segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12458: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (10): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (1): Bandeira branca, O Vicente e Palhota sem luz

Passamos hoje a publicar o penúltimo poste da série "Últimas Memórias da Guiné", com o primeiro grupo de 3, de 6 Crónicas (ausentes) de "Tarrafo"
Diz o autor desconhecer como estas (6) histórias não saíram na edição daquele livro. Lembremos que o "Tarrafo" é composto por crónicas enviadas da Guiné para serem publicadas no Jornal da Bairrada, pelo hoje considerado o primeiro repórter da Guerra do Ultramar, Armor Pires Mota, que foi Alferes Miliciano da CCAV 488.


ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 10

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

CRÓNICAS (AUSENTES) DE TARRAFO - 1

Por qualquer motivo, não incluí na edição do TARRAFO alguns textos que foram inseridos no Jornal da Bairrada. Ora aqui os recupero, passado meio século. Tal como aconteceu com o “Diário de Bordo” que naufragou com a nau do esquecimento.

Bandeira branca [ou pontaria de maçaricos]

“Preso a uma cana esguia, no cimo tremulava um farrapo que, entre a sujidade e os buracos, tinha uma cor esbranquiçada.

A guerra fora ali perto, difícil. E o caminho era longo e escaldante e o cansaço juntava-se à sede para quase apetecer ficar por ali estendido à sombra de alguma árvore amiga. Mas a água daquela cântara, feita, um dia, pelas próprias mãos, de um barro quase escuro, fora uma fonte e uma bênção. Bebi duas ou três goladas, mas apetecia-me bebê-la toda, até sentir frescuras por todo o corpo ainda ensonado. Depois, estendi o corpo pesado à sombra de uma sebe que se estendia em volta da tabanca, feita de palmas secas entrelaçadas.

De arma ao lado nem sequer pensei que a vida, umas vezes corre atrás de nós com pedras na mão, como se fôssemos algum farrapo que alguém deitou fora e nos escorraça da sua porta sem dó nem piedade, mas também, outras vezes, nos coloca rosas na mão esquerda. Acho que era o caso.

Um velho que andava aí pelas 50 chuvas, a tremer de medo, nos matou a sede. Ali, ele e mais ninguém. E os filhos por que caminhos escuros andariam, onde nos esperariam eles àquela hora de incêndio no nossos ombros?

Quando o Américo, escarrando poeira, meteu a cântara à boca, do lado ouviram-se comentários e troças:
– Olha, a Amélia não tem vergonha… – E repetiam as palavras chocarreiras que ele, pouco tempo antes na luta, lançara ao vento, quando alguns invólucros do colega da esquerda lhe bateram no capacete:
– Ah, ladrões, que já me mataram… já fiz nas calças…

Mas o Américo calmamente tragou mais ou dois ou três goles e, entregando a cântara a outro, disse, muito senhor de si e com ares de quem os ia vencer e convencer pelo bom humor:
– Quem fez este, já não faz outro! – E sorriu-se.

O Américo é um daqueles tipos fanfarrões que têm os seus heróis, destemidos, audaciosos. Ele mesmo é um herói de trazer por casa, quer dizer pela caserna ou pela cozinha. Faz tudo. É capaz de matar manga deles e até esfolá-los, persegui-los. Mas isto só quando está longe dos apertos. Por isso, os colegas lhe chamam o Garganta. Justamente.

Partimos. O inimigo esperava-nos certamente noutro lugar, mais longe. Passados oito dias, Bigine era um monte de cinza abandonada, uma aldeia de paredes caídas.

O farrapo que posto ali pelo medo que era uma mentira naquele coio de bandidos (qual paz, qual quê?) poderia ter sido uma cilada.

Desde então, aprendi, todos aprenderam a andar no mato de pé atrás. A gente nunca sabe bem o terreno que poisa nem a água que bebe”.

