sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 9 

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

Aerogramas para a Lili (2)


Foto: Belarmino Sardinha - Editado por CV


“Jumbembem, 6 de Janeiro de 1965
Querida Lili:
(…)
Há notícias que varam uma pessoa e a deixam bloqueada. Esta que soube ontem à tardinha é uma delas. Ontem tropas do nosso Batalhão foram fazer uma operação, uns por terra, outros de barco. No barco pequeno que ia atrelado a outro maior, que o rebocava, a grande velocidade, seguiam 22 homens. Perto do sítio, marcado para desembarque, o barco começou a desequilibrar-se e virou-se. Resultado: oito mortos. Não sabiam nadar, o rio era fundo e, além disso, com o material de guerra que levavam… Tudo isto dói. Num momento, tantas famílias de luto. A guerra é horrível, Lili, terrível, só o diabo a poderia inventar. Mas por quê e para quê os homens se odeiam? Só para fazeres uma pequena ideia do que é a guerra, repara só nestes dados. O meu batalhão (600 homens) já tem 16 mortos e muito perto de 150 feridos, alguns deles irrecuperáveis. E era o mundo tão belo se todos se dessem bem e vivessem em paz. Olha, minha Lili, reza por mim. Só com a ajuda de Deus podemos vencer e só por Deus podemos regressar à terra.
Olha, hoje baptizou-se um soldado negro do meu pelotão. Gostaria de ser o seu padrinho, mas como o capitão também gostava, dei-lhe a preferência. É um moço esperto, inteligente, que quer ir para paraquedista. Eu já lhe disse que, se fosse para Tancos (Santa Margarida), gostaria que ele fosse a minha casa”.

[Os oito mortos integravam o Pelotão de Morteiros 980 do Batalhão, constituído por 33 homens, comandado pelo alferes de infantaria José Pedro Cruz. Iam participar na operação “Panóplia”, dia 5 de Janeiro de 1965, que se realizava na península de Sambuiá, entre o rio do mesmo nome e o rio Talicó. Os soldados embarcaram em dois barcos de borracha da Marinha, carregados com todo o material bélico. Um transportava 25 soldados, mais o comandante, rebocado pela LFG Orion, tal como acontecia com o outro, por um cabo de aço que ia ligar pela parte debaixo aos barcos, amarrado a um ferro existente no fundo do barcos. O desembarque estava previsto que fosse feito próximo do objectivo e junto do rio Cacheu. Só que aconteceu o imprevisto, o cabo partiu-se. A solução encontrada foi que os soldados suportassem nas mãos um cabo mais forte. Só que a ondulação, provocada pela Orion, fazia entrar água pela proa. Os homens tinham sido avisados de que, em caso de emergência, o cabo deveria ser solto de imediao. Foram ainda avisados que o barco de borracha tinha a tendência para baixar a proa, havendo a conveniência em se chegarem mais à ré. Só que, recomeçada a marcha, a ondulação, provocada pela Orion fazia entrar água pela proa. Foi nesse momento que alguns homens que iam na ré, assustados, se haviam de levantar. O alferes ainda os mandou sentar, mas o barco já se achava desequilbrado de um dos lados, acabando por afundar-se. Como alguns não sabiam nadar, rapidamente o pânico se instalou. Foi enorme. O alferes nadou para junto do barco e colocou-o direito, içando-se de seguida. Então, já auxiliado por um soldado, ajudaram outros camaradas a subir para dentro, mas nem todos vieram à tona da água, um única vez. Talvez o peso do material bélico tenha concorrido para tal desfecho. Entre estes oito mortos, dois sabiam nadar, mas também não foram felizes. Repescados todos os que foi o possível salvar desta enorme tragédia (dois dos que se salvaram não tinham largado o cabo), foram levados para a Orion e começaram as buscas em todos os sentidos, mas o que se recolheu então foi apenas algum material que ficara a boiar.
Vítimas desta tragédia, que vitimou tantos quantos os soldados a batalha do Como, eram dois primeiros cabos e os restantes 6 eram soldados. Foi uma madrugada negra na vida do Batalhão].


