quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10241: Notas de leitura (389): O Ultramar e a revisão constitucional de 1971, Revista Vida Mundial de 16 de Julho de 1971 (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Agosto de 2012:

Viva Carlos,
Aqui vai mais um naco do meu baú.
Não é da minha autoria, mas pode reflectir aspectos interessantes das hesitações, insuficiências, e radicalismo tradicionalista de uma boa parte do Parlamento, que eram impeditivos de soluções adequadas à verdadeira fusão da sociedade portuguesa, tanto no que respeita à igualdade dos cidadãos perante a lei, como no que respeita à autonomia administrativa e financeira das colónias, condições necessárias para o seu desenvolvimento.
Como de costume, e tratando-se de um texto longo, tens liberdade para o "arquivar", ou dividi-lo em partes para publicação.

Um grande abraço
JD


O Ultramar e a revisão constitucional de 1971

O post 10208* versou o livro "O 25 de Abril e o Conselho de Estado - A Questão das actas", que suscitou interessantes comentários relativos à questão bloguiana sobre a guerra ganha, ou guerra perdida, em nítido desvio do sentido da recensão, mas que tiveram a virtude de trazer à colação novos argumentos sobre novas razões motivadoras do MFA, e deixaram para segundo plano a rebaldaria das actas, que, afinal, não estavam perdidas, antes, guardadas ou sonegadas. A comprovada desorganização do Conselho de Estado é, assim, reveladora da incompetência e das hesitações do movimento na condução do processo.

Se tivermos em conta os desenvolvimentos parlamentares desde o anterior sec. XIX, caracterizados pelas sucessivas intervenções de exaltação, ineficiência, e desinteresse pela causa pública, a notícia publicada na Vida Mundial, em 16/VII/71, é também ela reveladora de enquistamentos políticos, que muito dificultariam o melhor relacionamento da metrópole com as colónias (refiro colónias, porque é a tradução da realidade portuguesa da época), para além das maquilhagens normativas, situação, que a prazo, poderia conduzir à independência das colónias, mediante declaração da sociedade civil. Imagino que começaria por Angola, que vivia em paz quase absoluta, a que o atavismo do governo central causava constrangimentos e desconforto na população local. Não convinha às companhias coloniais, pois ali encontravam excelentes condições de "legalidade" para a prossecução das suas actividades com suavidade de custos.

Uma última nota: o texto, por vezes, mostra-se mal construído e inócuo. Tal facto não deve ter nada a ver com a competência do jornalista, mas com a actividade da Censura e do lápis azul, que, assim, coibia a informação e a discussão pública das matérias de interesse nacional. Não sei porquê, porque hoje a informação é quase livre, a discussão permitida, e o pessoal aceita passivamente o que lhe servem, apesar de, maioritariamente, reclamarmos da situação, em contradição com a passividade.


Assim, sob o título "Discussão e Interpretação na Assembleia", cito:

De todas as propostas de alteração discutidas até agora, na actual sessão extraordinária da Assembleia, as que suscitaram mais viva controvérsia foram as respeitantes ao título da Constituição que trata do Ultramar, nomeadamente a nova redacção a dar ao seu artigo 133, que determina o estatuto das províncias ultramarinas. Desde o inicio do debate que a questão do Ultramar foi alvo de particular atenção dos deputados, que souberam defender animosamente os seus pontos de vista, por vezes, até, deixando-se dominar por uma emoção bem natural a quem discute assuntos que da mais alta responsabilidade se revestem para os destinos do País. Iniciado o debate, o primeiro a referir-se à questão do Ultramar, logo após a apresentação do parecer da comissão eventual - que viria a ser, aliás, o único documento submetido à discussão na especialidade, por força de controverso requerimento enviado para a mesa e aprovado por maioria -, foi o engenheiro Ribeiro Veloso, deputado por Moçambique.

Manifestando o seu pleno acordo com a proposta de revisão apresentada pelo Governo, salientou ele que esta, "mais do que a Constituição no seu actual estado", reforçava a integração política da Nação Portuguesa "por afirmar que ela constitui um estado independente, cuja soberania é una e indivisível". Frisando que também a integração política do País ficava reforçada com o texto da proposta governamental, precisamente porque esta preconizava uma maior autonomia para as províncias ultramarinas, salientando, simultaneamente, que tal autonomia em nada afectaria a integridade da soberania do Estado, o engenheiro Ribeiro Veloso rebateu os receios daqueles que manifestavam reservas quanto ao futuro texto constitucional, afirmando que quem procedesse à leitura atenta da proposta de revisão verificaria que essa autonomia "é meramente administrativa e financeira, pois não tem poder constituinte". Na mesma sessão, referiu-se também à questão do Ultramar dr. Vaz Pinto Alves, que analisou e apoiou a proposta do Governo, a qual afirmou manter "a permanência dos traços essenciais dos altos desígnios nacionais". Salientou que, com a proposta do Governo, passava a ser comum a todo o território nacional, "na linha de integração a que obedeceu a nossa política" a lei fundamental do País. Após curta intervenção do dr. Neto de Miranda, que, referindo-se às alterações propostas pelo Governo, pôs em destaque o facto de estas buscarem "uma autonomia mais bem definida, uma descentralização menos confusa e uma desconcentração de poderes mais significativa", coube ao dr. Sá Carneiro uma das mais notáveis e desassombradas intervenções havidas no decurso do debate.

