sábado, 13 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10524: Do Ninho D'Águia até África (17): Meia Missão, em África (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (17)

Meia Missão, em África

O dia, como costume, estava quente e abafado. Fez um ano que o Cifra desembarcou em África e esteve no tal acampamento, junto ao cais de desembarque.

Já não é um “periquito”, novato, é um veterano, já pode dar conselhos aos mais novos. É um posto, como se diz na zona de guerra.

Chamou o Setúbal, que como já sabem foi baptizado com este nome porque o principal era Jeremias e não dava muito jeito a pronunciar, mais o Curvas, alto e refilão, e disse:
- Como já devem saber, faço um ano de guerra, vamos festejá-lo? - Ao que o Setúbal logo respondeu.
- Fazes não, fazemos, pois viemos no mesmo barco. Não te lembras?.

Era verdade, embora colocados em unidades diferentes.

Foram buscar uma garrafa de Vat 69, sentaram-se os três debaixo da enorme Mangueira, que por sinal tinha sido baptizada com o seu nome, junto das gaiolas dos macacos e periquitos, abriram-na e atiraram com a rolha para longe, sinal de que não precisavam mais dela.

Acordaram umas horas depois, com os macacos a olharem para eles, umas vezes com a cara de lado, outras vezes emitindo grunhidos de angústia, dando voltas na gaiola, tentando abri-la, talvez para acordar os donos que os tratavam e lhe davam algum carinho.

Ao outro dia pela manhã, o Cifra, tinha umas fortes dores na cabeça e,  ao vestir os calções, desequilibrou-se e rasgou-os um pouco mais. Era normal, pois a roupa já estava bastante coçada, as botas gastas, e no comando diziam que só tinha direito a roupa nova quem a perdesse em combate ou coisa parecida, mas como o Cifra não andava em combate, não tinha direito a roupa nova.

Aqui funcionava o tráfico de influências. Os mais velhos trocavam duas camisas ou uma camisa e dez maços de cigarros por uns calções, com os mais novos, pois camisa é coisa que poucos usavam. Nessa altura, a mais importante pessoa
 passou a ser o sargento da arrecadação, onde não existia arrecadação nenhuma.

O Cifra falou com ele, pois os seus calções estavam rotos. E disse-lhe com cara de mau:
- Estou farto de calções rotos desde criança.

O sargento, com paciência, responde-lhe:
- Só se estiverem mesmo rotos e já não se possam usar.

O Cifra, nesse preciso momento, tira os calções do corpo, rasga-os ao meio e diz:
- Aqui está a prova.

Regressa nu ao centro cripto, pois há muito que não usava roupa interior. O caso correu fama e andou de boca em boca no aquartelamento.

Passado uns dias o Cifra tinha dois pares de calções novos. A partir desse momento foi colocada uma folha no refeitório, para colocarem o nome para que cada caso fosse analisado.

Os calções que foram distribuídos ao Cifra eram da cor verde azeitona e as camisas que algumas vezes usava eram amarelas, portanto, quando se vestia de roupa lavada, principalmente ao domingo, com calções verde azeitona e camisa amarela, tinha um aspecto de tropa diferente. O Curvas, alto e refilão, quando o via assim vestido, dizia:
- Tu não és nem nunca foste um militar. Tu és tropa fandanga! Não sei o que é que vocês aqui fazem. Vocês dizem que são cifras, vocês são mas é uma “granda merda”. Na altura em que andamos em patrulha, temos emboscadas, ou quando vamos em operações de destruição das bases das tuas amigas guerrilheiras, (falava sempre nelas), olho para o lado, e nunca te lá vi.

Era assim o homem, e o melhor era não lhe responder, pois o vocabulário ia estender-se, e como por vezes não andava o Trinta e Seis por perto...

Mas no fundo o Curvas, não era má pessoa, tinha tido uma juventude de sofrimento, sem carinho e nunca teve ninguém que lhe perguntasse alguma vez se tinha fome, se tinha frio e precisava de roupa, ou se tinha dores em qualquer parte do corpo, neste momento  devia ser o militar mais bem preparado para a guerra, que se encontrava no aquartelamento, era um autêntico “survivor”, necessitava somente de compreensão de alguém como o Trinta e Seis, a quem ele obedecia, sem refilar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10504: Do Ninho D'Águia até África (16): As notícias (Tony Borié)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Tony, Ganda Cifra!... Pois que viva o Vat 69!... Ajudou-nos a (sobre)viver!... (Felizmente que eu nessa altura não era um homem... da saúde pública!).


(...) Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love!)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,
Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….
(...)

Elegia para um paisano.

In Luís Graça > Blogpoesia

http://blogueforanadaevaodois.blogspot.pt/2011/04/blcogantologias-ii-93-elegia-para-um.html

Tony Borie disse...

Olá Luis.
O teu poema ao vat 69 e outros" scotchs", são um hino às horas que nós antigos combatentes, passávamos, nos intervalos da guerra, que sofremos no corpo e na alma!. Bem hajas. Nessas horas, éramos nós, oriundos da europa, onde entre dois scotchs, dáva-mos largas aos nossos sentimentos, de amizade, abraços, amor ao próximo, esperando a paz dentro da guerra, e algumas choráva-mos, lembrando o nosso recanto no Portugal, que o mapa colocou à beira mar plantado!. Nas minhas andanças pelo mundo, em alguns países, não havia Vat 69, e então olhava a garrafa e pedia um "cavalinho branco", como me sabia esse scotch, fechava os olhos e pensava no chão vermelho, no arame farpado, e no cheiro a camuflado sujo, roto e cheio de lama que via nos meus colegas secarem encostado ao meu mosquiteiro!. Não vou continuar, porque vou começar a ser piegas, e isso não é bom num antigo combatente!. Um abraço, Tony Bortie.