quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10768: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4): Eu tinha dois doutores

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) com data de 3 de Dezembro de 2012:

Meu Caro Luís Graça.
Camaradas Editores.
Em anexo, segue o 4º texto com que dou seguimento à série " furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Dado que somente após o Natal voltarei a dar o meu modesto contributo ao acervo histórico do nosso Blog, aproveito para a todos os camaradas envolver no meu desejo de que esta Festa seja o continuar da Glorificação da vossas Famílias.

Abraços do
armando pires


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4)

Eu tinha dois doutores

 "... Só com a criação das carreiras médicas, em 1971, é que se começou a melhorar a formação especializada dos nossos médicos e cirurgiões... Para muitos camaradas médicos, o HM 231 (Bissau) e o "tirocínio" no mato foram uma "grande escola"...
Luís Graça, em comentário ao P10622

Eu tinha dois doutores.
Era para ter três, mas perdi um mesmo à saída da escada de portaló.
Era um oftalmologista em quem alguém descobriu, logo ali, insuspeitadas capacidades para ver fundo na raiz dos dentes, razão porque ficou em Bissau para uma especialização de três meses em medicina dentária, findos os quais percorreu todos os quadrantes dessa Guiné, em socorro de algum militar carente dos seus serviços.
O que é preciso é que tudo tenha corrido bem. Portanto, o meu Batalhão ficou com dois médicos.
Os alferes milicianos médicos Chaves Ferreira e José Manuel Oliveira.
Tão parecidos e tão diferentes.

Dermatologista, o Ferreira, licenciado em psiquiatria o Oliveira. Ambos eram altos, muito altos, para a época. Andavam devagar, falavam como se sussurrassem, sorriam como se não houvesse amanhã, faziam amigos como se fosse obra fácil.

O Chaves Ferreira, lisboeta nascido no casco velho, gingava nas palavras que traziam consigo saudades da Madragoa.

Natural de Matosinhos, o Oliveira era todo ele sotaque. Afável no trato, senhor da fina ironia com que me respondeu daquela vez, em Bissorã, quando recebemos a visita do tal oftalmologista que se tornou dentista. Era um tipo moreno, de média estatura, onde ganhava destaque uns óculos com um par de lentes, daquelas que parecem fundos de garrafa.

- Mas ó dr., ele era mesmo oftalmologista?
- Ouve lá pá - respondeu-me – então não lhe estás na cara?

A minha amizade com o dr. Chaves Ferreira nasceu ainda no quartel de cá, quando descobrimos que ambos eramos sócios do C. F. os Belenenses.
A amizade com o dr. Oliveira foi cimentada no dia a dia da Guiné, e permanece tal qual ainda hoje.
Mal chegados à Guiné, o dr. Chaves Ferreira foi direitinho a Bissorã, e mais tarde a Binar, dividindo os seus cuidados, nomeadamente, entre as CCAÇ 2444 e 2464.
O dr. Oliveira ficou junto da CCS, mas a seu cargo tinha a vigilância médica de todas as unidades dentro do sector do BCAÇ 2861.

Quem esteve no Olossato, Biambe, Bissum ou em Encheia, por exemplo, naqueles anos de 69/70, deve lembrar-se da sua passagem por lá. Nestas suas andanças era o Chaves Ferreira que vinha substituí-lo à sede do Batalhão (ver P10629).

Fev. 1969 - Uíge - Algures no mar, entre Lisboa e Bissau, o alf. mil. médico Chaves Ferreira crava um cigarrinho ao fur. mil. Pires, tendo como testemunha o cap. Pratas, comandante da CCAÇ 2466. 

Não cuidem que cometo o atrevimento de aqui me debruçar sobre o perfil profissional destes dois homens. Era o que mais faltava. Evoco-os porque o comentário do Luís Graça me sugeriu que o fizesse, mas evoco-os como homens, sobretudo ao Dr. Oliveira, aquele com quem mais tempo e mais de perto trabalhei. Mais do que o médico que a tudo e a todos acudia, o dr. Oliveira, talvez face à sua especialidade, ganhou rapidamente a confiança dos homens sobretudo pela sua disponibilidade para os ouvir.

Ele era aquele em quem se podia confiar, o único capaz de tratar e compreender a mais grave doença que tolhia o corpo e a devorava a alma daqueles rapazes feitos homens. A saudade.