Depois de uma longa análise das revisões a que anteriormente foi submetida a Constituição de 1933 e depois expor os seus pontos de vista sobre os poderes de revisão que os deputados eram, na presente Assembleia Constituinte, chamados a exercer, rejeitando todos os condicionalismos que tendessem a limitar esses poderes, o deputado pelo círculo do Porto, cuja intervenção provocou, por vezes, enérgicas reacções da parte de alguns sectores da Câmara, referindo-se ao problema da maior autonomia a conceder às províncias ultramarinas, disse: "Vemos hoje impugnar as alterações referentes ao Ultramar, precisamente com base num conceito limitado do poder de revisão como poder constituído, o que levaria a rejeitar liminarmente a reforma que o Governo, nesse ponto, nos propõe. Esta parece ser uma constante antipática desta revisão constitucional: a tentativa de evitar a discussão daquilo com que não se concorda".

Seguiu-se uma intervenção do eng. Duarte do Amaral. Disse ser sua opinião a que quer a proposta do governo quer os projectos dos deputados eram perfeitamente constitucionais e afirmou considerar "muito grava, tanto constitucional como politicamente, a recomendação feita nos pareceres da Câmara Corporativa" no sentido de os dois projectos dos deputados serem rejeitados na generalidade. Referindo-se especificamente ao Ultramar, o eng. Duarte do Amaral, que assinara uns dos projectos rejeitados, frisou não compartilhar das preocupações que "pessoas de tanta categoria" manifestavam quanto ao texto proposto.

No inicio da segunda semana do debate, o dr. Sá Viana Rebelo teve uma curta intervenção, que dedicou à questão do Ultramar. Disse que as populações das províncias ultramarinas confiam na acção do prof. Marcelo Caetano, ao mesmo tempo que alimentam o forte desejo de uma maior autonomia política e administrativa, sem desvios em relação às directrizes traçadas pelo Governo. Aludindo, especialmente, à população de Angola, província que representa, o dr. Sá Viana Rebelo disse que esta não podia deixar de sentir-se anquilosada perante o pensamento de ser governada de longe "por departamentos estatais tantas vezes orientados por pessoas que de Angola pouco sabem".

Num extenso discurso, cuja leitura demorou mais de uma hora, o dr. Moura Ramos, deputado por Leiria, declarou que a concepção de comunidade portuguesa é a de uma nação totalmente integrada e totalmente independente, salientando ser essa "a razão por que nos choca sobremaneira a ideia de trazer à discussão aquilo que, no momento sério que vivemos, jamais o deveria ter sido - o problema do Ultramar". Em defesa do seu ponto de vista citou Paiva Couceiro, e concluiu afirmando que "não podemos deixar de lamentar o Governo, mesmo com boas intenções, venha com uma proposta de lei cujo texto sugere "profundas transformações", em que se joga uma nova concepção e orgânica da Nação, e um destino da grande comunidade portuguesa, matéria esta de grande delicadeza e melindre".

Travou-se, então, aceso diálogo entre o dr. Moura Ramos e o dr, Barreto de Lara, deputado por Angola, com intervenções esporádicas do deputado Cazal-Ribeiro. A discussão, em que os dois intervenientes defenderam, com calor, pontos de vista e concepções opostos, foi interrompida pelo presidente, ao ser excedido o tempo concedido ao dr. Moura Ramos para terminar a sua exposição.

Falou, depois, o representante de Cabo Verde, dr. Bento Levy, que, após várias considerações que o levaram à conclusão de ser o povo português destituído de "maturidade cívica e política", acabou por dar o seu apoio à proposta do Governo quanto à maior autonomia das províncias ultramarinas. O dr. Homem Ferreira, deputado por Aveiro, que denunciou a "doentia atmosfera de suspeição" gerada em torno de alguns pontos da revisão constitucional e repudiou "a campanha insidiosa , promovida na sombra, e sorrateiramente, ao longo de todo o País, pelos que, bem instalados na fortuna e nos privilégios, se dedicam à tarefa de criar fantasmas e alimentam o escuro propósito de atingir pessoas, magoar e pôr em crise o Governo e a sua "chefia", afirmou, referindo-se especificamente ao Ultramar:
"Governar à distância, longe dos factos e problemas concretos a que as decisões se dirigem, é, sempre, uma tarefa carregada de graves inconvenientes e que pode tornar a vida dos povos insuportável, o que, no campo do Ultramar, pode provocar riscos, seduções e consequências irreparáveis". E acrescentou que uma autonomia ampla permitirá afastar "a ideia de submissão, apagar a fadiga das incompreensões e evitar revoltas".

