sábado, 27 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)

1. Mais um episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (21)

O Tabaco, para alguns

Já foi dito mais que uma vez que se vivia com alguma angústia e desespero em cenário de guerra, alguns militares pensavam que para atenuar estes factos, o cigarro ajudava, como tal quase todos os militares fumavam em cenário de guerra. Isto já era um hábito. Diziam que dava uma certa auto estima, ajudava a passar as horas e mantinha o militar, um pouco mais ocupado. Talvez, mais distraído.

Não sabiam como explicar, mas talvez fizesse a pessoa mais importante puxar pelo seu cigarro, batê-lo na palma da mão e acendê-lo com o seu isqueiro. Os que tinham vindo da cidade faziam esta operação com uma ligeireza e habilidade de espantar. Os da província, como era o caso do Cifra, aprendiam e depois também se vangloriavam com certas habilidades. Enchiam a boca e os pulmões com fumo, por algum tempo, depois faziam círculos, com esse mesmo fumo, alguns mais habilidosos, colocavam o fumo dentro de um copo, que depois largavam, com destreza tal, que faziam uma coluna de fumo, com várias curvas, em cima de uma mesa, feita com o tampão de um barril de vinho vazio.

Ao acenderem o isqueiro, produziam uma série de malabarismos, uns mais habilidosos que outros. Para o final do mês, alguns andavam “à crava”, que era o que se dizia na gíria, quando alguém não tinha tabaco e pedia a um colega, mas nesse aspecto, havia um pacto entre militares, de nunca deixar um colega sem tabaco.

As marcas que se usavam eram, “Três Vintes”, “Paris” e “High Life”, todos sem filtro, da companhia tabaqueira portuguesa, e “Marlboro”, com filtro, americano, que era só para dias de festa, pois a embalagem, tinha “manga de ronco”, ou seja muita classe, e quando um militar se vestia com roupa lavada, colocava a embalagem de “Marlboro”, no bolso da camisa, às vezes cheia de cigarros “Três Vintes”, de modo a que se pudesse ver, pois era um luxo e dava mais estilo.

O “Marlboro” custava um pouco mais. Depois havia os cigarros que se faziam e que circulavam entre alguns militares, pelo menos os que já se conheciam e estavam ali estacionados há bastante tempo, e às vezes não só, normalmente com o nome de “especiais”. Era um mistura de ervas, um pouco maiores que o tabaco normal, que se amassava com os dedos, fazendo pequenas partículas, que por vezes se misturava com o tabaco normal, outras vezes se faziam os cigarros só com essas ervas.

Esta mistura de ervas vinha em embrulhos pequenos, num papel amarelado, amarrado com um fio, tipo onça de tabaco, mas um pouco maior, que depois se faziam os cigarros com uma mortalha de papel. Quase sempre vinham do norte da província, ou talvez do país vizinho, das terras mais secas. Tinham um aroma delicioso, e quando se fumavam tirava a dor de dentes, relaxava e parecia que não havia guerrilheiros no mundo, custava quase o mesmo preço de um maço de tabaco “Marlboro”, pouco mais, mas tinham que se fazer os cigarros, era mais difícil arranjar as mortalhas de papel, do que própriamente a mistura de ervas, pois só quando passava uma coluna militar, vinda do norte, é que abastecia o pessoal.

Havia um africano que vivia na tal aldeia, com casas cobertas de colmo, próximo do aquartelamento, que fazia estes cigarros, enrolados em folhas de tabaco seco, eram uns charutos pequenos e finos, um pouco maiores que um cigarro normal, esse homem não chegava para as encomendas, mas só vendia aos conhecidos e não cobrava mais caro, por cada cigarro, algumas vezes não queria dinheiro, queria um embrulho de ervas, que depois fazia o preço. Ele dizia mais ou menos isto:
- Antes do pessoal branco, eu ter sempre erva, agora não tenho, pessoal leva tudo. Antes, ia na mata e apanhava erva, agora, vem “homem mau” e leva pessoal.

Com toda a certeza, quando dizia “homem mau”, se referia aos guerrilheiros. Este homem passava o dia deitado na rede, mascando cola, debaixo de uma espécie de alpendre, na frente de sua “morança”, com um rádio portátil ligado com uns fios a uma bateria que o Cifra lhe arranjou de um Unimog que tinha sido quase destruído por um fornilho, e ouvindo música e orações numa língua em que parecia que estavam a chorar, e as suas quatro mulheres trabalhavam na “bolanha”, juntamente com os filhos e as filhas. Só se levantava da rede, para entrar na “morança” e dar continuidade a um pequenino fogo que existia a um canto do principal compartimento, onde ardiam madeira e folhas de cheiro, que ele dizia ser por causa dos mosquitos, mas quase todos sabiam que esse não era o motivo, pois quando se entrava naquele compartimento, havia um odor agradável e ficava-se tonto e a cambalear.