E também lhes ganhou o respeito quando certa noite, em Bula, enfrentou o capitão Pinto, comandante da CCAÇ 2466, que pretendeu passar por cima de ordem sua.
Três homens daquela companhia encontravam-se num estado de saúde que exigia repouso. O capitão, reclamando dos seus galões, pretendeu obrigá-los a sair para uma operação, porque “quem mandava era” ele. Lá do alto do seu metro e oitenta e picos, diz-lhe o Oliveira:
- E aqui o médico sou eu. Se aqueles homens saírem, o senhor capitão assume todas as responsabilidades e eu terei de participar.

Surpreendido pelo desafio “do alferes”, o capitão Pinto foi queixar-se ao major Candeias, então oficial de operações.

- Bem, se o doutor diz que estão doentes é melhor não brincar com a saúde dos homens. Se não estão em condições ficam aqui.

Naquele quartel, até as conversas mais secretas corriam velozes. A admiração pelo dr. Oliveira e a pouca estima que os homens tinham pelo seu capitão, foram silenciosamente festejadas com uma ovação na caserna.

1969 - Bula - A parada do aquartelamento era o consultório dilecto do alf. mil. médico J. M. Oliveira, na foto ouvindo as confidências do cabo Lamelas, da CCS do BCAÇ 2861. 

Ao longo da comissão, entre o enfermeiro que eu era e o médico que era ele, sempre existiu grande convergência na acção. Nem eu era capaz de me deitar cedo nem ele de se levantar tarde. Nem eu me importava que ele chegasse à enfermaria pontualmente às nove, nem ele se agastava por eu chegar à hora de assinar o expediente.

Certo dia, fui forçado a trocar-lhe as voltas. Cansado das queixas do Filipe, o furriel vagomestre que partilhava o quarto comigo e que naquela noite não me deixara dormir com as suas queixas gastro intestinais, levantei-me para ir à enfermaria buscar uma boa dose de bicarbonato de sódio, com o qual pretendia pôr fim ao sofrimento dele e, já agora, também ao meu. Boquiaberto, o Machado, o meu 1º cabo enfermeiro, ao ver-me entrar consultou o relógio, que marcaria para aí umas oito e meia da manhã, e com aquele sorrisinho sacana que Deus lhe tinha dado, cumprimentou-me:
- Muito bom dia, meu furriel.

Com o bicarbonato nas mãos preparava-me para sair quando avisa o Machado:
- Vem aí o chefe.
- Qual chefe? - perguntei eu.
- O doutor Oliveira.
- O doutor Oliveira agora é chefe? – atirei-lhe com a aspereza capaz de contrabalançar a sacanice do seu bom dia.
- Ó furriel, a esta hora já vem lixar a cabeça à gente? É o chefe, não sabe que a malta aqui na enfermaria trata-o por chefe? Pronto.

O chefe entrou, fez um compasso de espera entre a porta e a secretária, e perguntou-me:
- Estás doente, pá?
- Não doutor – retorqui-lhe – É o furriel Filipe que não se limita a envenenar o pessoal no refeitório e envenenou-se também a ele.

Como se não tivesse bastado a sacanice do Machado, também o doutor me despediu com aquele sorriso que ficava ali a meia distância entre o mercado de Matosinhos e o Bolhão. Nunca lhe disse que a malta o tratava por chefe. E reconheço hoje que fiz bem. Considero-me assim vingado por ele só muito mais tarde me ter contado o que se passou naquela distante noite de 18 de Novembro de 1970.

Estávamos a um passo de terminar a comissão. Já se encontrava em Bissorã o BCAÇ 2927, para nos render. Já noite, depois do jantar, cruzei-me com o doutor que me disse, “eles andam aí”.
Subi à enfermaria e avisei o Machado que não deixasse sair a nossa malta para as tabancas. Desci ao bar de sargentos, onde já todos tinham feito o mesmo que eu, isto é, prevenir os seus homens, e com o Johnnie Walker do costume, dei de beber à espera. Foi um pouco longa, mais longa do que era hábito, mas pelas 22h45 o IN fez saber da sua presença.

O ataque, felizmente, levou muito pouco trabalho à enfermaria. Meia dúzia de feridos, todos da população, sem gravidade por aí além, quase não deu para os “piras” enfermeiros do 2927 saberem o que era trabalho. Já íamos no rescaldo quando me veio à cabeça que o doutor não aparecera. Também, não havia nada de especial para o ocupar. Mas se mais depressa pensasse nele, mais depressa ele aparecia.