Concordantes com estes pontos foram as declarações do dr. Lopes da Cruz, o qual disse da adesão das populações de Moçambique à proposta governamental, particularmente no referente à definição das províncias ultramarinas como regiões autónomas, apesar de tal ser "considerado, em vários sectores, como perigoso e inoportuno". Aludindo às grandes potencialidades das províncias e aos grandes projectos de desenvolvimento ali em vias de execução, o deputado disse que, para ser dado rápido seguimento a este desenvolvimento, se torna necessária uma descentralização administrativa efectiva.

O dr. Menezes Falcão sublinhou que a concessão de uma autonomia especial ao Ultramar "não é favor, além de não ser novidade", apoiou inteiramente as coordenadas traçadas pelo Governo e disse não haver motivo para preocupações, se tudo se processar com "boa-fé e simplicidade". Também o arquitecto Carlos Ivo repudiou "uma certa campanha de oposição contra a proposta de lei apresentada pelo Governo, campanha essa especialmente dirigida ao sector que diz respeito ao Ultramar". E falando em nome da população de Moçambique, disse estar consciente e sinceramente convencido de que "o desenvolvimento e progresso das províncias ultramarinas só se poderá processar mediante uma efectiva e real descentralização administrativa que conduza ao bem comum das populações do Ultramar no aspecto económico e social". O deputado Francisco Cazal-Ribeiro, que teceu várias considerações sobre a revisão, considerações várias vezes interrompidas pelo eng. Ribeiro Veloso, secundado pelo dr. Barreto de Lara, no caso específico do Ultramar, afirmou ser seu desejo que ele fique "cada vez mais integrado na comunidade que constituímos e devemos manter, embora ressalvando realisticamente arranjos adaptáveis à vida de hoje, mas apenas no que se refere à vida da Nação Portuguesa".

O dr. Veiga de Macedo, defensor de uma política de "avanço sem aventuras", chamou a atenção para o que considera o perigo de poderem vir a surgir nos trópicos "diversas pequenas pátrias europeias", estabeleceu um paralelo entre as soluções preconizadas pelos que pretendem "a introdução a todo o custo de Portugal na Europa" e pelos que constituem "a escassa minoria inclinada a visionar uma ampla e sempre crescente autonomia, já não tanto administrativa, mas sobretudo política, das nossas províncias ultramarinas". Repudiou ambas as atitudes, mas declarou-se favorável à promoção política, económica e cultural dos portugueses de cor, embora salientando que não admitia "autonomias que firam" [...]

A reportagem prossegue, mas não possuo essa parte da revista. Nota-se, porém, como a proposta do Governo era mais avançada e preocupada com a condição do Ultramar, do que a posição da "maioria" dos deputados, tacanhos e reaccionários, que, provavelmente, não teriam ideia do potencial das colónias, da força da difusão das ideias independentistas (no pressuposto do desenvolvimento económico e social, que a metrópole estrangulava), nem da posição relativa de Portugal no concerto das nações, que tinha em África um mercado de privilégio para os seus produtos, nem do desenvolvimento do Projecto de Sines, que seria a cereja sobre a Zona do Estudo, e a tentativa de penetração em outros mercados. Revelam-se, portanto, demasiadas tibiezas e contradições na actividade da principal câmara do país, a A.N., parecendo, ainda, que os deputados receariam a secundaridade da metrópole relativamente ao ultramar, ou alguma repreensão salazarista provínda lá dos céus, para quem a Pátria era tabu.

Nota do editor: Capa da Revista Vida Mundial retirada de Almanaque Republicano, com a devida vénia
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Julho de 2012 Guiné 63/74 - P10208: Notas de leitura (386): O 25 de Abril e o Conselho de Estado - A Questão das Actas, por Maria José Tiscar Santiago (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 6 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

José Dinis, mas em 1971 já o governo estava como está hoje, sem gasolina.

Olhando hoje para traz, devia ser um frete ser deputado e ter que emitir opinião, quando sabia que era só para preencher o tempo.

Enquanto hoje o governo anda empurrado por terceiros, (troika)
naquele tempo, 1971 o governo andava por inércia, andava empurrado por um fantasma (Salazar)

Talvez nessa data estivesse já na hora e antecipavam-se 3 anos.

Mas os parlamentares não podiam decidir e talvez nem M. Caetano, como nos apercebemos hoje.

Cumprimentos