Jornal da Bairrada, 3 Outubro 1964

[Esta operação visava capturar ao IN um helicóptero que, segundo informações do QG, vinha descarregando em Morés material bélico. Estiveram envolvidos o meu batalhão 490 e o de Bula (513), comandado pelo coronel Hélio Felgas. A operação deu em nada. No regresso, as companhias 487, 488 e 489, seguiam trilhos diferentes. O nervoso era algum e bastou alguém disparar um tiro para arrremessar para o bordo dos caminhos mais de 300 homens que não ficaram mais à espera de ordens. Encarniçaram-se em gorda metralha, até que alguém, o alferese Jaime Segura, apercebendo-se que o matraquear era todo das G3, pôs cobro àquele lamentável lapso, que poderia ter redundado em mortandade, mas a metralha passava felizmente mais alta ou mais baixa, mas não deu para fazer um único arranhão. Era pontaria de maçaricos].

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O Vicente

Mansabá, 10 Setembro 1963

O Vicente era Manjaco. Conheci-o naquele noite em que cheguei a Mansabá. Estendido no cimento, choramingava, de pés atados e presos a um dos prumos do telheiro da antiga escola primária, roupa manchada de nódoas, não sei de quê, e de chapéu Zorro no chão.

Para mim, era um homem igual a tantos outros. Depois, contaram-me a história, a história de tantos outros, e fui sabendo-a de cor à medida que as noites iam passando. Conheci-o nessa noite infernal para mim. Deitara-me na tenda que havia com o vento tentado deixar-nos à chuva e ao vento. Mas, constrangido, doíam-me todos aqueles gritos de dor ou de raiva e os tristes cânticos de morte que ele ia resmungando. Levantei-me. Tremia. Nessa noite assisti, constrangido ao máximo, ao julgamento, feito pelo capitão da companhia ali acantonada.

 – Bó cúnhece bandido?
 – Mim cá sibi…. Si fala, mim murre, capiton! – E citava alguns nomes.

Em cada suposta mentira ou falsidade em que fosse apanhado, um murro pesado estendia-o no chão, enquanto alguém o levantava pela roupa e o sentava de novo. Presidia uma grossa “menina” de cinco largos olhos, que caía, repetidamente, nos dedos dos pés, nos joelhos, nas unhas. E ainda uma ou outra vez uma faca o ameaçava.
– Bô cúnhece bandido, bô metido na coisa, hem?

Aquela noite gravou-se no meu espírito e não dormi. Os gritos arranhavam minha pele:
– Pelos meus filhos, capiton!

Eu, nada confortável em meus sentimentos, jurava a mim mesmo que não voltaria a assistir a tal julgamento. Tinha o acordo do médico.   Vicente tremia todo como se estivesse como paludismo e, de vez em quando, trincava os lábios grossos e olhava para o chão com olhos duros e enormes, soluçando lágrimas.
– Pelos meus filhos, capiton!

O Vicente continuou preso e dava-me um dó enorme o seu aspecto. Agora, com os pés entalados numa tábua, sempre presa no mesmo lugar, sentado no chão, envolto em moscas e cismando não sei o quê, talvez no arrependimento.

A faca é que uma noite, em que de novo eu com o médico não quisemos colaborar naquele espectáculo macabro, é que lhe ia tirando a vida, usando-a pelas suas próprias mãos para se ver livre de uma vez por todas. Estava cansado de tanto interrogatório. Num repente, sacou-a de cima da mesa e nem sequer alguém teve tempo, ou intenção, de sustê-lo. Cravou-a no abdómen que se rasgou. Mas por quê deixá-lo morrer assim às suas próprias mãos? A vida de um homem é preciosa, seja ele quem for e o médico cumpriu a sua obrigação: meteu-lhe as tripas dentro. Coseu, coseu. Tratou-o e, passados dias, estava curado e bem disposto, dizendo graças. Tornou-se o chefe de outros prisioneiros que não tiveram aquele esquisito e brutal tratamento. Fez-se simpático. Dividia a comida, o pão e a água, que lhe dávamos, por todos. No fundo, tinha um bom coração.

Solto, o Vicente trabalhou, ajudando alguns dias na cozinha, e, dias depois, foi para casa para junto das duas mulheres e das filhas.

Vi-o no outro dia de bicicleta e de boina ao lado.

