segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

1. Mensagem do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65), com data de 3 de Janeiro de 2013:

Meu querido Amigo Carlos Vinhal:
Conforme prometido, aqui lhe envio algum material para o Blogue do Luís Graça e do amigo.
Agora que ando a escrever as minhas memórias e as guerra fazem parte da minha história, da história de toda uma geração, fui encontrar material que, saindo no Jornal da Bairrada, não sei por que raio não saiu no TARRAFO.
Entre as memórias de guerra, além de outras, penso que estas poderão ter algum interesse para os amigos. Há no entanto, duas ou três que foram escritas recentemente e as integro neste naipe e outras que não, para não me tornar maçador.
Se alguma não couber dentro do v/espírito editorial, estão perfeitamente à vontade. No cesto do lixo também se guardam coisas.
Como prometi vou enviar um conto de Natal, que acho muito engraçado e carregado de sonho e poesia. 
Um abraço para o Luís Graça.
A edição fac-similada do TARRAFO esgotou.
Para o amigo um abraço de camaradagem e gratidão por tanto.
Armor Pires Mota


ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 1

DIÁRIO DE BORDO

1 - A primeira grande desilusão

No da 2 de Julho de 1963 todo o pessoal foi para casa gozar de licença (férias), dentro das normas de mobilização, com o conhecimento de que iria desempenhar a sua missão em Moçambique. No dia 14, apresentava-se pronto a embarcar com destino a Lisboa, mas sofria uma grande desilusão. O destino já não era Moçambique, mas a Guiné. “Essa alteração provocou uma certa perturbação no espírito pessoal, até porque já tinham sido feitas as declarações de pensões, as quais, à ultima hora, tiveram que ser substituídas e reduzidas para cerca de metade. No entanto, ningém deixou de comparecer ao embarque”, segundo consta da história bem sucinta do Batalhão 490. Isto é, ninguém fugia, ninguém desertava.

Das cerimónias de despedida constou uma missa campal na enorme praça, na manhã do dia 16, seguido de desfile, ouvindo-se, aqui e ali, à nossa passagem, uma ou outra voz surda contra a guerra. Nesse mesmo dia, o Batalhão deslocou-se, em formatura, para a estação de caminho de ferro da cidade, seguindo em comboio especial para Lisboa e daí para a gare de Alcântara. Antes do embarque, à torreira do sol, era uma hora da tarde, houve uma formartura de todas as unidades que iam embarcar: o Batalhão 490, os comandos e o CCS dos Batalhões de Caçadores 512 e 513, além de três companhias de artilharia. Era muita gente, cerca de 1500 homens, muita “carne para canhão”, ouvia-se.

Tudo em ordem, mas houve uma falha, lamentada pelo comandante de Batalhão, Fernando Cavaleiro. Era costume a Unidade Mobilizadora, neste caso o RC3, oferecer um guião, mas nada disso acontecera. Ou levou sumiço.

Embarcámos na Estação Marítima de Alcântara, no dia 17 de Agosto de 1963, entre lenços brancos, desfraldados pelos que subiam o portaló ou se estendiam já pela coberta e os familiares e amigos, que, tão nervosos como nós, entre soluços abafados e algumas lágrimas fundas, como as águas do rio Tejo e sentidas como um espinho, formigavam ao longo do cais no mais doloroso adeus a alguém que desse modo partia. Eu não tive ninguém a acenar-me. Tinha toda uma mole enorme, onde sobressaía o preto, a cor do luto em nossa terras. O destino não era para o melhor dos mundos, era para uma terra desconhecida, de mais a mais, onde as armas vomitavam fogo e os corpos jorravam sangue. Momentos antes do grito estridente do barco, onde se juntaram todos os nossos gritos macerados de silêncio, subiu a bordo o Ministro do Exército a fim de fazer uma alocução sobre a missão que nos coubera longe do chão natal. Não é garantido que todos o tenham ouvido, tomados pelos pensamentos mais desecontrados. Palavras que rolaram na espuma das ondas.

No domingo a seguir, era a festa em honra de Santa Margarida, padroeira da minha terra Ainda mal havíamos digerido a tremenda desilusão, não só por causa da farda branca, mas por mudarmos, à última hora, de destino. Na verdade, a Guiné era mais perigosa e a guerrilha andava a fazer fogo e sangue.

Comigo não levei muita coisa, além das roupas civis e fardas, talvez medos, muitos medos. Mentia se dissesse que ia de peito feito perante tantos perigos. Também uma flor de esperança e nela deitados os olhos da Lili que me oferecera um terço em prata dentro de uma concha, que guardo, religiosamente ainda hoje, no pechiché do nosso quarto. Se rezei por ele, não foram muitas as vezes. Adquiri outro de madeira, mais resistente e menos valioso, para trazer comigo nos bolsos da farda. Era a fé no meu Deus, a esperança em todos os meus santos e anjos do céu. Há muito que se acha escurecido do azebre. Ainda um dia destes, o hei-de mandar limpar. Na carteira, além de algumas notas, mais no seu interior, levava uma pagela, dobrada em duas partes, contendo uma oração. Foi oferta de um casal de vendedores do norte, de bordados, que ia pernoitar a Sangalhos, na Pensão de Ernesto Alves Pinto. Sabendo do meu destino, a mulher aconselhou-me a que lesse ou rezasse, que dava sorte. Pois claro que li, não todos os dias, mas alguns. Se dava sorte, era o que eu queria para mim, para os meus soldados e para todos. E sorte tivemos na última noite dormida sobre o bramir do mar largo.

