segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12276: Notas de leitura (533): Escravos e Traficantes no Império Português, por Arlindo Manuel Caldeira (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
A investigação do historiador Arlindo Manuel Caldeira irá surpreender todo aquele que procura uma resposta rigorosa e fora do domínio dos tabus para o chamado “o infame comércio”, o tráfico de escravos.
O autor oferece-nos um adequado enquadramento para as grandes questões do comércio negreiro e trata exaustivamente a cronologia deste comércio feito por portugueses. Os pontos de vista procurados cingem-se, claro está, à Guiné. Para quem tenha dúvidas, aqui fica a confirmação que foi a área de comércio menos relevante das nossas posições na África Ocidental.

Um abraço do
Mário


Escravos e traficantes no Império Português, o caso da Guiné-Bissau

Beja Santos

“Escravos e Traficantes no Império Português, O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX”, por Arlindo Manuel Caldeira, A Esfera dos Livros, 2013, é uma obra de indiscutível importância para se conhecer sem preconceitos ou falsas moralidades a extensão da participação portuguesa no chamado “o infame comércio”. Como é óbvio, centram-se as preocupações deste estudo no que tange à Guiné.

O autor é desassombrado logo na introdução no enquadramento da problemática.
Primeiro, não tem qualquer fundamento a ideia que foram os europeus que introduziram no continente africano a escravatura e o tráfico de escravos. A escravatura estava presente em todas as sociedades africanas antes da chegada dos europeus. Antes de começar o tráfico atlântico já os comerciantes árabes transportavam escravos africanos em direção à bacia mediterrânica e à Península Arábica. Esta verificação não obsta que se diga que o comércio negreiro transatlântico teve uma significativa maior dimensão.
Segundo, não é verdade que no período transatlântico o tráfico tenha sido uma iniciativa e um negócio de europeus, em que os africanos eram vítimas passivas. As elites locais participaram conscientemente neste tráfico, tirando proveito próprio e auferindo lucros significativos. Se é verdade que os portugueses quando chegaram à África subsariana ainda praticaram, como faziam em Marrocos, razias para a captura de prisioneiros, quando o comércio negreiro se institucionalizou tais práticas foram substituídas por relações de comércio pacíficas.
Terceiro, com um pragmatismo total, os europeus aproveitaram os mercados de escravos já em funcionamento, instalaram feitorias e submeteram este comércio às regras da oferta e da procura do tempo: um escravo passou a valer x em cavalos, manilhas de cobre, panos. Os colonizadores portugueses, aliás, não estavam em condições de interferir diretamente nas guerras entre os povos locais, beneficiavam, pura e simplesmente, dessas guerras. André Álvares de Almada, no final do século XVI, escreveu que os Mandingas do rio Gâmbia vendiam muitos escravos, “uns obtidos em guerras e juízos mas muitos outros em furtos”; na Guiné, os Bijagós, hábeis marinheiros, realizavam as suas incursões por mar para obterem escravos que depois vendiam aos portugueses.
Quarto, possui-se hoje, graças a importantes investigações coletivas, dados e números que permitem uma aproximação sobre as dimensões deste tráfico. Como refere o autor, o destino principal, durante as primeiras décadas do século XV, foi o continente europeu e os arquipélagos atlânticos onde se introduziu a produção de açúcar (S. Tomé, Canárias, Madeira). Nas primeiras décadas do século XVI, Portugal deve ter recebido uma média anual de dois a três mil escravos.

Com a União Ibérica, os portugueses irão ganhar ainda maior protagonismo no abastecimento de mão à América Espanhola. Este comércio será profundamente alterado quando acabou o monopólio luso-espanhol. Em 1621, fundou-se a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, avançou para o Atlântico Sul e começou a ocupar importantes povoações brasileiras, irão ser expulsos depois da Restauração, mas já estavam experimentados na produção sacarina, lançaram-se na Guiana e nas Antilhas. Haverá depois uma nova fase do tráfico atlântico que corresponde ao século XVIII, prolonga-se ainda pela primeira década do século XIX, carateriza-se pela internacionalização do tráfico e por uma transferência maciça de população africana para as Américas. A Europa do Norte juntou-se a Portugal no negócio da mercadoria humana: Holanda, Inglaterra e França, mas também a Dinamarca, a Suécia e até alemães. Na terceira fase, que se inicia na segunda década do século XIX, os povos ibéricos têm por companhia os EUA.