Jornal da Bairrada, 14 Novembro 1964

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Palhota sem luz

“24 de Maio de 1964

Naquela noite de luar, dependurado sobre a madrugada, os meninos tiveram a terra, o dia e o sol a aquecer-lhes a nudez, um tecto de colmo, o silêncio do mundo, mas não tiveram presentes, um berço pobre que fosse, as palhas de uma manjedoura ou o bafo quente de animais. Nada. Pobres como a nudez. Irmãos de tantas crianças iguais.

O pai morrera-lhes, há meses. A mãe de dor rebolara-se na terra batida da palhota e os meninos sentiram logo a dureza do chão a magoar-lhes a vida tão tenra e frágil. Sabia que por ali perto andava tropa. Em nomadização. Veio ao nosso encontro. Quando o médico [Dr José Hipólito de Sousa Franco, natural de Lisboa] lhe disse que ia mandá-la para o hospital, ficara mal do parto, embora tivesse vindo a pé até nós, ela desenhou nos lábios carnudos um sorriso triste, quase medroso. Depois, colocou no fundo de uma bacia, que fora esmaltada, mas em tal estado que se poderia ver o céu ou o mato por ela, uns farrapos sujos e neles aconchegou, com todo o carinho, os dois rebentos, cor esbranquiçada, [como nascem todos os meninos negros], e cobriu-os com as pontas dos farrapos com um olhar cheio e feliz.

Ela partia de jeep.

Eu tive que partir também para outro lugar. Nunca mais saberei nada da sorte da mãe e destas duas crianças. Mas sei que fiquei feliz pela mãe e por elas. Eram gente como nós”.

Jornal da Bairrada, 20 Fevereiro 1965
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Nota do editor

Último posta da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

"julgamento, feito pelo capitão da companhia ali acantonada".

Em 1963 não havia nem capitães nem PIDES de Minho a Timor que soubessem uma única palavra de Manjaco.

Ainda hoje, 2013, um dirigente Guineense se fôr ao tchon Manjaco botar faladura leva um intérprete de confiança.

Penso hoje,passados muitos anos, que uma das explicações para o sucesso militar e psicológico em Angola, se deveu ao conhecimento das diversas línguas étnicas, pela população branca e mestiça.

Como era possível fazer-se um interrogatório não falando a mesma língua?

Coitados dos capitães!

Joaquim Luís Fernansdes disse...

O texto "O Vicente",tomado como um relato de um acontecimento vivenciado em 1963, é uma amostra da brutalidade e crueldade da Guerra; Uma pequena amostra do sofrimento que ela infligiu a tantos homens e mulheres, dos dois lados da contenda e, cujas ondas de choque ainda hoje nos atingem.

Interrogo-me:- Quem era este homem (Vicente), manjaco, em Mansabá, tão distante do seu "tchon"?
Quem eram e onde estavam os seus filhos, por quem clamava no pavor e sofrimento da tortura? "pelos meus filhos capiton"
E os seus filhos, alguns porventura ainda vivos hoje,souberam deste acontecimento e terão perdoado aos torturadores do seu pai?
E o "capiton" como viveu ou viverá com esta memória?
Terríveis e cruéis os frutos da guerra!

Em 1973, em Teixeira Pinto, (centro do chão manjaco) fui catequista de um grupo de jovens(rapazes e raparigas dos 12 aos 17 anos)preparando-os para o Baptismo Cristão.
No grupo havia um rapaz de nome Vicente.
Procurando conhecer as famílias de onde vinham, um dia perguntei ao Vicente pela sua. Disse-me que o seu pai não estava. Que vivia com a sua mãe e as suas "mãezinhas". Que o seu pai tinha ido para França trabalhar. A forma como o disse não me convenceu e o juízo que fiz foi de que estaria com "os homens do mato" no PAIGC.

Ao ler este texto do Armor Pires Mota,fica-me a inquietação: Será que o Vicente que conheci era um dos filhos que o Vicente lembrava na sua angustia?....

E por aqui me fico camaradas

Um abraço
JLFernandes