Embarque de militares na Estação Marítima de Alcântara
Foto: © Américo Estorninho (2010). Direitos reservados

Como passámos o tempo a bordo? Foi um tempo penoso, sobretudo para os soldados que ocupavam os porões. Era um espaço bafiento e quentíssimo Os oficiais, mais à superfície, dormiam ou pasmavam-se nos beliches. O melhor tempo era o que se passava na coberta. Umas vezes, em instrução de armamento. Imagine-se, como íamos tão mal apetrechados. Só ali conhecemos a espingarda com que iríamos combater o IN, a eterna G3, automática. Arma que ninguém tinha visto no quartel. Não existia um único exemplar. Íamos agora conhecê-la nas suas partes e no seu funcionamento. Também pouco conhecíamos do terreno e das gentes que íamos encontrar e, em muitas situações, combater. Assim, recebemos também conhecimentos gerais sobre a pouco pacífica Guiné, guerras antigas, clima, raças, usos e costumes. Na parte recreativa, para animar um pouco o pessoal, este teve ensejo de ver vários filmes. Era um modo de atenuar o nojo que originava vómitos.Também ensaiávamos o Hino do Batalhão, música e letra do 2º comandante, major Alexandre António Bahia Rodrigues dos Santos, que regressava à Metrópole em 23 de Janeiro de 1964. Tratava-se de uma marcha militar e intitulava-se “Sempre em Frente”, que ainda é lembrado e cantado nos encontros anuais. Não sei se consegui nesta viagem ler algum livro aos peixes.

(Continua)

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2. Comentário do editor

Por que iniciamos hoje a publicação da série "Últimas Memórias da Guiné", de autoria do distinto repórter de guerra e nosso tertuliano Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490), memórias estas que como o próprio afirma, tendo sido publicadas, em devido tempo, no Jornal da Bairrada, não foram incluídas no seu livro "Tarrafo" [foto da capa à direita], cabe aqui um agradecimento ao autor pela deferência com que trata o nosso Blogue ao enviar-nos este material para publicação, que inclusive contém memórias escritas recentemente, logo inéditas.

Por que felizmente o texto é extenso, será dividido e publicado em vários postes que se desenvolverão temporalmente entre 2 de Julho de 1963, o de hoje com o título: A primeira grande desilusão, até 14 de Agosto de 1965, coincidente com a retirada da 488 de Jumbembem.

CV
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2 comentários:

Luís Graça disse...

Parabéns ao nosso camarada Armor Pires Mota, pelo sucesso editorial do seu livro facsimilado "Tarrafo", que eu ainda não consegui encontrar nas livrarias de Lisboa... Provavelmente, vai sair 2ª edição, espero bem. É uma obra de referência sempre que se fala da literatura da guerra colonial.

Por outro quero agradecer ao Armor Pires Mota (que obra-prima de nome que não dá separar, Armor Pires, Pires Mota, Armor Mota!...), a sua generosidade, propondo-se publicar estes textos no seu Jornal da Bairrada... Há muito menos escritos sobre essa época, em que ele partiu para a Guiné. Eu tenhlo particular curiosidade e interesse sobre os primeiros anos da guerra que, quanto a mim, começou, de maneira larvar, subterrãnea, insidiosa mas não menos violenta, ainda antes do 23 de janeiro de 1963...

Enfim, e não menos importante: o Carlos trata, e bem, o Armor Pires Mota como "distinto repórter de guerra e nosso tertuliano"... Pois, bem, Carlos, está na hora de reparar uma tremenda injustiça, ainda não conseguimos pôr o Armor Pires Mota sob o poilão da nossa Tabanca Grande. Ele tem, de há muito, um lugar reservado para ele. E não é por deferência, é por mérito. Bolas, este nosso camarada de armas tem mais de meia centena de referências no nosso blogue!...

Um alfa bravo para os dois, autor e editor.

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Armor%20Pires%20Mota

Luís Graça disse...

Carlos: é muito simples, o Armor Pires já não precisa de apresentação. É uma questão de, uma vezes dado o seu consentimento (mais do que informado!), pôr o seu nome que é curto, e que é único, Armor Pires Mota, no grupo iniciado pelas letras Ar, entre o Armindo Batata e o Arnaldo Santos, da lista alfabética, de A a Z, dos membros da nossa Tabanca Grande...

Um abração. Luis