domingo, 5 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12547: (In)citações (59): Homenagem a Eusébio da Silva Ferreira, o "pantera negra" (Lourenço Marques, 1942 - Lisboa, 2014)


1. Excerto do poste de 5 de agosto de 2009  > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

Cherno Baldé, aliás, dr. Cherno Baldé
(...) O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?...


Ele trabalhava na caserna de um dos pelotões da companhia, uma construção em betão armado enterrada alguns metros debaixo do solo e onde se alojavam mais de 20 homens e que estava situada nos confins do aquartelamento. Nós, que éramos crianças e naturais da terra, na altura, não sentíamos o efeito do calor, mas muitos anos depois, quando me recoradava daqueles homens brancos metidos naquele buraco, mal conseguia imaginar o tamanho do sacrifício a que estavam sujeitos.

Equipa de futebol de cinco, Fajonquito,  já depois da
independência. Foto de Cherno Baldé.
Ele ficou a ser o Júlio e eu o Chico, nomes emprestados a dois técnicos africanos que tinham vindo a Fajonquito para efectuar a reparação de alguma avaria da rádio de transmissões do quartel. Desse dia para a frente passámos a constituir um duo infernal no futebol juvenil.

Para além da irreverência e alma de desportistas natos, unia-nos o gosto da aventura e a frequência do quartel o nosso palco de actuação predilecto. Ao contrário dos outros rapazes da mesma idade, tínhamos a particularidade de andar sempre de calções em saia, sem ligações entre as pernas, a violencia da prática de futebol e a vagabundagem constante não permitiam tanto aprumo e tambem éramos daqueles que raramente voltavam a casa para o habitual banho da tarde e a troca de roupas, a água lamacenta da bolanha para nós ja era suficiente mesmo se pareciamos mais com porcos de mato com a lama branca da bolanha a cobrir a maior parte do corpo e os olhos cor de tijolo.

Na altura toda a gente queria ser o Pelé ou o Eusébio, sobretudo este último que estava muito em voga. Mas nem tudo era assim tão simples, os mais fortes é que escolhiam primeiro, se o Sambaro era Eusébio, então tínhamos que contentar com outros nomes menos sonantes, o baixinho Simões, por exemplo, quem conhecia o Simões?

Para nós tudo o que era afro era melhor, isto enchia-nos de orgulho contrabalançando assim um pouco a superioridade evidente dos brancos que, mesmo sendo nossos amigos não deixavam de ser diferentes de nós, na verdade, esta fronteira racial nunca deixou de existir e de se manifestar no comportamento dos actores em cena, verificando-se uma espécie de invasão ou interpenetração de comportamentos estranhos, a cultura e educação tradicional de parte a parte e em especial dentro das nossas moranças que a insolência e incontinência dos soldados no baixo do escalão da hierarquia militar, e não só, agudizavam cada dia mais.

Equipa de futebol da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).
Foto de Arlindo Roda
Será que podia ser doutra forma?... Não se esqueçam, estamos no princípio dos anos 70
e já existe no ar uma certa africanizaçao dos espíritos e começa a apontar uma certa confrontação atiçada pelos desafios de futebol entre africanos (que ou são tropas auxiliares em preparação ou serviçais no quartel) contra soldados portugueses, que sempre terminavam em brigas, sem consequencias graves, de resto.

Nós ja tínhamos os nossos atletas preferidos entre os africanos, claro, mesmo se a vantagem era quase sempre do lado dos brancos mais fortes e exímios em jogadas rápidas e golpes traiçoeiros de bola parada. Quando havia briga, os brancos venciam na mesma. Não eram soldados preparados para a guerra?... Os africanos tomavam a sua desforra durante os bailes da noite, com ritmos de Angola e do Congo com a luz de vácuo meio apagada para apalpar, na escuridão, os corpos redondos e suados das bajudas nas coladeiras. (...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12459: (In)citações (58): Estradas da região de Tombali, Guiné-Bissau, 40 anos depois da independência: o espelho da Nação (AD - Acção para o Desenvolvimento)

10 comentários:

Luís Graça disse...

Recortes de imprensa:

(...) "Eusébio, o King, Eusébio, o Pantera Negra, Eusébio, a Pérola Negra. Ele só não gostava muito que lhe chamassem Pantera Negra por causa dos Black Panthers, o partido activista negro dos EUA. Preferia que lhe chamassem King, o Rei. Foi em Wembley, esse mítico estádio que iria marcar sua carreira, que Eusébio passou a ser pantera. Foi na sua segunda internacionalização pela selecção portuguesa. Dos onze, apenas um jogador tinha nascido em Portugal continental (Cavém, algarvio) e um nos Açores (Mário Lino). Havia um jogador brasileiro (Lúcio), todos os outros, incluindo o seleccionador (Fernando Peyroteo), eram africanos.

