sábado, 14 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12448: História da CCAÇ 2679 (65): Dia da Raça em Bissau (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 12 de Dezembro de 2013:

Viva, Carlos!

Hoje vou referir-me à minha presença nos festejos militares de um dia de Camões, que se realizaram em Bissau.

Exactamente! Quando o IN mandou uns misseis para a zona da Sacor, felizmente sem terem causado danos, mas dando mostras da nossa vulnerabilidade. Por esta e por outras, muitas vezes convenço-me de que a estratégia do IN não nos queria dizimar, e fazia a guerra quase "doucement".
Mas é só para vos contar os meus episódios, irritantes, de inicio, com laracha e fortuitos acasos, depois, pelo que deixo para outros, ou para outras ocasiões a especulação que possamos fazer sobre uma "guerra amiga", ou "de baixa intensidade".

Lá vai com um abraço para o tabancal e votos de Boas-Festas natalícias
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

65 - DIA DA RAÇA

Num daqueles primeiros dias daquele longínquo mês de Junho de 1971 o capitão mandou chamar-me ao gabinete. Depois do habituais preparos numa daquelas circunstâncias, que exigia que vestisse os calções que me conferiam alguma dignidade de combatente pela Pátria, dirigi-me ao edifício do comando.

Entrei, e logo ele passou à explicação do chamamento: eu teria que partir para Bissau, a fim de participar nas cerimónias do 10 de Junho. Quase rejubilei. Afinal, a tropa ia conferir-me uma inopinada distinção militar pelos meus desempenhos ao longo da já extensa comissão. Sorri de satisfeito, e perguntei ao capitão se sabia com que medalha ia ser agraciado.

O tipo atirou, que com uma medalha de cortiça, e passou com a mão por baixo do queixo a segurar um sorriso sacana. Depois passou a uma explicação sintética, mas mais circunstanciada, referindo que eu ia a Bissau em representação da companhia.

Rebati logo, então e o pelotão? Quem sairia para o mato com o pessoal? Se para mim era tudo tão difícil por causa do reduzido quadro - eu e o furriel Feliciano Lopes, que viera da 26.ª para o grupo em finais de Março, havia só dois meses, não se encontrava outro pelotão com mais disponibilidade de quadros com vocação representativa?

Pois escusava eu de levantar problemas, já que tinha sido eu o escolhido. Além disso, numa primeira auscultação, ninguém quis tal incumbência, e eu, por ser o mais novo, teria que ir. Alto aí, o mais novo é o Feliciano. Estava bem, mas ele acabara de chegar, e não estava bem integrado no "espírito" da companhia. O diálogo andava neste diapasão, e eu não me safava de uma viagem não desejada. Logo então para representar a companhia. Do que é que isso implicaria? A que é que ficaria obrigado? Grande porra!

Mas ainda estava disposto a lutar pela minha dama, e argumentei que não tinha dinheiro, e ir a Bissau em estado "teso", era uma coisa que nem ao IN se desejava. Mas o capitão mostrou-se generoso, e prontificou-se a emprestar-me a massa. Ainda assim, não haveria um alferes disposto a lá ir? Sempre daria outra dignidade à representação.

Não, nenhum deles podia ou queria desempenhar aquela missão. E os nossos sargentos faziam muita falta na área administrativa para assegurarem que o gamanço não sofreria percalços. Era eu, e pronto!

Um dia qualquer preparei uma trouxa e preparei-me para a coluna que me levaria a Nova Lamego, onde um avião especial aguardava pela malta do leste. Grande festa, imaginei. À última da hora veio um sargento entregar-me uma maleta de madeira com o estandarte da CCaç, e eu já me sentia sacrificado à Martim Moniz.

Em Nova Lamego deixaram-me na pista, onde conheci um feliz contemplado, outro furriel, talvez de Cabuca, Canjadude, ou outro qualquer dos "lodges" que faziam a inveja do AB. Pelo caminho fui dizendo da minha revolta pela deslocação obrigatória, principalmente, porque estava teso e teria que ir para os Adidos, ou coisa parecida. Mas ele retorquiu que conhecia uma pequena pensão perto do Pintosinho, barata, onde poderíamos "acampar".

