quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11965: Memória dos lugares (244): Hospital Militar de Bissau: não há duas memórias iguais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Mais uma fotografia descoberta na Feira da Ladra, uma imagem de todos conhecida.
Primeiro entretive-me com a singularidade do que a câmara registou, uma autêntica câmara clara, seguramente ainda anos 1950. E recordei-me de uma peripécia ali vivida, algures em Novembro de 1991, um médico colérico que fez um aranzel para me explicar que trabalhava em condições muito deficientes (o que saltava à vista, nem era preciso ter entrado no bloco operatório) e que depois serenou, acabámos por jantar juntos, tivesse havido mais tempo e teríamos ficado amigos.
Quando vemos uma fotografia, há sempre duas histórias diferentes, a minha foi esta.

Um abraço do
Mário




Hospital de Bissau: não há duas memórias iguais

Beja Santos

Encontrei esta fotografia num dos meus mais prestáveis fornecedores, o Eduardo Martinho, comerciante da Feira da Ladra. Sei muito bem que no blogue este hospital aparece repetidas vezes, mas tenho razões fundadas para a distinguir por uma razão estética e por uma razão ética. A estética prende-se com a luminosidade, aquele recorte de alvura que se espraia pela varandas do primeiro andar. Terá sido tirada ainda nos anos 50, veja-se um pouco da carripana, um modelo que nenhum de nós encontrou a circular. Um piso arranjado, canteiros ajardinados, não há um papel no chão, tudo cheira a novo, um hospital assim era um antro de respeitabilidade. É uma luz tão convincente que o olhar, numa segunda mirada, reconhece as janelas desenhadas a branco.

A razão ética tem a ver com uma experiência que ali vivi, salvo erro em Novembro de 1991. Andava afobado a preparar guiões para os programas que eram emitidos regularmente uma vez por semana “Um milhão de consumidores”. O programa em causa que me levara ao Hospital Simão Mendes era preparar com um médico que seria entrevistado sobre a importância da lavagem das mãos e dos espaços de confeção de alimentos para evitar doenças. Fora-me indicado um médico, comparecia ao encontro, vi animais a cirandar no adro, a refocilar no lixo, vi pessoas com colchões às costas, e seguramente familiares doentes que traziam fogareiros para cozinhar refeições, o hospital já estava na penúria, dava assistência médica e enfermagem, o resto estava por conta do doente e família. Esperei pelo menos duas horas, foi tempo que deu para examinar o sofrimento, a indignidade, a total ausência de direitos dos doentes. O médico recebeu-me numa sala vazia, reduzida a um arremedo de secretária e duas cadeiras partidas, lá nos equilibrámos. O médico estava muito crispado, falei-lhe do programa televisivo e do que se pretendia do seu depoimento, a ser registado ou ali ou nos estúdios da RTP Bissau. Abruptamente, o rosto ficou contorcionado e fez-me um discurso apoplético, parecia impossível não ter percebido que estava há mais de 24 horas no banco operatório onde praticamente faltava tudo, os colegas tinham-se raspado, estava esgotado, era uma imprevidência deixar um profissional de saúde entregue a si próprio, à fome e ensonado. Só acalmou quando lhe procurei fazer compreender que nada sabia da situação, o seu nome fora-me indicado por um colega, seguiu-se um longo queixume sobre as carências da vida de médico, a falta de dinheiro, a falta de estímulos, trabalhar naquelas condições degradantes, ver morrer pela ausência de meios, etc. E acordou-se dar-me o apontamento para a televisão, no dia seguinte, o que aconteceu.

E aceitou jantar comigo, na Pensão Central. Estudara e diplomara-se na RDA, já perdera as esperanças de exercer clínica, não tinha incentivos para a formação contínua, e não passava fome porque colaborava em vários projetos da Organização Mundial de Saúde. Tenho impressão que já falava meio a dormir, felizmente alguém tinha ali um transporte e fomos levá-lo a casa, ali em Santa Luzia.

Juro que foi o que me ocorreu quando comecei a olhar esta fotografia com um conteúdo aparentemente banal, e depois das razões ética e estética fiquei a pensar como sofrem os doentes que ali entram, que nada sabem de sistemas de saúde como o nosso, nem de taxas moderadoras nem de listas de espera, nem de medicamentos genéricos.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11908: Memória dos lugares (243): Núcleo Museológico Memória de Guileje - Parte II (Carlos Afeitos, ex-cooperante, 2008/2012)

1 comentário:

armando pires disse...

Meu Caro Mário.
Camarada.
Não sei se o Eduardo Martinho já lhe confidenciou, mas ele também esteve na Guiné. Fev. 69 / Dez. 70.
Bula e Bissorã.
Foi Furriel Miliciano Pel. Rec. da minha companhia.
A CCS do BCAÇ 2861.
armando pires