"O jogo era de qualificação para o Mundial e a Inglaterra acabaria por ganhar (2-0). Portugal mandou quatro bolas ao poste, duas delas foram remates de Eusébio. Foi o seleccionador inglês Walter Winterbottom que avisou o jogador que estava encarregado de o marcar: “Tem cuidado com o Pantera Negra.” Mais tarde, seria um jornalista inglês, Desmond Hackett, a cunhar esse nome no Daily Express após a final de Amesterdão, com o Real Madrid." (...)

Eusébio nunca será suplente na equipa dos melhores de sempre
MARCO VAZA 05/01/2014 - 09:47

http://www.publico.pt/desporto/noticia/eusebio-nunca-sera-suplente-na-equipa-dos-melhores-de-sempre-1618455#/0

Luís Graça disse...

Recortes de imprensa (2)_

Quando Eusébio ainda era Nené ou o Magagaga

http://expresso.sapo.pt/quando-eusebio-ainda-era-nene-ou-o-magagaga=f848933

Nascido em 1942, Eusébio sempre teve o futebol como grande paixão por influência do pai, Laurindo. Dos jogos em Mafalala ao modesto Brasileiros, destacou-se no Sporting de Lourenço Marques até chegar ao Benfica.
Bruno Roseiro
14:47 Domingo, 5 de janeiro de 2014


Eusébio festeja um golo no campeonato do mundo de 1966, quando foi o melhor marcador AFP Eusébio festeja um golo no campeonato do mundo de 1966, quando foi o melhor marcador

"Falta um, anda", grita um miúdo num campo de terra em Mafalala. O rapaz de oito anos alinhou. Ironia do destino, o melhor jogador português de sempre foi chamado para o seu primeiro jogo, a brincar e com uma bola de trapos, apenas porque faltava um. E a meio de um recado que tinha ido fazer à mãe Elisa. Que não gostou: afinal, entrou em casa já a meio da hora de jantar.

O futebol sempre foi a grande paixão do 'Pantera Negra' por influência do pai, Laurindo (que morreu novo, aos 35 anos, vítima de tétano), "um angolano branco", como explicou na última entrevista ao Expresso. No entanto, ninguém da família tinha o virtuosismo de Eusébio e a mãe cedo se viu em trabalhos para controlar esse destino. Como descreve João Malheiro na biografia do ex-jogador, "foi o filho por quem mais puxou". (...)

http://expresso.sapo.pt/quando-eusebio-ainda-era-nene-ou-o-magagaga=f848933#ixzz2pYlY5nYZ

Antº Rosinha disse...

Eusébio representou a imagem da Selecção de Portugal durante a nossa geração.

Mas mais que os simples pontapés na bola, Eusébio para Portugal e para a Europa representou uma mudança no olhar de toda a Europa sobre os africanos.

Eusébio foi uma "lança na Europa".

Eusébio representa uma portugalidade com mais de 500 anos.

Eusébio, embora através da bola, é de um simbolismo que ultrapassa o futebol.

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

A 'magia do futebol' não tem nenhuma culpa do que os 'poderes instituídos' fazem, ou possam fazer, para aproveitar as emoções populares.
Isto vem a propósito de já ter visto escrito por aí, na net, aliás como é costume em situações similares, algumas palavras mais 'azedas' por causa da 'excessiva visibilidade' dada a este caso do falecimento de Eusébio. E o facto do Poder, que tanto descontentamento tem produzido, ter decretado 3 dias de luto nacional também contribui para essas animosidades.

Mas a grande verdade é que o futebol, para além dos grandes negócios e interesses que move, é um desporto ao alcance das grandes massas populares, em qualquer lugar se pode jogar, estreita relações, fomenta amizades e pode ajudar a esbater diferenças. Daí que o poder, em qualquer tempo, em qualquer lugar, tenha sempre a tentação de o utilizar.

Não são raros os relatos que contam como durante os tempos dos grandes jogos, fossem da Selecção, fossem entre clubes com maior visibilidade, não haviam 'ataques' ou 'flagelações' às nossa posições.

E este relembrar do que o Cherno nos dá conta é igualmente uma indicação forte de como o futebol fascina, atrai e consolida relações e recordações.

Que viva Eusébio!

Abraços
Hélder S.

Anónimo disse...

Caríssimos:

Esta figura muito real do Cherno, nosso amigo muito querido, continua com as suas interessantíssimas crónicas, para nosso regalo e para proveito da história e dos historiadores que a hão de fazer.
Na verdade, o ângulo sob o qual o Cherno narra a "guerra", é de uma importância crucial para a percebermos. Então, como se depreende dos episódios que aqui nos vai narrando, os meninos da tabanca funcionavam como elos de ligação entre nós combatentes e a população, assumindo-se assim como portas netre o espaço do quartel e a comunidade autóctone. É certo que, nalguns casos, a geografia do quartel coincidia com a da comunidade civil mas, mesmo assim, era de grande utilidade a colaboração da criançada no estabelecimento de uma boa relação com a população senior até pela sua rápida aprendizagem da nossa língua. Lembro-me bem da doçura de muitas meninas e meninos e como os seus sorrisos mitigavam o nosso sofrimento.Na verdade, nem sempre retribuíamos essa doçura. O Cherno fala disso com toda a verdade e com alguma diplomacia...ele é um fazedor de paz. Por isso a minha gratidão.

