segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10857: Notas de leitura (442): Três estudos sobre a Guiné Portuguesa: A população de Cacine, a cestaria e o totemismo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
António Carreira e Fernando Rogado Quintino foram dois estudiosos da Guiné-Bissau e o seu trabalho mantém-se de leitura obrigatória.
As minhas idas à Feira da Ladra, o gosto em vasculhar nas caixas onde se amontoam papéis em absoluta desordem, permitem estas descobertas por vezes ao preço de 1 euro.
Se na nossa augusta tertúlia alguém dispuser de papéis deste jaez e não sentir entusiasmo em comentá-lo para dentro da nossa sala de conversa, contem comigo, só exceciono aqueles trabalhos à volta dos vírus, outros que metam cobras ou estudos dos solos, sinto-me desapaixonado, acho que tão nobre missão deve recair nas mãos do veterinários e engenheiros especializados.

Um abraço do
Mário


Três estudos sobre a Guiné Portuguesa: A população de Cacine, a cestaria e o totemismo

Beja Santos

António Carreira e Rogado Quintino foram dois estudiosos incontornáveis da historiografia, etnografia e antropologia da Guiné Portuguesa. Deixaram uma enorme bibliografia, basta que o leitor navegue no Google, encontrará estudos surpreendentes, alguns deles há mesmo a possibilidade de serem descarregados. Encontrei três pequenos estudos cuja utilidade pretendo partilhar com os confrades. O primeiro intitula-se “Guiné – A população do posto de Cacine no decénio 1950-1960”, por António Carreira. Ele vai seguramente ao encontro da curiosidade de quem, por qualquer razão, viveu ou combateu nos regulados de Gadamael, Quitafine ou Cacine. Carreira lembra-nos que este território entrou na posse de Portugal depois de 1886, houve retificação de fronteiras até 1929. Deplora a troca do Casamansa pela região de Cacine, dizendo que o primeiro servia de via de escoamento enquanto os cursos de água de Cacine, sinuosos e pouco profundos, não permitem a afluência do comércio do interior. Para que o leitor entenda como o território até ao início da luta armada tinha predominantemente Balantas, Nalus e Fulas, é importante compreender que a prolongada guerra de 1863-1888, travada entre Fulas e Beafadas e Mandingas, fez aproximar da região de Cacine grupos étnicos que até então viviam em outras áreas. Deu-se uma migração de Fulas que passaram a influenciar os Nalus. De acordo com o estudo do recenseamento, encontravam-se presentes quase todas as etnias, com raras exceções importantes, como os Bijagós. Depois o autor debruça-se sobre a estrutura familiar dos Nalus, eram profundamente animistas e, tal como os Bagas e os Landumás foram sujeitos à islamização. Possuíram, até à islamização, uma arte excecional, marcada por máscaras e tambores. De acordo com o trabalho de Carreira, dos anos 50 para os anos 60 do século passado deu-se uma evolução demográfica impressionante, ultrapassou os 50 %, os animistas foram predominantes neste crescimento (Balantas, Nalus, Beafadas e Sossos).

Quanto aos dados demográficos, no regulado de Cacine, a povoação de Cacine tinha uma população inferior a 500 habitantes, seguia-se Cassacá, depois Cacoca, Cabaz e Cabochanquezinho no regulado de Gadamael, havia mais população em Sanconhá (Sangonhá), Ganturé, Bricama, Jabicunda. Quanto ao regulado de Quitafine, o maior núcleo populacional era Cassebeche, seguindo-se Canefaque e Calaque. O autor discreteia ainda sobre a estrutura familiar, as ocupações por etnias e deplora que o recenseamento não contemple o grau de instrução das populações autóctones e apela a que se venha a conhecer em novos censos dados relevantes sobre as confrarias islâmicas. Este estudo apareceu publicado na revista do Centro de Estudos Demográficos, em 1972.