Dito e feito, para lá nos dirigimos com as maletas. Sem conhecimento do calendário das cerimónias e dos preparativos, no dia seguinte acordámos para o tarde. Comemos, e iniciámos o reconhecimento da cidade, que já assistia aos preparativos. Não falámos com quem quer que fosse, e ao fim da tarde demos conta que na Praça do Império já havia um estrado montado para suas excelências baterem pala à tropa desfilante, e para os discursos da praxe.

No dia seguinte, já não me lembro em que circunstâncias, fomos num automóvel Mercedes, dos velhos, com motorista às ordens, dar uma volta pelos arredores turísticos de Bissau, e desaguámos talvez em Nhacra, num "restaurant trés typique" onde comemos, e bebemos um monte de cervejas. No regresso, com o grupo visivelmente satisfeito, à cautela, saímos do Mercedes numa discreta rua paralela à avenida.

A curiosidade, porém, levou-nos a subi-la até à Praça e, enquanto nos deslocávamos, verificámos os postes engalanados e com altifalantes que, certamente, levariam os sábios discursos ao conhecimento do magote ansioso pelo desfile glorificador. À nossa chegada à Praça demos com muitos militares que ensaiavam a festa, e evidenciavam a preocupação de que nada falhasse. À nossa frente, um sargento do Exército português pegava num balde com cal, onde molhava uma trincha, que usava para fazer linhas equidistantes de marcações no alcatrão para que o pessoal perfilasse nelas. E que bem o fazia!

Ao mesmo tempo, na zona do palco concluíam-se as instalações eléctricas e experimentava-se o sistema sonoro. Entretanto, dois ou três oficiais com espessura de galões amarelos, entre eles o célebre Onze, comandante da Região de Bissau, ou lá o que era, perto de um microfone aberto, deitando um olhar à confusão circundante, abriu os braços e exclamou para os acompanhantes: "isto está uma merda", expressão que se repercutiu pela avenida até à baixa de Bissau. O IN, solidário na incompetência, não aproveitou a fonte.

No dia seguinte, para não darmos barraca, não nos apresentámos com os estandartes para a grandiosa festa da raça. No final fomos inquirir a um camarada que ali tinha exibido com orgulho o símbolo da sua unidade, e nos informou que ao outro dia havia avião de regresso.

Seguiram-se os trâmites do último dia, que, naturalmente, meteram comes e bebes até saciar. No regresso ao quarto fizemos conta a quanto esportulámos durante a missão, e verificámos que a massa sobrante era insuficiente para a conta da pensão.

Mas guerra é guerra, e nós andávamos lá para isso. Constatámos que não nos tínhamos identificado (afinal, naquele tempo, dois amarelejos ainda mereciam confiança), pelo que decidimos pelo óbvio, e procedemos à perigosa retirada estratégica até ao Dakota salvador.
____________

Notas do editor


Recorte de imprensa > Jornal O Século > s/ data > Notícia da agência noticiosa ANI [de 11 de Junho de 1971], sobre o primeiro ataque do PAIGC a Bissau, com foguetões de 122 mm, em 9 de Junho de 1971.

Imagem digitalizada por © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados.

Último poste da série de 28 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12096: História da CCAÇ 2679 (64): Comportamentos e decisões determinantes (José Manuel Matos Dinis)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Zé Dinis

Este teu texto faz-me um bocado de comichão, sem importância, passa com um brevíssimo coçar.
Já fizemos as pazes,-- ou melhor, fizeste tu comigo, que eu nunca me me zanguei contigo --, somos amigos e bons camaradas da Guiné, isso é que é importante.
Mas oh, Zé Dinis, faz-me confusão uma companhia do Exército português, enviar um furriel miliciano para a representar nas comemorações do Dia de Portugal em Bissau. Que, ainda por cima cima,segundo contas, foi levado a passear de Mercedes pelos arredores de Bissau, com almoço em Nhacra. Eu pergunto, não havia quatro ou cinco alferes milicianos na tua companhia?