Vi-o assomar à porta e perguntar:
 - Está tudo bem?

Deu-me vontade de lhe responder que ele é que não parecia grande coisa. Assim num repente, pareceu-me vê-lo com a roupa algo “desarrumado”. Mas, c’os diabos, acabáramos de sofrer um ataque, era natural que tivesse entrado no abrigo que tinha mais a jeito. E como ali estava tudo bem, ele foi indo e eu nada disse.

Tempos depois, recordava-lhe o que fizera ele para salvar vida a uma mulher e aos gémeos que estavam em posição muito difícil para nascer, quando lhe ouvi:
- É pá! – se há expressão que se transformou em parte identitária do dr. Oliveira, foi esta.
- É pá, a pior não sabes tu.

E por entre desvairadas gargalhadas, eu ouvi-o fazer o relato que, com a sua autorização, aqui reproduzo no melhor que for capaz.

“Naquela noite do nosso último ataque em Bissorã, apareceu-me o Zé, aquele manjaco que era cozinheiro da messe de oficiais, a pedir-me que lhe acudisse a casa que a mulher estava para ter filho. 
- Qual mulher, ó Zé? – o gajo tinha três mulheres, pá. 
- Ó senhor doutor, é a mais nova. 
E eu, já tínhamos informações de que os gajos podiam atacar naquela noite, comecei a pensar – e se eles atacam e sou preciso na enfermaria, como é? -, digo ao manjaco: 
- Mas olha lá, ó Zé, achas que ela vai ter menino agora? 
- Vai sim, senhor doutor, ela já está muito aflita. 
- Ó Zé, e se eles atacam esta noite? 
- Ó senhor doutor, não tem preocupação. Eu tenho tudo preparado. A mulher já está dentro do abrigo, à espera. 

Estás a ver Pires, o gajo já sabia que íamos mesmo ser atacados. Mas como já passava das dez, pensei que se calhar o ataque já não era nessa noite e pronto, lá fui a casa dele. 
Entrei no abrigo, a mulher estava deitada na esteira, e à volta dela as duas outras mulheres do Zé. 
Ajoelhei-me na esteira para começar a ajudá-la, e não é começou mesmo o ataque? Ó pá, aquilo foi o fim do mundo. Ela a gritar, as outras duas mulheres a gritarem, as bombas a caírem e as galinhas, que o Zé também metera dentro do abrigo, doidas, a esvoaçarem por cima da mim, e à volta da mulher a parir, penas por todo o lado… o fim do mundo, pá. Já viste, Pires, e logo comigo, que a última coisa que gostava de fazer era partos.”

Pronto, Chefe, já passou.

1970 - Binar - Depois de uma semana passada em Binar, onde estava sediada a CCAÇ 2464, o alf. mil. médico J. M. Oliveira despede-se do soldado maqueiro Lopes, à esquerda, e do Patricio, soldado que era seu conterrâneo.

O Dr. José Manuel Soares de Oliveira, foi Assistente de Psiquiatria na Faculdade de Medicina do Porto e reformou-se quando era Chefe de Serviço de Psiquiatria do Hospital de S. João.
Na sua juventude jogou voleibol na equipa do Leixões e, mais tarde, foi médico da equipa de futebol sénior leixonense, na época dos famosos “Bebés de Matosinhos”.
No passado dia 28 de Novembro, a ilustre Tabanca de Matosinhos convidou-o para um dos seus almoços.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)

8 comentários:

Luís Graça disse...

Mais um crónica deliciosa do Armando!... Outra, para a nossa antologia. Já agora peço ao nosso editor de serviço para acrescentar às etiquetas o marcador "Os Nossos Médicos"... E dois, o que na Guiné era um luxo!...

Pois, Armando, arranja lá uam foto do convívio, na Tabanca de Matosinhos, no passado dia 28 de novembro, com o nosso psiquiatra, José Manuel Soares Oliveira... O nome não me era estranho, mas julgo não o conhecer pessoalmente. Tu, que ainda convives com ele, desafio-o para "blogar" connosco... Pela consulta do seu processo individual, vejo que ele foi docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto entre 1974 e 1987...

A história do parto no abrigo valeu o dia de hoje! Parabéns!...

E já agora um farto, alegre, saudável Natal como antigamente, é o que te desejo... O meu vai ser no Norte, como de costume... A tradição tem que continuar a ser o que era, mesmo com as troik...ices que nos pregam!

armando pires disse...