Um abração

Carvaqlho de Mampatá.

Anónimo disse...

Estou triste ..muito triste..morreu o meu ídolo de infância.

Conheci-o pessoalmente através de um amigo comum e posso assegurar que era mesmo como dizem..humilde..generoso..companheiro..preservava a amizade acima de tudo.

Partiu cedo demais..mas como esse meu amigo, infelizmente também já desaparecido, dizia..."foi-se mas gozou a vida".

EUSÉBIO É ETERNO..VIVA O EUSÉBIO.

C.Martins

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Quem nao se lembra da imagem do Eusebio, o Pantera Negra, banhado em lagrimas, a saida do mitico e fascinante estadio de Wembley e a legenda do "A Bola" com as palavras cheias de perplexidade e de interrogacoes sobre a derrota que Portugal e Eusebio acabavam de sofrer, assim nesses termos: "Quando um Homem chora, alguma razao ha".

Em 1966, quando isso aconteceu, teria mais ou menos 6 anos e, é claro que, na altura, nao podia nem ver e muito menos ler estas palavras no "A Bola", mas acontece que este acontecimento foi tao badalado e a imagem tao sacralizada que nos 10 ou 15 anos que se seguiram ninguém podia ficar indeferente.

Contou-me um colega de infancia que, em 1987 o Cavaco Silva entao Primeiro Ministro de Portugal, veio a Guiné e com ele veio o Eusébio. E no decorrer de uma visita que fez ao Clube do Benfica de Bissau, afirmara que a derrota com a Inglaterra em 1966, tinha sido, antes de tudo, uma derrota politica, isto é, que o regime de entao, através da DGS, nao queriam perder um aliado tao importante como a Inglaterra, humilhando-a com uma derrota.

Hoje parece incompreensivel que isto tenha acontecido, mas entra perfeitamente na logica dos dificeis tempos de entao, com Portugal cada vez mais isolado e a enfrentar varias frentes de guerra subversiva e com forte cariz ideologica, ao mesmo tempo.

Obrigado aos editores por terem repescado este pequeno naco das minhas lembrancas de infancia.

O caso de Eusebio serve também para relembrar aos que ainda duvidam que na altura, nao era importante e imprescindivel nascer na Metropole (Portugal de hoje) ou nascer branco e Europeu para amar, chorar, lutar e morrer)
por Portugal e a sua bandeira.

A proposito, ha menos de um mes, durante uma viagem a aldeia, gravei a voz de um antigo milicia, meu familiar, iletrado que, ainda hoje, passados mais de 40 anos de recruta, consegue reproduzir na integra o hino de Portugal e o texto do cerimonial de jurar bandeira. Vou guardar, como diz o nosso amigo Torcato Mendonca.

Um abraco amigo,

Cherno Baldé

Tony Borie disse...

Olá Cherno.
"…nós éramos crianças e naturais da terra, na altura, não sentíamos o efeito do calor…".
Era verdade, vocês viviam em redor de nós, lá no aquartelamento, que tínhamos vindo da Europa, com roupa camuflada, sofríamos entre outras coisas o efeito do calor e cá dentro, no fundo, também queríamos brincar à bola, também tínhamos os nossos heróis da bola, pois ainda éramos "umas crianças", mas um pouco mais crescidas.
Cherno, gostei do teu poste, onde lembras os teus amigos e heróis de criança, o Eusébio, não passava despercebido a quase ninguém, também era o meu herói, esteve comigo por duas vezes, uma vez em sentido, na "formatura" na parada de recolher, no Depósito Geral de Adidos, em Lisboa, onde eu estive temporariamente, no final, quando "sargento dia" mandou destroçar, fui junto dele e cumprimentei-o, outra vez aqui na cidade de Atlantic City, onde houve uma festa num Casino, assinalando o "Dia de Portugal".
Era uma figura de Portugal, era um "Embaixador", por sinal muito educado, paz à sua alma.
Um abraço Cherno, Tony Borie.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro amigo Cherno Baldé

Os dois últimos parágrafos do teu comentário, atingiram-me o coração e os olhos arrasaram-se de água, água pura... pela dor imensa, de tanto sofrimento em vão.
Que pelo menosn nos fique esta certeza;- A de podermos continuar a ser irmãos.

Um abraço fraterno
JLFernandes

José Botelho Colaço disse...

Amigo Cherno, tanto o poste como o comentário focam uma passagem da realidade da vida, tu e o teu familiar iletrado têm uma cultura embora diferente sobre-natural.
Se me permites adiciono aos dois o provérbio popular.
Aquilo que o berço dá, só a enxada o tira.
Um abraço
Colaço.