Muitas vezes o Cifra via esse homem na vila, talvez distribuindo o seu produto por alguns residentes, descalço, trajando uma vestimenta branca que o cobria até aos pés, um gorro de lã na cabeça, com cores que iam do amarelo ao preto, o rádio portátil seguro com uma das mãos, no ombro, e com os fios ligados à tal bateria que o Cifra lhe tinha dado, que uma das suas mulheres caminhando atrás de si, carregava à cabeça.

Só se fumava esta mistura de ervas quando alguém não recebia correio, ou se recebia, as notícias não eram as melhores, como por exemplo a namorada ter ido ao baile da paróquia com o vizinho e já não gostar dele como no princípio, ou ter que sair ao outro dia para determinada operação ou andava com dores em qualquer parte do corpo.

Quando se desejava um cigarro destes, com toda a naturalidade se dizia:
- Estou com fortes dores neste maldito dente, tens aí um “especial”?

Às vezes era melhor um cigarro destes do que ir ver o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro.
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Nota de CV:

Vd. últimos 10 postes da série de:

22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10419: Do Ninho D'Águia até África (11): Zarco, o combatente (Tony Borié)

26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10438: Do Ninho D'Águia até África (12): O Madragoa (Tony Borié)

29 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)

2 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)

6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10488: Do Ninho D'Águia até África (15): O "Caneta" (Tony Borié)

9 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10504: Do Ninho D'Águia até África (16): As notícias (Tony Borié)

13 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10524: Do Ninho D'Águia até África (17): Meia Missão, em África (Tony Borié)

16 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10536: Do Ninho D'Águia até África (18): O clima do Equador (Tony Borié)

20 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10549: Do Ninho D'Águia até África (19): Furriel Roger, o Herói (Tony Borié)
e
23 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10559: Do Ninho D'Águia até África (20): Ida à capital da Província (Tony Borié)

3 comentários:

Henrique Cerrqueira disse...

Camarada Tony Borié
Dá gosto ler as tuas "estórias".Então o cifra é de partir o "côco".
Já agora e a respeito do cigarro.Infelizmente e por causa do tal combate ao "tempo"e eu que nunca tinha fumado,acabei por me viciar precisamente na Guiné,mas nunca experimentei os ditos cigarrinhos "especiais".
Agora te digo a ti e ao cifra que um certo dia e após uma longa caminhada em passo acelerado , eu experimentei mascar um pouco de folha de coca...Já estás a ver aqui o teu camarada com uma pica(eu disse PICA) daquelas.E depois tudo que eram extremidades tinham um "formigueiro" que parecia que ia explodir,mas o pior foi cá por baixo no "dito cujo" que já não tinha mais por onde esticar.
Não sei se esta estorieta tem lá muito propósito,mas a tua estória dos cigarritos fêz com que me lembrasse desta das folhas de coca.
Olha Tony quando estiveres com o cifra dá-lhe um abraço da minha parte e tu vai colhendo a minha simpatia pelas tuas estórias divertidas.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Tony Borie disse...

Olá Henrique.
Gostei muito da tua exótica, agradável e pitoresca história. Éra-mos jovens, tudo nos ficava bem.
Como dizes vou dar um abraço ao Cifra, mas vejo-me aflito para o calar, pois quer a todo o momento, lembrar e dar a conhecer aos antigos companheiros, tudo o passou nesses dois anos, dentro do arame farpado, e sempre cheio de mêdo, pois como deves de já ter compreendido, ele era um razoável militar, mas um fraco guerreiro!. Um abraço, Tony Borie.

Henrique Cerqueira disse...

Olá Tony Borie
Grato pelas tuas simpáticas palavras, mas por favor não cales o Cifra,pois que todos nós tivemos um pouco de "Cifra".Eu pela minha parte assim o reconheço.Tive os meus medos,os meus atos "guerreiros",as minhas asneiras..enfim um pouco aqui e ali de "Cifra".Uma coisa tivemos todos em comum. Foi termos estado numa guerra mais ao menos incompreensível e com um final"feliz???para uns e para outros ,não ???"Sei lá .Talvês o Cifra tenha algo a dizer,não?.
Um grande abraço e cá nos vamos encontrando neste Blogue nosso companheiro.
Henrique Cerqueira