Meu caro Luís Graça.
A foto do almoço existe.
Quem a tirou foi o João Rebola, fur. Mil da CCAÇ 2444, que esteve em Bissorã comigo, e que eu só reencontrei, graças ao nosso blog, ao cabo de 40 anos. O Rebola vive paredes meias com o dr.. Foi ele quem o convidou. Levou-o a ele mais ao capelão Batista, hoje ten cor. , e sobre quem já aqui escrevi, e também a um soldado da minha companhia, o Miranda, que por acaso vai ser um dos protagonistas da minha próxima história.
Quanto ao dr. Oliveira escrever para o nosso blog... , vou fazer o que estiver ao meu alcance.
Um grande abraço e renovados votos de Bom Natal.

Anónimo disse...

Como é que esta rapaziada mais nova do que eu, escreve bem e eu não consigo? Manda mais Amigo e se não contactarmos antes, um BOM NATAL, Abraços
De: Veríssimo Ferreira
CCAÇ 1422 K3

Bispo1419 disse...

Mais uma vez, o Armando Pires em grande! Este camaradão não perdeu a qualidade de jornalista e é daqueles tipos que desejávamos, quando morressem, nos mandassem do "além" (ou do "aquém") a reportagem da sua morte, para amenizar e não esquecermos a sua partida.

Oh Armando, meu querido amigo, o teu texto está uma maravilha! Até o "vaidoso" do Veríssimo ficou ofuscado, vê lá!, ele que escreve com qualidade. Mas tenho de dizer uma coisa: o teu magnífico relato escrito do parto não ofusca as imagens que me ficaram com o relato oral que, há tempos, me fizeste. Faltam-lhe a teatralidade e o relevo dramático da tua voz e dos teus gestos. Um bónus que eu tenho, de vez em quando, quando nos encontramos.
Um grande abraço para ti, meu santareno ribatejano e fadista. Fadista? Pelos vistos parece-me que não me achas digno de te ouvir cantar o fado! Parece-me porque, meu amigo que és e melómano que eu sou, talvez tenhas decidido poupar-me não me sujeitando aos teus trinados fadistas. Se não for assim, peço desculpa e peço justiça da tua parte. E venha de lá um fado!

Um abração
Manuel Joaquim

JD disse...

Ora Viava o Pessoal,
Esta tropa que o Pires vem relatando tem uma característica surpreendente que não se encaixa na minha experiência:
Conta cá ó Pires: vocês combinavam os ataques; havia no batalhão algum adivinho; ou era tudo negociado para dar verosimilhança à guerra?
Um dia destes vou contar alguma coisa do Vitor, o meu grande amigo e camarada furriel enfermeiro, assim com'á ti, danadinho para processos estranhos.
Um abraço
JD

armando pires disse...

Hehehehehe!
Ó JD, agora tiveste graça, pá.
Uma boa guerra combinada tem logo enredo.
Mas olha lá, JD, não me digas que na rua guerra não havia um gajo de informações que tivesse umas "boas fontes".
Assim tipo, "eles andam aí".
O nosso tinha, era raro acertar, mas tinha. Quantas e quantas noites não fui dito, "eles andam aí" e, afinal, não andavam.
E outras em que não sonhavamos que eles "andavam" e, no entanto, era ferro de arrazar.
Conta lá coisas do Vitor para eu ler.
Um abraço camarada do
armando pires

armando pires disse...

Amigo e Camarada Manel.
Um dia levas uma barrigada de fado que nem sabes.
Quanto à reportagem das partidas, há muitos anos, julgo que mesmo no inicio da minha carreira, havia um tipo que me dizia.
O reporter nunca morre.
Porque o reporter é o que fica para contar o que aconteceu.
abraços, meu amigo.
armando pires

Alfredo Miranda disse...

Amigo Armando Pires com muitas saudade fiquei ao ler a tua história pois foi um tempo muito bom no convevio a CCS do Batalhão 2861 era mais do que uma familia e ao rever o Dr. Oliveira e mais camaradas fiquei contentissimo por isso faço aqui este comentario a tua verdadeira história e do Dr. Oliveira obrigado por me fazeres recuar no tempo um grande abraço e aproveito para endereçar um abraço para o camarada Luis Graça Alfredo Miranda Rádiotelegrafista da CCS do Batalhão 2861 xau