“Jumbembem, 11 de Janeiro de 1965
Querida Lili:
(….)
Tivemos um fim de ano muito triste, más saídas. Nessa maldita estrada [Canjambari] que dá tantas dores de cabeça à malta, houve mais porrada. É certo quando lá vamos. Houve vários feridos e um Fula, o guia, morreu no helicóptero a caminho do hospital. A mulher que vive aqui connosco, caiu em lágrimas, quando viu o marido na maca. Tive pena sobretudo do filho que chora que nem um louco. São os horrores de uma guerra que não perdoa a ninguém. O homem andava com azar, havia sido ferido aqui há tempos. Azarento e triste fim de ano. Os chefes até parece que têm gosto em fazer estas coisas nestes dias…”

Jumbembem, Janeiro de 1965 - Meninas limpando, aos sábados, a "parada" da CCAV 488
Foto: © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados

“Jumbembem, 30 de Janeiro de 1965
Querida Lili:
(…)
Depois de acordar e ler o que me dizias, não mais adormeci. Estava nervoso, não devido às tuas palavras, mas porque, às 3 horas, tinha que sair para uma operação. Por Deus, correu muito bem, apesar do tiroteio de parte a parte. Queimámos uma aldeia muito grande, montes de arroz e milho e mataram-se os gados todos. Quando estava quase tudo pronto, “os tiços” deram-nos combate violento, instalados na orla do mato. Não sei nem como nem porquê, a malta irritou-se com aquilo e alguns começaram a gritar: “vamos a eles!” Pois, não queiras saber. Levaram uma surra e foram obrigados a fugir, à medida que os perseguíamos, ficando alguns no terreno. Enfim, foi um pé de lume e uma coragem de nos atirarmos a eles, o que poderia ter dado mau resultado, pois foi quase por inconsciência, que nunca vi. Claro, ao fim e ao cabo, ficámos todos partidos, pois fazer 16 kms a pé já não é para nós que estamos fartos disto. Tivemos um ferido que seguiu dali mesmo para o hospital num helicóptero que foi buscá-lo”.


“Jumbembem, 11 de Março de 1965
Querida Lili:
(….)
Estive a arranjar a trouxa para ir até Bissau. Arrumei tudo o que tinha para arrumar e pus abaixo as velhas barbas (até fiquei uma rapazinho!).
Até que enfim, Lili, vou até Bissau. Custou, mas agora parece que é mesmo verdade, se, à última hora, não houver nenhum contratempo. Deus queira que não. Vou amanhã para Farim de onde irei, no sábado, de avião para a capital. Mas, para despedida, ainda esta manhã, tive mais uma operação. Por sinal. correu muito bem. Aconteceu uma coisa que que há muito já não acontecia, não houve tiros. Eles que “brinquem” com os macacos, mas connosco não, estamos fartos. Isto está cada vez pior por toda a província, à beira do precipício.
Agora, começou o azar a bater à porta dos alferes. Há dias, com o intervalo apenas de um dia, morreram dois no sul, um dos quais já tinha 22 meses de missão cumprida. Como vês, as balas não escolhem postos nem tempo de comissão”.

[Em 21 de Novembro já estava eu a contar ir a Bissau tratar da saúde e aliviar as tensões no início de 1965. Para ir à consulta era necessário o médico fazer uma proposta, que teria de ir ao hospital, a fim de ser assinada, autorizada e marcada a data. Mas a assinatura levava por vezes três meses. A minha estava a atingir esse tempo. Era compreensível. O hospital era tão pequeno e tão poucos os médicos que os doentes não eram atendidos, quando deveriam ser, excepto, claro, se estivessem em perigo de vida. Primeiro, estavam os feridos graves e os mais ligeiros, que chegavam de toda a parte. Outra razão que não me havia permitido ir em Novembro, é que o capitão Arrabaça regressava de novo ao hospital e, além disso, andava lá em tratamento outro alferes, dizia eu noutro aerograma de 21 de Novembro de 1964. O remédio era esperar e, como por Deus, não estava assim tão abalado na saúde e não podia inventar doença grave para demorar por lá mais tempo…
Como o capitão Arrabaça havia sido hospitalizado, nos meados de Outubro, tinha mais trabalho: tinha que sair quando calhava o meu pelotão ter de ir para o mato, para a porrada, e tinha que sair, quando saíam os outros dois, como comandante de companhia interino. A porta da guerra ainda estava longe de ser fechada e ainda não tínhamos destruído aos terroristas os planos da pólvora…]