Posto este enquadramento, é hora de entrarmos no comércio negreiro envolvendo a Guiné. Foi na Senegâmbia que os portugueses estabeleceram as primeiras regulações regulares de comércio. Como observa o autor, no entanto, os valores não estiveram sequer próximos dos que atingiu o Golfo da Guiné, uma das regiões mais movimentadas do tráfico atlântico. Os portugueses foram atraídos pelo ouro, procuraram-no na Costa da Mina ou Costa de Ouro, entre o cabo das Palmas e o rio Volta. Seria, no entanto, da baía do Benim que saíram, no final do século XVII e primeiras décadas do século XVIII, os maiores efetivos de mão-de-obra cativa desta zona. À procura da contabilidade deste tráfico, estima-se que a África perdeu entre 1500 e 1866, só através do tráfico transatlântico, mais de 12 500 000 dos seus filhos, a imensa maioria dos quais embarcados em direção ao continente americano.

A Igreja legitimou este comércio, basta pensar nas Bulas Dum Diversas (1452) dirigida pelo Papa Nicolau V ao rei D. Afonso V e Romanus Pontifex (1455) que volta a afirmar o poder que cabe a Portugal em invadir, conquistar atacar e subjugar os sarracenos e pagãos. É da maior importância o levantamento que o historiador faz sobre a fundamentação religiosa da escravidão, ao longo de séculos.

O autor lembra-nos aquela manhã de um dia dos princípios de Agosto de 1444 em que desembarcaram em Lagos os primeiros escravos, conhecemos ao pormenor graças a Gomes Eanes de Zurara, cronista da corte de D. Afonso V. Eram escravos desembarcados, tinham sido capturados a Sul do Cabo Branco, uma frota de seis caravelas em que participaram pilotos experientes como Gil Eanes. Nesse mesmo ano, uma caravela comandada por Dinis Dias apercebeu-se que a orla quase contínua de deserto dava lugar a manchas de bosque e floresta, chegara-se à Terra dos Negros, a que se chamou Cabo Verde (não confundir com o arquipélago do mesmo nome, que é fronteiro). Iniciou-se um período de exploração litoral entre este Cabo Verde e a Serra Leoa, os navegadores seguiram o curso dos rios, nomeadamente o Senegal, o Gâmbia e o Geba. É um período de comércio livre negreiro, escolhe-se o arquipélago de Cabo Verde como o entreposto estratégico da navegação atlântica neste tráfico de escravos entre a costa africana (a Costa da Guiné) e os mercados europeus da Península Ibérica. Cedo se descobriram chefes dispostos a ceder mão-de-obra e a requerer as mercadorias necessárias: metais, ferramentas, tecidos, quinquilharia, armas de fogo e cavalos. Um cavalo chegou a ser trocado por 25 a 30 escravos, mas será um rácio que irá continuamente descer. Os mercadores iam da ilha de Santiago, frequentavam a foz do rio Senegal, desciam até aos rios Gâmbia, Casamansa, S. Domingos e Geba, também ao arquipélago dos Bijagós e ao rio Grande de Buba.

A seguir, no plano dos Descobrimentos, entrou-se no Golfo da Guiné, será nesta região que o tráfico de escravos irá ganhar uma enorme projeção, basta pensar em Angola.

No próximo texto, voltaremos à Guiné para falar de um comerciante, Manuel Batista Peres, um cristão-novo que procurou na América Espanhol fortuna e tolerância, e igualmente se fará referência aos sócios do Marquês de Pombal graças à Companhia do Grão-Pará e Maranhão. 

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12264: Notas de leitura (532): "Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau", por Fernando Antunes (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Ver aqui, no sítio "Cacheu, caminho de escravos", uma já vasta documentação (vídeos, cd, sites, publicações...) sobre esta temática histórica.


http://cacheu.adbissau.org/?page_id=40

Anónimo disse...

Em 98 ao visitar a ilha de Goré em frente Dakar, o cicerone desancava nos brancos, nomeadamente nos portugueses,a meu lado uma senhora negra americana (detesto o termo afro-americano) chorava compulsivamente.

Tive que o interromper e dizer que não foram só os brancos os culpados do tráfico de escravos,mas também os pretos e se calhar antepassados dele.."embatucou" meio aparvalhado e pediu desculpa meia esfarrapada..

Esclareci a senhora sobre a verdade do tráfico de escravos..julgo que ficou esclarecida.

Na verdade o sitio é deprimente e fica-se deprimido só de pensar no sofrimento dos escravos..

O ano passado visitei Dachau..tive o mesmo sentimento.

C.Martins