quinta-feira, 21 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11289: Blogpoesia (330): No Dia Mundial da Poesia... Como é bom rever-te, Lisboa, Tejo e tudo (Luís Graça)




Lisboa, Mouraria, Largo da Severa > 11 de setembro de 2011

Foto:  © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados

1. No Dia Mundial da Poesia, 21 de março de 2013... Para os amantes de Lisboa, para a Lisboa dos amantes... LG


O reordenamento de Lisboa, Tejo e tudo 
Luís Graça

Lisboa, sete colinas,
o rio, uma paixão,
que deram origem
à arte e à ciência da olissipografia.
E tu, querida,  eras uma das meninas
que ficava bem,
à janela,
recortada em pórtico manuelino
da Casa dos Bicos
ou no laranjal
da estória da Nau Catrineta,
desenhando frágeis castelos de Espanha
nas areias movediças de Portugal.

Lisboa, menina e moça,
tu podias não saber nada
de geografia,
nem da didática da educação de adultos,
nem da fisiologia do coração,

nem de macroeconomia,
nem de desenho a três dimensões,
nem do risco sísmico,
nem sequer do simples risco de existir e de estar viva.
Mas sempre tiveste por perto
o estúpido pirata de perna de pau,
vesgo e maneta,
irrompendo os teus sonhos
com o pesadelo do sentimento de um ocidental
na ponta mais fina de uma espada
guardada na Torre de Belém.

Lisboa, o casario, o castelo, a mouraria,
e rente ao chão,
a devoção, a procissão
da Senhora da Saúde,
que nos valia nos anos de peste,
nos meses de guerra,
nas semanas de fome
e nos dias de depressão,
a depressão funda, cavada,
do vale de Alcântara até Xabregas.

Lisboa, a Torre do Tombo,

os livros, os incunábulos,
os alfarrabistas,
as pedras, as cantarias,
as traves mestras
que nos falam da cidade
em construção,
dos arquitetos,
dos trolhas,
dos estucadores,
das gaiolas pombalinas,
dos tristes, saudosos da partida,
dos pintores de tabuletas
e de retábulos dourados das igrejas,
dos aguadeiros,
do poço do mouros
e do poço dos negros,
dos almoxarifes,
dos vedores,
dos provedores,
dos coveiros da pátria,
dos enfermeiros-mores,
dos físicos e dos tísicos,
do Carmo e da Trindade,
outrora de pedra e cal,

dos agiotas,
das tenças e das mercês,
dos engenheiros hidráulicos,
dos agrónomos,
dos agrimensores,
dos silvicultores do pinhal d’el-rei,
dos santos inquisidores,
das freiras e das frieiras
que é coçá-las e deixá-las

no cemitério de todos os prazeres.
Ah, aí onde a vida acaba
na ponta de uma naifa
no Bairro Alto
das fadistas

e na Baixa Chiado dos seus chulos.

Mas não de tédio,
minha querida,
diz o pregão da varina,

nem de desesperança,
que ainda a noite é uma criança,
e enquanto houver o 28 para a (Des)Graça
com bilhete de ida e volta,
as Escadinhas do Duque
ou a Calçada do Combro
e os escombros do terramoto
por subir, trepar ou escalar.
E os filetes de alfaquique
ou peixe-galo
com açorda de ovas

que não vão à mesa do rei.
E os pastéis de Belém com IVA
e o bife dos ricos
à Marrare
e as iscas, dos pobres,  com elas
nas carvoarias dos galegos
e o cheiro a carvão e a sardinha,
linda que tresanda
nas ruelas e vielas dos bairros populares,

por fim reordenados,
e livres do tifo, da febre amarela, da cólera,
do bacilo de Koch
e das paixões cegas da alma.
E o Portugal very tipical
do António de Ferro,

descalço e de barrete,
com que te quiseram tramar;
e as sécias e os peraltas da Belle Époque
que a Avenida da Liberdade
acaba na rotunda das edificantes públicas virtudes
e no beco dos mais torpes vícios privados.

Tu, terna, eterna, Olissipo, 
onde o azul do céu é único,

diz o ofício do turismo,
e nos leva a todos os caminhos do infinito.
Ulisses sabia-o
e bem guardado estava o segredo
do mais fundo do tempo.
E por isso fundeou no estuário do teu Tejo,

e te fundou e fecundou,
e trouxe com ele 
a caixinha de Pandora,
e os perfumes inebriantes
das mais belas:
troianas,
fenícias, gregas,
cartaginesas, romanas,
celtas, ibericíssimas,
godas, visigóticas,
mouras, berberes, azenegues, 

futa-fulas, mandingas, pretas da Senegâmbia,
crioulas de carapinha e olhos verdes,

ameríndias, guaranis, 
bárbaras, belas, pérfidas,
ubérrimas,
santas e penitentes,
errantes, caminhantes,
místicas, algures perdidas,
loucamente perdidas
nos caminhos marítimos para as Índias.

Que te importa, amor, 
se Lisboa já não é
uma praça forte,
uma bolsa contra os valores
daqui d’ el-rei
que o paço e o terreiro,
o trono e a régia cabeça,
tremem e estremecem,
entre o Martinho e a Arcádia,
na iminência de um ataque
terrorista

ou da implosão do euro.
Dantes chamava-se anarquista,
à bomba regicida,
quando a palavra de ordem era
a bolsa ou a vida, abaixo o Estado!
E não havia as avenidas novas,
do Ressano Garcia,
nem o risco dos engenheiros,

nem o cordão sanitário,
nem a construção a custos controlados,
nem o prémio Valmor,

nem o Siza nem o Moura,
nem o fundo de mão de obra,
nem o Dow Jones ou o NASDAK.
Nem a apagada e vil tristeza
que te matou, meu irmão Luís de Camões.

E estavas tu, querida,
postada à janela,

descalça e de xaile preto,
em sossego e bom recato,
com vistas largas
para o casario, a sé, o castelo,
o mar da palha,

o mundo vário,
a rua do ouro e a da prata,
o augusto senhor dom José a mata-cavalos,
a serra, a arrábida fóssil,
a armada outrora invencível,
a ribeira das naus,
o turista, o voyeurista,
o motorista
do senhor ministro sem pasta
nem forragem para o gado na canícula do verão,

nem para os puros sangues lusitanos da alcáçova,
nem sangue nem soro para os heróis menores, anónimos, 

da guerra colonial
que vieram morrer na praia
do 10 de junho,
o velho do Restelo,
que já foi praia sem bandeira azul nem glória,
o velho do Restelo agora ainda mais velho
e mais estupidamente lúcido e cruel,
o Cesário e a sua idiossincrasia,
o Cesário, verde e rubro,
nos estádios dos eurofutebóis,
mais o Eça de Queiroz,
o estrangeirado,
que te amava à maneira dele, 

a Sofia, a deusa, a olímpica,
o Almada e os seus marinheiros sem futuro,
o Ary, provocateur, panfletário,

mais o O'Neil, que era tão louco quanto irlandês,
e o luminoso Eugénio de Andrade,
e ainda a Amália 

e a nossa estranha forma de vida,
e tantos outros poetas que te cantaram,
e que morreram de amores por ti.
Ah, e o Pessoa, subindo e descendo o Chiado,
de braço dado contigo,
recitando-te o heterónimo:
A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…

Teria sido feliz.
Mas como é que eu sei se teria sido feliz ?


Esquece o Álvaro, o Campos, o sedutor,
e deixa-me pôr-te a caminhar
pelos caminhos ínvios e íngremes
desta cidade-sortilégio,
que
nós amamos no singular 
e maltratamos no plural…
E se, contudo,
há um privilégio,
é sempre o da amizade e do amor,
é esse de poder ter-te
ao alcance da mão e do coração
dos amantes,
entre a Rua Augusta e o Cais de Sodré,
ou de permeio,

no Terreiro do Paço,
entre a liberdade sem rua nem abrigo
e os segredos de polichinelo da tua caixa de correio.
É, enfim, esse privilégio de poder dizer-te,
no regresso da última nau do império:
Como é bom rever-te,
Lisboa, Tejo e tudo.

Lisboa, Terreiro do Paço, maio de 2006

6 comentários:

Unknown disse...

A poesia caiu na cidade e com ela todos os grandes que a compuseram.
Compuseram-na e demo-nos compostos por ela.Gostei imenso e aproveito para dar as minhas felicitações.Que o dia se cumpra em todo o lado com garra e pujança.

Mário Vasconcelos, agora por Guimarães que Galomaro já foi.

antonio graça de abreu disse...

Excelente poema, Luís. Também vais depurando a escrita, porque a sensibilidade poética está contigo há
muito.

Mas eu sou um homem do Porto.

Por isso, recordo alguns dos meus inéditos haikus da Guiné.

Que calor em Bissau!
Saudades do Porto
e da praia do Vau...

Santo António em Alfama
Sangue e morte em Cufar.
A demência na cama.

Guerra e paz em Mansoa,
e nós, o coração esfarrapado,
no sonho breve, adiado
do regresso a Lisboa.

Veio comer à minha mesa,
a menina balanta,
os olhos raiados de tristeza.

Em Canchungo,
na humidade quente dos dias da guerra,
no leito de ferro,
no colchão de borracha enegrecida,
recordo o perfume faiscante das dobras do teu corpo,
os teus seios de linho e alabastro.

Descoroçoado, piso a sombra
do grande poilão de Cufar.
Caminho na penumbra ensanguentada dos dias.

Varri o chão, perfumei o leito,
mas a bajuda não veio.
Eu sou branco, mas não sou feio.



Qualquer dia mando uma remessa grande dos meus haikus da Guiné.



Abraço.

António Graça de Abreu

Torcato Mendonca disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís Dias disse...

Camarada Luís Graça

Para quem ama Lisboa como eu, para quem adora passear pelas suas ruas, praças, becos e vielas. Para quem admira os cheiros das castanhas, da sardinha assada nos santos populares. Para quem tem saudades das fragatas a cruzarem as águas do Tejo e tem presente os antigos pregões bairristas, as tuas palavras sobre esta nossa querida Capital, vieram relevar que a cidade branca - do filme de Alain Tanner - continua fazer-nos sonhar.

Um abraço

Luís Dias

Torcato Mendonca disse...

O comentário foi eliminado por mim.Li,hoje e,francamente, não gostei. Ontem estava demasiado cansado para escrever.Abraços, Torcato

ps - Gostei do que o Luís Graça escreveu,Talvez retoque e volte a inserir o comentário.

Anónimo disse...

E Viva a minha Lisboa!


Abraço meu e da Cidade!



J.Cabral