[Noutro aerograma, datado de 13 de Março de 1965, escrevia à Lili a dizer que “a primeira bicharada” já havia desaparecido com o tratamento, mas havia feito mais uma análise e acusava outra espécie menos perigosa e em menor quantidade. Deveria desaparecer. Mesmo assim, não eram tão resistentes, obedeciam à medicação. Dava ainda a notícia do que o nosso conterrâneo Manuel Quintas havia sido operado a um quisto sem importância, enquanto o Victor Santos, ferido numa perna, já tinha tido alta. Disse-me que ia fazer ronha, que não podia andar muito bem. Já tinha uma recordação. Também aguardava pelo conterrâneo, João Barreiras, que enconrei da guerra do Como e me havia dito que vinha passar um mês a Bissau.]


“Hospital Militar, 7 de Abril de 1965
Querida Lili:
(…)
Sabes, já comprei o meu “folar” para os soldados do meu pelotão: vinho do Porto, bolos, amêndoas, que já mandei para o mato. Assim, sempre se lembrarão que, no dia 18, é Dia de Páscoa. Além disso, na minha ausência, tem-se portado à altura, apanhando em combate mais material aos terroristas. Coitados, estão sempre à espera que eu vá… Confesso que tenho saudades dos moços (não da porrada, claro), mas também para ser franco, prefiro estar longe, em Bissau. Aquilo lá está muito mau, péssimo. O médico escreveu-me hoje. Estão muito desanimados. Não sei se já te disse, mas dos três moços feridos, um [negro] foi sepultado na quarta-feira e há outro que está mesmo muito mal".

[Nesta altura, o meu grupo de combate que era de 40 homens, desses apenas vinte estavam válidos, operacionais. Quem comandava o pelotão era um furriel, o único que então tinha dos quatro que inicialemte me pertenciam. Apesar disso e de não ter havido feridos, as operações continuavam].


“Bula, 22 de Julho de 1965
Querida Lili:
(…)
Como já deves ter reparado – e já deves saber pelo Quintas [Manuel Pires de Oliveira] – encontro-me, de novo, no mato. Isto “até ao lavar dos cestos é vindima”, diz-se na nossa terra. Isto é guerra e está tudo dito. Estou certo de que só estou seguro, quando puser o pé em casa. Também é verdade que não me pertencia estar aqui, pois sou o mais antigo alferes ao serviço da companhia. Mas já te digo os motivos. Não vim para lamber as botas a alguém, detesto ser ”engraxador”; não vim porque goste da guerra, detesto a guerra e os seus efeitos, mas vim por estas razões: 1) tinham que vir soldados do meu pelotão e sempre gostei de os acompanhar; 2) porque, devido ao que te contei, não suporto homens com duas caras; 3) porque o lugar onde estamos é razoável. O quartel fica numa vila, Bula. Há tanta diferença entre este e o de Jumbembem…
Isto aqui é quase uma “cidade”. Até se pode sair do arame farpado e dar um passeio, coisa que nunca me aconteceu. O trabalho é que é um pouco chato, porque, noite sim, noite não, temos de guardar um cais. Dormir, não se dorme. Depois, há a praga infernal dos mosquitos e, para refrescar, a chuva. É uma noite perdida. Também dia sim, dia não, lá passamos um dia inteiro a ver chegar e partir embarcações. Só custa menos, porque ora pescamos, ora caçamos ou dormimos… Também veio comigo, voluntário, um colega, o alferes Bretão. Por isso, querida, não te preocupes. A zona onde trabalho, é calmíssima, comparada com as zonas onde tenho estado. Imagina tu que até tem ruas iluminadas…”

____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)

Sem comentários: