Silva e editada pela Cotovia, em 2008, a preço muito acessível.

No primeiro volume, Mário Pinto de Andrade selecionou escritos da juventude, textos relacionados com o trabalho que Cabral desenvolveu num recenseamento agrícola da Guiné, em 1953, seguem-se textos incontornáveis como o material de divulgação de uso internacional aqui intitulado “A dominação colonial portuguesa”; depois procede-se a uma sumula dos trabalhos sobre a estrutura social da Guiné, os princípios do PAIGC e a prática política, as lições positivas e negativas da revolução africana, textos indispensáveis para se perceber a preocupação de Cabral com o unitarismo numa paisagem de fracassos consecutivos; os textos “A arma da teoria” revelam o pensador brilhante e também, para que dúvidas não houvesse, uma certa ligação ao leninismo; e, por último, as suas considerações, por vezes fulgurantes, sobre o conceito de libertação nacional e cultura.

Se o leitor me pedisse opinião sobre o que é de todo imprescindível conhecer deste pensamento e com base nas escolhas de Mário Pinto de Andrade, recomendaria sem hesitar “A dominação colonial portuguesa", texto escrito em inglês com o pseudónimo de Abel Djassi, que apareceu em Londres em Junho de 1960; “A arma da teoria” o famoso e controverso discurso que pronunciou em Havana, em 6 de Janeiro de 1966; e “A cultura nacional” conferência pronunciada na Universidade de Syracusa, EUA, em 20 de Fevereiro de 1970. Aqui nos quedamos, por uns instantes.

“A dominação colonial portuguesa” é um libelo explicativo do que move os movimentos de libertação nas colónias portuguesas. Cabral começa por pôr na mesa os argumentos enunciados pelo regime de Salazar como os direitos históricos, a missão de civilização, a assimilação, a unidade nacional e depois rebate-os ponto por ponto, usando argumentos muito caros à corrente principal, à escala mundial, que advoga a descolonização. Tome-se a situação social, como ele a descreve: "99,7 % da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada não civilizada pelas leis coloniais portuguesas e 0,3 % é considerada assimilada. Para que uma pessoa não civilizada obtenha o estatuto de assimilada, tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar do nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à europeia, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever corretamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50 % da população não teria direito ao estatuto de civilizado ou de assimilado". É uma argumentação contrastante, cortante, como vai aparecer no trabalho forçado: “Na Guiné, em Moçambique e Angola existe o trabalho forçado para os trabalhos públicos. Mas nestes dois últimos países estende-se também às companhias privadas. Todos os anos são alugados 250 mil angolanos para as plantações, sociedades mineiras e empresas de construção. Todos os anos 400 mil moçambicanos são submetidos ao trabalho forçado; entre eles 100 mil são exportados para as minas da África do Sul e das Rodésias. Henrique Galvão, um ex-inspetor da administração colonial, declarava que a situação atual é pior do que a criada pela escravatura”. Depois do quadro explicativo, enuncia as suas pretensões: “Nós, africanos das colónias portuguesas, lutamos contra o colonialismo português, para defender os direitos do nosso povo. Exigimos que Portugal siga o exemplo da Inglaterra, da França e da Bélgica e reconheça o direito dos povos que domina à autodeterminação e à independência. As organizações africanas anticolonialistas das colónias portuguesas, que representam as aspirações legítimas dos seus povos, querem restabelecer a dignidade humana dos africanos, a sua liberdade e o direito de decidirem do seu futuro”.

O discurso “A arma da teoria” é considerado pelos estudiosos do pensamento de Cabral como uma das suas peças superiores. Dirige-se ao auditório para informar os presentes sobre a situação concreta da luta nas três colónias portuguesas. Para incómodo de uma boa parte da assistência diz coisas como esta “A deficiência ideológica, para não dizer a falta total de ideologia, por parte dos movimentos de libertação nacional, constitui a maior fraqueza da nossa luta contra o imperialismo”. E introduz um novo conceito da luta de classes, de acordo com o prisma africano, lembra a quem o ouve o que é o modo de produção e como se estão a processar as transformações na estrutura social. E certamente perante um auditório já confuso com tanto anátema à vulgata marxista-leninista fala sobre o papel da pequena burguesia como o dinâmico impulsionador da vanguarda da consciência revolucionária e profere: “A pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento, identificar-se com as classes trabalhadoras. Isto significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence”.

