sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12398: O que é que a malta lia, nas horas vagas (8): As minhas leituras em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Dezembro de 2013, a propósito do que a malta lia nas horas vagas:

As minhas leituras na Guiné

Lembro-me muito bem do meu primeiro livro, que recebi com muito pouca idade idade, ainda não sabia ler. Intitulava-se "O Gato das Botas Altas", tinha braços e pernas que se destacavam do corpo do livro, que era muito bem ilustrado, e abordava qualquer coisa sobre cavalaria, mosqueteiros, afecto, honra e bravura.

Acompanhou-me durante muitos anos, porque era esteticamente muito bonito, e despertava em mim sentimentos de virtude.

Lembro-me de ter lido, ainda muito novinho, uns poemas do Afonso Lopes Vieira, com dedicatória na primeira página à minha mãe. Teve um qualquer descaminho que não identifico, mas deixa-me triste. Também me lembro de outro título da minha mãe, "O Cão dos Baskerviles" que me transportava para os mistérios dos campos de "cottages" e palacetes da "Old Albion". Pelos meus 14 anos passei por uma crise de intelectualidade, e com dois amigos (Almeida e Sousa e Solano de Almeida) tentámos escrever teatro, mas as performances eram tão más, que não concluímos nada. Por essa época, ainda tentei a literatura de cordel, talvez inspirado na colecção FBI, e foi outro desastre. Até à mobilização não voltei a experimentar a verve com pretensões de escrita.

Depois, com o despertar da atenção para o belo sexo, passei a sonhar ser estrela de futebol, e com os rios de dinheiro e a fama consequentes, a impressionar as garotas mais lindas. Quase não lia, nem estudava, nem cabulava, mais a mais convencido do risco cada vez mais próximo de levar um balázio que me mandasse p'rós anjinhos, levava uma justificada vida existencialista, com salpicos de "make love not war", pelo que registei um notório abrandamento nas leituras, quaisquer que fossem. E os chumbos passaram a adornar o c.v., até que o namoro com uma menina leitora de poemas e romances, fez com que encetasse nova incursão pelas letras para não ficar pior na fotografia.

Até que chegou a tropa, e a necessidade de viver intensamente, não fosse o diabo tecê-las. Ora, a intensidade de viver assentava no máximo aproveitamento das paródias que, a recruta primeiro, a especialidade e o curso de "mines and bloody tracks" depois, ainda nos permitia alguns devaneios e desafios físicos. Portanto, esse período correspondeu a novo interregno intelectual, coisa sem importância, tendo em conta que a proposta se refere ao tempo passado na Guiné.

Muitas bebedeiras e outros excessos, mais cinco dias de brandas correntes marítimas foram necessários para, a partir do Funchal, chegarmos a Bissau. E que grande era a cidade! Dos Adidos para a cidade e para os bares, com excepção de um dia de guarda a um posto de rádio, que não aproveitei no sentido do tema proposto, foi outra a dedicação, até que uns vinte dias depois fomos entregues em Piche aos cuidados do destino. O Zé Tito, companheiro da juventude, que fez o grande favor de me acompanhar ininterruptamente desde o assentamento de praça, descobriu um excelente quarto com duas camas vagas, comummente conhecido pela suite 3. Olá Águas! Olá Tubaco da Selva! Olá Costa! O Tubaco levou-me atrás de uns armários, abriu uma mala cheia de livros, que disponibilizou, mas alertou-me para o generalizado gosto pelas fotonovelas, e que tudo ficava ao dispor.

Se em Roma devemos ser romanos, eu, que levava uma vida operacional intensa, não tinha sobras de tempo para a valorização espiritual e intelectual, pois, que me lembre, durante os primeiros seis meses, e em Piche, não houve noite que me deitasse na cama, sem evitar o estado ébrio. Comia-se mal, mas, a respeito de bebidas... ficamos conversados. Ainda assim, li algumas coisas, de Remarque a Eça, de Amado a Gorki.

Lia, naturalmente, as cartas quase diárias da namorada, e outras mais espaçadas da família e amigos. Não era literatura, mas constituía consumo ávido. Entretanto, logo que me foi atribuído o número de SPM, assinei o jornal cor-de-rosa, onde esgrimavam os mais ferozes anti-situacionistas e revolucionários da época, de que destaco Sottomayor Cardia (já não arde) e António Barreto, que espingardavam contra quaisquer indícios de poder, ambos bem assimilados com os primeiros alvores vulgarmente confundidos com a democracia. Confundidos? Obviamente!

A Democracia exige atitude permanente, participação popular sobre as decisões que lhe diga respeito (à massa popular), e nesse estádio anémolas como Sócrates, Coelho e Portas não poderiam, sequer, imaginar o que andam por aí a fazer. Mas isso não se tem conseguido ler com a objectividade necessária.

Em Bajocunda, a tropa passou a viver outro intimismo, e já eram mais frequentes os períodos de leitura.

Pela minha parte li com especial proveito o "Porque Não Sou Cristão", de B. Russel, que foi determinante para consolidar a minha "fé" ateísta.
Também li Brecht, Barthes, Régio, Torga, E. Veríssimo, Buck, e o indispensável Larteguy, entre outros.

Havia, portanto, diferentes apetites de leitura, que podiam ser, tanto de índole formativa, como lúdica, com mais ou menos interesse literário.

E havia, por vezes, algum debate sobre obras que nos sensibilizavam. Lembro-me de uma noite no meu quarto, onde o Jorge, todo nu, lá de cima dos seus quase dois  metros, declamava Brecht perante a atenção dedicada e surpreendida dos restantes furriéis, encontravam naqueles versos uma espécie de aliança pela paz.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12395: O que é que a malta lia, nas horas vagas (7): A prestigiada revista "Vida Mundial" (Manuel Mata, ex-1º cabo, Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/71)

2 comentários:

Anónimo disse...

Camarada,
Estive de Novembro/69 a Setembro/71 no Gabu. Fui uma vez a Piche e algumas vezes a Pirada. Cruzei-me algumas vezes com pessoal de Bajocunda. Mas o que agora me fez entrar aqui, foi a capa do livro "Porque não sou cristão" que tambem li na Guiné,e o facto,diga-se de passagem, algo perigoso na época, de também receber o jornal cor-de-rosa "Comercio do Funchal", de que fui assinante de 1966 até ao seu encerramento, depois do 25 de Abril.
Um abraço.

Anónimo disse...

Caro Zé Manel Dinis,

Para quem não ligou ponta de corno à leitura e aos grandes mestres das antologias literárias durante tantos anos devo dizer-te que fizeste uma recuperação notável ao longo do tempo.
Embora eu não seja um crítico literário, nem sequer um (Beja Santos) acho a tua escrita bastante fluente e agradável de ler.

Um grande abraço do camarada e amigo,

Adriano Moreira