segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10360: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (56): Bula - A guerra das minas (6): A "sentinela"

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 4 de Setembro de 2012:

Amigo Carlos
Diziam-me e penso ser verdadeiro que, naquela guerra os “Unimog” e outras viaturas militares, à falta de gasolina aceitavam qualquer tipo de álcool como combustível. Vinho inclusive! Parece-me que tinham até um comutador?
Bom, vem isto ao caso porque o tipo de combustível que tem sido gasto nesta “Viagem à volta das minhas memórias” está a entrar nas reservas que e aproveitando as descidas só irão permitir-me chegar ao destino. A ser verdade as viaturas poderem usar combustível do tipo “tintol verdasco” de que gosto e havendo postos de abastecimento… bom, talvez me disponha e consiga conduzir-me numa outra viatura mais ligeira em passeio à aventura, sem destino e ao destino.
Como se dizia na minha terra em troca do ver-se-á: “depois verá-se!”

Espero que tenhas tido e aproveitado umas boas e calmas mini-férias.
Um abraço para ti e outro para a Rapaziada, com votos de saúde e qualidade de vida.
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (56)

Bula- guerra das minas 6

A “sentinela!”

Como de outras vezes em que recordo estes momentos, revivo-os e um arrepio percorre-me o corpo.
Na minha perspectiva e à altura, no intuito e esperança de se conseguir viver com alguma normalidade a anormalidade daquele enfileiramento de dias e mais dias em que palmilhávamos na monstruosidade de extensão e densidade daquele campo de minas, julgava que o melhor a fazer era assumir e mentalizar que o momento ou o segundo seguinte podia marcar a diferença numa vida ainda jovem mas já envelhecida.

A par, havia que interiorizar fortemente as já anteriormente abordadas medidas preventivas e não condescender na sua aplicação, pois eram fatores de esperança na ultrapassagem de obstáculos e desastres recorrentes, na não paralisação por receios ou medos, no acreditar e seguir em frente.

Vem isto ao caso pela especificidade de uma situação vivida conjuntamente pelo António Matos (P4296 de 7MAI09) e por mim, que passarei a referir com alguns pormenores que na certa continuarão a ter registo vivo na minha memória ao longo do tempo.

Já bem avançados no campo e com o final da campanha mineira de certo modo à vista, já não recordo por qual dos dois, a mina metálica portuguesa (fragmentação) procurada é localizada. Era um valente “cú de boi” que se apresentava meio escondida por um tufo de vegetação e bastante incrustada no “sopé da encosta” dum bagabaga que por ali tinha nascido naqueles passados anos. Parecia até que as formigas, cientes dos tempos que se viviam, tinham construído ali a sua nova cidadela com o fito de aumentar a sua segurança contra intrusos e acabaram por envolver esta “sentinela” assassina num abraço de reciprocidade protectora!

Por oferecimento altruísta de ajuda expresso por um de nós, creio que do A. Matos, o certo é que nos achamos de facas nas mãos a esgravatar minuciosamente e em conjunto o condomínio formigueiro em volta da “sentinela”, com o intuito da sua neutralização e posterior “sequestro”!

Era uma acção difícil e de risco, sabíamo-lo bem e como tal usamos de toda a precaução e tempo exigível em conformidade. Creio que não nos passou sequer pela cabeça e como tal não nos questionamos sobre a hipótese do rebentamento provocado sob controlo. Não sei porque, talvez por não ser possível ou outra razão qualquer, não recordo.

De volta da mina, o primeiro passo seria cavilha-la logo que possível, o que se tornou um bastante moroso e dificultado por parte do sistema de percussão e até os orifício superior (primário) de cavilhamento estar parcialmente obstruído não permitindo meter a cavilha e o inferior lateral (secundário) não estar visível.

Com paciência, muita sensibilidade e calma, fomos aligeirando o abraço desbastando o bagabaga, acabando por desobstruir o orifício primário e conseguir espaço para enfiar a cavilha, se bem que não correctamente, por impossibilidade ao momento. Continuamos o trabalho atento e meticuloso de desencastamento do engenho, acabando por pôr a descoberto o orifício lateral de segurança secundária. De seguida dou início a introdução da cavilha que finalizaria a neutralização do percutor do engenho e nos permitiria desencarcerá-lo à vontade. Aponto-a mas não chego a coloca-la…!

“CLICK” … este som macabro em simultâneo com uma ligeira pancada sentida nos dedos, transporta-me (nos) a um silêncio absoluto… talvez do “Além”?

O sangue fugiu para os pés deixando a lividez espraiar-se num suor gelado que nos alagou. Olhamo-nos mudos e incrédulos. Onde estávamos? Ainda por cá? Como? O que tinha acontecido de errado?

Os cigarros começam a queimar-se. Olho para a mina e vejo que a cavilha superior, que por impossibilidade só estava parcialmente enfiada, está completamente torcida e vergada de viés pelo percutor. Por milagre aguentou!

Julgo que sentados e mudos com olhar distante e incrédulo, vão-se somando cigarros. Ninguém se terá apercebido do acontecido.

Muito… pouco? O tempo vai passando e os cigarros sucedem-se.

O Cangalhas, Alf OE em comando local por mais velho, atira-nos um mais ou menos “vamos a levantar…!?”