“A libertação nacional, ato de cultura” é outro expoente do seu pensamento. Associa a libertação nacional a um ato de cultura. Como observa, o colonizador nega o processo histórico do colonizado, é o colonizador que determina o modo de produção. Este modo de produção representa o resultado da pesquisa incessante de um equilíbrio dinâmico entre o nível das forças produtivas e o regime de utilização social dessas forças. E aqui a história é também cultura. E escreve: “A cultura, seja quais forem as características ideológicas ou idealistas das suas manifestações, é um elemento essencial da história de um povo. É talvez a resultante dessa história como a flor é o resultado de uma planta. Como a história, ou porque é a história, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas e o modo de produção. Mergulha as suas raízes no húmus da realidade material do meio em que se desenvolve e reflete a natureza orgânica da sociedade, podendo ser mais ou menos influenciada por fatores externos. Se a história permite conhecer a natureza e a extensão dos desequilíbrios e dos conflitos (económicos, políticos e sociais) que caracterizam a evolução de uma sociedade, a cultura permite saber quais foram as sínteses dinâmicas, elaboradas e fixadas pela consciência social para a solução desses conflitos, em cada etapa da evolução dessa mesma sociedade, em busca de sobrevivência e progresso”.

Deixa-se para o próximo texto um conjunto de referências a documentos mais datados, panfletos, palavras de ordem e as suas derradeiras mensagens.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10061: Notas de leitura (371): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (3) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Antº Rosinha disse...

Mário Pinto de Andrade e Amilcar Cabral e muitas centenas ou mesmo milhares de independentistas mereciam ter tido razão.

Mas os "ventos da história" continuaram e não param de contradize-los.

Mário Beja Santos está mesmo na hora oportuna de mostrar as coisas e os pensamentos de Amílcar, e os seus sonhos.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Se a ingenuidade,idealismo e até a utopia, pagassem impostos resolvia-se o problema do "défice".
Aqui o caro "colon" A.Rosinha "doutorado" em colonialismo e afins é que podia dissertar sobre este assunto com o seu saber de experiência feito.
Um alfa bravo
C.Martins

Unknown disse...

Caro Mário Beja Santos, tenho talvez a sorte de ter as obras de A. Cabral mencionadas no teu texto e outras, e mais uns (policopiados) publicados antes do 25A.
Serve esta intrusão só para dizer o seguinte (de uma forma repetida), que só um desconhecimento e desonestidade intelectual, pode formular semelhantes (des)comentários, aliás produzidos por dois ex-combatentes ou 'africanistas' de serviço permanente a este Blogue, para comentar tudo que tenha cariz anticolonialista ou que aborde qualquer pensamento critico ao mesmo. Mais uma vez e sem mais delongas é notório déficit da capacidade intelectual dos comentários a um Homem que o próprio 'estado novo' o reconheceu com valor intelectual e técnico, assim como ao politico que foi e que apezar de lider de um exérc. de libertação, foi reconhecido como estadista em diversos foruns internacionais. E mais, reconhecido como dirigente máximo de um país que politica e administrativamente já não era reconhecido como colónia portuguesa.
Mas reduzindo os comentários sómente ao texto em presensa, não foi escrita uma só paravra sobre o mesmo. E isso só tem um significado.

Um abraço
Carlos Filipe
ex-CCS BCaç 3872

Antº Rosinha disse...

Pois é Filipe, eu também li em Bissau quase todos os livros de Amílcar e sei o que é que a maioria dos guineenses falam e pensam de Amílcar Cabral.

E até o que pensam dele muitos Caboverdeanos.

Que embora os Caboverdeanos o admirem, mas nem todos lhe batem palmas, pelos seus feitos. (apenas as politicamente corretas)

Talvez eu e tu o reverenciemos mais que os Guineenses e Caboverdeanos.

Poucos africanos perdem tanto tempo com a sua memória como os "reacionários" como eu tuga, e como tu "progressista".

Há menos guineenses e angolanos desiludidos por causa de ideias minhas do que com as ideias de Mário Pinto de Andrade e de Amílcar Cabral.

Filipe, eu não digo que eles tivessem más intenções.

O que digo é que de boas intenções...

Posso confirmar que lutaram muitos "ermons" de Amílcar e de M. Pinto de Andrade ao lado dos tugas e que no entanto também sonhavam com uma independência para as suas terras.

E eles sabiam que aquele processo de Amílcar, não ia apenas levar ao "suicidio da burguesia" guineense, apenas a ia "escurecer" um pouquinho mais.

Um abraço

antonio graça de abreu disse...

Mas afinal qual o legado de Amilcar Cabral? O que deixou ele como herança aos povos da Guiné, aos povos de África? Utopias irrealizáveis, tudo datado de um momento da História africana, anos cinquenta, sesenta do século passado.
Quem o assassinou? Os seus próprios homens (ah, pois, e a PIDE...).
Carlos Filipe, MBS, parados na História, (ou ainda a venderem-nos a banha da cobra!...)sempre a acreditar no inacreditável, a aceitar o que nunca funcionou em temos de criação de um homem novo e melhor,de uma sociedade mais justa.
África e a Guiné, o mundo inteiro neste ano de graça de 2012, falam.
Porque é que uns tantos não conseguem ouvir as vozes do mundo real?

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Um mestre, devia ter outra atitude, mais circunspecta, analisando as diferentes realidades, cruzando-as, sistematizando-as, com respeito pela cronologia, pelos factores endógenos e exógenos, como nos indica um Mestre que, não o sendo, não deixava de ser "africanista": "Claro que todas estas coisas encontram explicação na história e na estrutura da sociedade. Um longo passado de escravatura, seguido de formas mais ou menos encobertas de servidão, ajuda a compreender como os pretos passaram da humildade e do servilismo ao ressentimento e a formas brutais e desumanas de o manifestar"- Orlando Ribeiro.
É questão de ponderação, de procurarmos saber, de olharmos o outro com respeito e humanidade, de avaliarmos ou não os nossos erros, em vez de nos arrogarmos da sapiência induzida desde que há domínios, e o preto como objecto a reprimir. Saibam porque é que o sr Norton de Matos, por duas vezes, foi corrido de Angola, a quem causava mau-estar, e porque razões, e logo encontram uma parte do problema. Como se chegou até à actualidade? A explicação também decorre daquelas averiguações, e são coincidentes entre pensadores sérios, da esquerda, como da direita.
JD

Anónimo disse...

Só para dizer o seguinte:

Tenho e LI a maioria dos textos publicados de AMÍLCAR CABRAL com o seu pensamento político.
Considero que foi um "pensador politico" brilhante, assim como não ponho em causa a sua capacidade intelectual e técnica e cientifica como agrónomo.
Vi em Bafatá um busto em sua homenagem completamente abandonado, e miúdos a urinar na base do monumento.
Questionados sobre se sabiam de quem era aquele busto, não faziam a mais pequena ideia.
A história comprovou que foi um idealista e até ingénuo,o que não o diminui em nada como figura histórica.
Quanto ao meu défice de capacidade intelectual..é verdade..sou muito limitado.
Ah..também sou muito ignorante..
Quanto à desonestidade intelectual..bem aqui não admito..poderia responder-lhe da mesma forma, mas não o vou fazer, porque não insulto aqueles que têm ideias diferentes das minhas.
Sou também "africanista" e principalmente muito "povo guineense".

C.Martins