Com a amizade e admiração de sempre, o teu camarada

António Graça de Abreu

JD disse...

Caro António,

Claro que havia quatro alferes na companhia, mas isso não devia querer dizer que fossem eles, pelo contrário, pois tenho na memória, certamente já desgastada pelo tempo, que havia muitos furriéis em nrepresentação das unidades.

Mas o mais relevante, afinal, foi a comprovada falta de controle sobre as deslocações de reverência à Nação. Devo acrescentar, que não foi por motivação anti-situacionista que me baldei à cerimónia, antes, te-se-á devido à irreverência (não irresponsabilidade) juvenil.
Um abraço
JD

JD disse...

Caro António,

Claro que havia quatro alferes na companhia, mas isso não devia querer dizer que fossem eles, pelo contrário, pois tenho na memória, certamente já desgastada pelo tempo, que havia muitos furriéis em nrepresentação das unidades.

Mas o mais relevante, afinal, foi a comprovada falta de controle sobre as deslocações de reverência à Nação. Devo acrescentar, que não foi por motivação anti-situacionista que me baldei à cerimónia, antes, te-se-á devido à irreverência (não irresponsabilidade) juvenil.
Um abraço
JD

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Neste dia, melhor dizendo, aquando dessa acção da tentativa de flagelação com mísseis, calhou-me (por um acaso da 'sorte' calhou-me sempre) estar de serviço no Centro de Escuta e portanto desencadear os procedimentos adequados à situação.

Agora, a história.
Caro Zé Dinis achas bonito esse procedimento? Então não tinhas uma missão, uma encomenda?
Passear por Bissau, está bem. Para um 'homem do mato' percebe-se que aquela 'aldeia grande' fosse altamente atractiva. Mas a missão devia ser cumprida.
Depois, bem, depois, temos a saída final em que se 'baldaram' ao pagamento, se bem compreendi. É próprio do espírito de aventura vivido então mas.... devia deixar remorsos...

Agora, deixa-me revelar uma coisa. Assim eu tivesse palpites destes para o euromilhões...
Logo que li a introdução, onde o Zé Dinis tece considerações sobre as capacidades do IN disse logo para os meus botões: deve haver comentário do AGAbreu!
E não é que houve mesmo!? Só que por causa (ou melhor, pondo em causa) ser um 'mero Furriel' a representar a Companhia, interrogando-se se não haveriam Alferes para o fazer. Mas a resposta está no texto, o Zé Dinis escreve que o Comandante da Companhia lhe disse que ele era 'o eleito', o "escolhido", e em resposta à pergunta do Zé se não haveria algum Alferes disposto a ir, temos a resposta tal como está no 7º parágrafo do texto "Não, nenhum deles podia ou queria desempenhar aquela missão. E os nossos sargentos faziam muita falta na área administrativa para assegurarem que o gamanço não sofreria percalços. Era eu, e pronto!"

Mas, o que mais quero de facto salientar é a forma cordata e amiga, pelo menos assim está escrito, como a 'coisa' foi apresentada. É verdade que há aquele aspecto da 'comichão' que passou com o brevíssimo coçar mas é de realçar o reatamento do bom relacionamento.

Abraços
Hélder S.

Tony Borie disse...

Olá Zé Dinis.
Tal como o Hélder diz, achas bonito esse procedimento?. Então não tinhas uma missão, uma encomenda?.
E o Hélder tem razão,…mas isto não te devia deixar remorsos!.
Pois olha, companheiro, eu, se tivesse a mesma oportunidade, na mesma situação e a vida me fosse facilitada, depois de beber uns copos, naquela idade, depois de me "soltarem do mato", faria exactamente a mesma coisa, talvez com um ou outro pormenor, ainda mais, "desenvergonhado"!.
Gosto da tua coragem e do teu humor, contas tudo, assim às claras, porra!.
Um abraço,
Tony Borie.