Como eram os três regulados da região de Cacine, antes da luta armada (1963)

Fernando Rogado Quintino apresentou uma comunicação no Congresso Internacional de Etnografia, que se realizou em Santo Tirso, em 1963, e intitulada “O Totemismo na Guiné Portuguesa”. Depois de analisar este fenómeno que passou a ser estudado a partir dos finais do século XVIII, escreve o seguinte: ”Os povos da Guiné Portuguesa, que conservam a sua estruturam tradicional, são animistas. Os seus feitiços nada mais são do que suportes das almas dos antepassados, verdadeiros tótemes dos parentes vivos. Os “USSAIS” dos Manjacos, Brames e Papéis, os “AULES” dos Balantas, os “TCHINAS” dos Felupes, os “ORREBUKES” e “IRANDES” dos Bijagós, quer sejam simples estacas de madeira, manipansos ou “CANSARÉS” quer pedras, farrapos, amuletos, cobras, crocodilos ou poilões, assumem carácter sacro, não pela natureza da sua matéria, pelo aspeto físico da sua constituição, mas porque se tornam depositários dos antepassados mortos”. E refere que determinados mamíferos, felinos, répteis, pássaros, plantas, no fundo, nada mais são do que verdadeiros tótemes locais, seres considerados protetores de determinado grupo, e este, por sua vez tributa-lhes respeito e veneração: não os mata, não os come, não os destrói. E consulta-os a cada passo. Cada grupo identifica-se com o seu tóteme em cerimónias festivas. Alguns grupos, como os Manjacos, os Brames, os Papéis e os Bijagós, estão organizados em clãs, regem-se por uma regulamentação por vezes complexa em matéria de sucessões, de praxes, de interdições, de tabus, de obrigações sociais. E analisa em profundidade vários conceitos totémicos e o nome dos animais para concluir que na Guiné Portuguesa os povos que conservam a sua estrutura tradicional vivem ainda impregnados de conceitos totémicos, que se manifestam através de uma multiplicidade de práticas, de ritos e de tabus, destacando o grupo Papel, que habita a ilha de Bissau, esse tem uma organização social do tipo nitidamente totémico.

Fernando Rogado Quintino escreveu nas Publicações do Centro de Estudos Africanos do Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra, 1988, a “Cestaria na Guiné Portuguesa”. Refere em primeiro lugar as espécies fornecedoras de matéria-prima para cestaria e tece considerações sobre a sua confecção, aludindo à forma como se obtém o contraste pelas cores e à operação (raríssima) do polimento a verniz. O cesteiro dispõe de equipamento modesto, o terçado; aprecia os vários métodos de fabrico e elenca as diferentes etnias que se distinguem no fabrico da cestaria. E observa que os povos do interior, particularmente Fulas e Mandingas fabricam cestos especiais altos com o fundo de igual largura da boca, destinados à recolha e guarda de géneros, funcionam como silos, substituindo os potes de barro cru.

Nas conclusões, Rogado Quintino diz que “Não atingiu a cestaria na Guiné aquele grau de desenvolvimento que suscita nos artífices vocações para trabalhos finos: cestos de costura, corbelhas, açafates, etc. As espécies fabricadas não vão além do estritamente necessário à vida doméstica. É esta a razão por que não existem ali profissionais consagrados da especialidade. De todos os grupos, aquele que mais se tem distinguido neste particular é o brame (também conhecido por mancanha). As suas criações denotam já um sentido artístico apurado; pelo menos fogem da vulgaridade”.

Cesto brame, com tampa, para guarda de panos e roupas interiores, fabricado com fechos de capim. Peça do Museu Nacional de Etnologia

Chapéu de fabrique brame, peça que demonstra as vocações artísticas desta etnia em matéria de entrançados. Peça do Museu Nacional de Etnologia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10835: Notas de leitura (441): "Prece de um Combatente Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial", por Manuel Luís Rodrigues Sousa (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá Camarada
Estive em Cacine, em 1968, e comprei algumas peças de arte Nalú que já tentei expor no blog. Havia, nessa altura, um único artesão, Mussé de seu nome, que passava os dias sentado à beira do rio atrás da enfermaria civil a trabalhar. O Cap. Sá Nunes tinha-lhe arranjado um aprendiz, com cerca de 10 anos. Creio que esta arte se perdeu. Cacine era uma terra rica em citrinos, caça, ostras e peixe de rio. Era o que se pode chamar um rica terra.
Um Ab. e Boas Festas
António J. P: Costa