“Que o pariu!”…depois… depois consumamos o “sequestro” e recomeçamos a levantar minas!

Na sua memória o António Matos tem registado que a mina não detonou por envelhecimento, apodrecimento. Talvez!

Na minha e conforme narro, ainda que deficientemente colocada a cavilha não saltou e aguentou, ficando toda torcida de viés mas empancando o percutor que realmente desceu um pouco na manga guia. Teria descido o suficiente para percutir?

Hoje, como à altura, não tenho resposta para o disparo ter acontecido mas… aconteceu, simplesmente!

Luís Faria
____________

Notas de CV:

Foto: © António Matos (2009). Direitos reservados - Com a legenda: O nosso camarada António Matos manuseando uma mina portuguesa.

Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10268: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (55): Bula - A guerra das minas (5) - Um jogo de "apanhadinha"

8 comentários:

Rui Silva disse...

Bom, uma história destas logo a começar a semana e pela manhãzinha é mesmo desopilante.
Gostei mesmo do teu conto. Juntas o humor a acontecimentos de elevado risco, para não dizer de desprezo pela vida, e até parecia que estava a ver-te. Há imagens que ficam na retina ou a elas associadas e um simples "click" leva-nos à realidade. Dos setenta aos vinte! Sim, falo de anos.
Felismente que hoje(e oxalá durante muitos e bons anos), poderás levantar bem alto o teu copo de tintol verdasco. Folgo nisso.
Luís recebe um abraço e votos de muita saúde.
Rui Silva

Bernardino Cardoso disse...

Este conto é de arrepiar os cabelos. Como é que ao fim de tanto tempo sob um stress desgastante puderam, quando tudo parecia resolvido, relaxar e deixar que aquilo acontecesse.
Parabéns por ainda poderem comemorar os vossos aniversários. Abraços
Bernardino Cardoso - Bula

admor disse...

Camarigo Luís Faria,

Razões e explicações podem faltar muitas para provar o que te aconteceu, mas sorte não te faltou nenhuma pois deves ser dos poucos que depois de ouvir o tal CLICK tão perto dos ouvidos ainda cá está para contar. Já agora por muitos anos.
Um grande abraço.
Adriano Moreira

Hélder Valério disse...

Caro Luís Faria

Estas tuas narrativas conseguem bastante bem dar o 'clima' em que se desenvolvem.

Normalmente grande 'suspense', tensão, calma, sentidos apurados, profissionalismo e, talvez inevitavelmente, também uma boa dose de sorte ou.... protecção divina!

Neste caso, nesta situação que relatas, tiveram, tu e o António Matos por quem também nutro estima e admiração, estiveram, mais uma vez a um passo da morte, melhor dizendo, a um "clic" mas, felizmente para vós e também para nós que gostamos do vosso convívio, escaparam de tal provação.

Fico contente por vós.
Abraço
Hélder S.

Luis Faria disse...

Caros
Rui,
Bernardino,
Adriano,
Helder

É bom,para alem de outras mais,ler as expressões de agrado e estima que traduzis em palavras:


-"Felizmente que hoje(e oxalá durante muitos e bons anos), poderás levantar bem alto o teu copo de tintol verdasco. Folgo nisso."

-"Parabéns por ainda poderem comemorar os vossos aniversários.Abraços"

-"...Já agora por muitos anos.
Um grande abraço."

"...felizmente para vós e também para nós que gostamos do vosso convívio, escaparam de tal provação.Fico contente por vós.
Abraço"

O meu Obrigado

Luis Faria

JD disse...

Ora Viva Luís!
Está quase tudo dito.
Tu e o António - que é feito dele, que escreve tão bem e enriquece o blogue? - andaram numa roda viva com um absurdo de umcampo de minas. Aquilo que vos fizeram, foi condenar-vos a um mais tarde ou mais cedo.
As vossas narrativas sobre minas, e terão sido os mais exaustivamente em risco, dão a precisa medida da competência e da concentração que delimitam as fronteiras entre a sorte e o azar.
Qualquer uma das possibilidades aventadas para o não-rebentamento parece-me válida. Sorte tive eu, que não me deram tarefas dessa dimensão, nem que parecesse.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Caro amigo Luís Faria,
Certamente que tivestes a oportunidade de juntares e meteres na algibeira o que restou de uma vela que usei numa tal Procissão na Mata dos Madeiros.
Tenho a certeza que te deu uma ajudazinha.
Hoje os sons dos clics que ouvimos são completamente diferentes e até servem para mandar...
Um grande abraço.
José Câmara

Anónimo disse...

O campo de minas está quase a chegar ao fim. No balanço geral, a CCAÇ 2791 Força, tinha nos seus activos, um Alferes e 4 furriéis com habilitação própria. para lá ir parar. Porém, o Alferes, já saiu de Évora com «Stress de guerra», O furriel Marques, era necessário na secretaria, eu eo Castro tinha-mos a missão de lhes prestar protecção, com os nossos Grupos de Combate. Restava o Faria!...Não foi por acaso...era o MELHOR DOS 5. Da parte que me toca, não tenho dúvidas.
Aquele abraço e dia 29 lá estamos em Penafiel, para bebermos o teu Verdasco, comemorando os 40 anos do regresso.

Aquele abraço

Jorge Fontinha