quinta-feira, 3 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque


Fotos © da lavadeira de Fernando Gouveia, ex-Alferes Miliciano, Bafatá e Madina Xaquili, Guiné 1968/70, em dois tempos diferentes, marca dos tempos.



BIM DJUBI ARAMI DI BRANKU... MININU
BIM DJUBI INVOLUCROS DE BALA... PIQUININU
BIM DJUBI, LA LUNDJU, DJITU MANSU DE CERKA FORONTA
BIM DJUBI, NA MATU SUKURO, N’DÊ KU HOMI NA MATA HOMI, KUMA PA BUSKA PAZ.(1)


Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé)

45 - DEPOIS DO ATAQUE


Depois do ataque amanheceu e, de repente, ficámos sem medo e podíamos caminhar para além da porta das nossas casas-abrigo. O dia clareou, a sensação da coragem voltou e podíamos olhar para além do cercado da nossa morança. Como sempre, apetecia-nos perguntar ao sol, nosso general, onde estava ele, ontem à noite, quando enfrentámos a certeza de morrer na escuridão que escondia os assaltantes, bandidos que vieram da barraca vizinha, do mato, lá longe, no intuito de matar, roubar e destruir a nossa aldeia. Depois, a tabanca acordou novamente, ao ritmo dos seus afazeres, como se nada tivesse acontecido, porque nem a morte nem os medos sofridos na escuridão da noite superam a vida.

NENÃ IAY KOLEÁ, BAHÃ IAY BIRRERÔ, MI ANDÁ KÔ WIRA-WIDE: UMMH... DJEURO MAY...(2)

Depois do ataque, fomos à procura dos vestígios a volta da tabanca. Por detrás de uma árvore gigante, encontrámos o cenário, já familiar, onde um ou vários homens armados lutaram, desesperadamente, durante várias horas, entre o desejo de matar e o medo de morrer. No chão, espalhados aqui e ali, pequenos invólucros de cor amarela. Sinais de mil pegadas sobrepostas uma sobre a outra, dança frenética de pés, pegadas de homens, indecifráveis como as motivações dos seus actos de desespero. No ar, o cheiro inconfundível de pólvora queimada.

A distância entre o local e a aldeia era razoável, no entanto, éramos capazes de jurar que estiveram a atirar muito perto da nossa casa. Se calhar era o eco dos zincos ou então o pulsar dos nossos corações aflitos, todavia, éramos capazes de jurar que ouvíramos as suas vozes, igualmente aflitas, na ânsia premente de matar ou morrer. Invadidos de medo repentino de gelar o corpo, fugimos de volta para casa, a tempo de seguir para o quartel onde nos esperava o resto do nosso grupo de rafeiros com as habituais latas nas mãos e a teimosia nos olhos.

No quartel situado dentro da aldeia, a azáfama era grande. De manhã cedo saiu uma coluna de soldados para parte incerta. Desde ontem à noite que a rádio não parou de chamar na sua linguagem de códigos secretos, símbolos da guerra que nos aflige: “ALFA BRAVO... ALFA BRAVO... AQUI CENTAURO... ESCUTO”. “ALFA BRAVO... ALFA BRAVO... AQUI CENTAURO... ESCUTO”. Os chefes entram e saem calados. Tratar-se-ia de mais um ataque numa aldeia vizinha. Do sitio onde estamos podemos ver a claridade provocada pelas chamas das casas incendiadas. O jovem Capitão e seus Furriéis não nos vêm e não nos conhecem, mas nós conhecemos os seus nomes e conseguimos ler a aflição dos seus rostos impassíveis de homens de guerra.

O movimento de carros e da tropa é ininterrupto. Não sabemos para onde vão nem quando termina esta guerra que consome a nossa alegria de viver. No quartel, todos os soldados são parecidos, na idade, na pressa do andar, nos camuflados. Só o primeiro Sargento destoa do conjunto, pelo andar vagaroso e os olhos cansados. Junto dos arames, uma criança está à espera do amigo e talvez dum pedaço de pão que tardam a chegar. Aos miúdos que aventuram lá dentro o destino é incerto, tanto podem conseguir um pedaço de pão com marmelada como levar um vigoroso pontapé nos seus traseiros de crianças intrometidas. É uma questão de sorte ou de azar, como sempre acontece na guerra e na vida. “ALFA BRAVO... ALFA BRAVO... AQUI CENTAURO... ESCUTO”.

De repente, o silencio é cortado pelo ruído ensurdecedor de helicópteros que chegam e trazem reforços. Os homens saltam e os engenhos continuam no seu vôo rasante. Não são muitos, os soldados, o Comandante é preto, alto e magro, olhos de lince, calças camuflado, camisola branca e boina de pára-comando, uma faca de mato, duas cartucheiras e uma arma de assalto. Força especial, a elite da elite, mistura de botas e plásticos, boinas vermelhas, verdes e chapéus cubanos. Buruntumá, Canquelifá, Cumbamori e Samba-Ulencunda. A guerra não pára, assim como as más línguas sobre a prática macabra de corte de orelhas, em guisa de troféus, no mato escuro, onde os homens se matam uns aos outros na procura impossível da paz e sossego que tardam a chegar.

Na aldeia o silêncio é total. Não sabemos se partimos ou ficamos. As mulheres estão à porta dos casebres com seus enormes embrulhos e os filhos que choram nas suas costas. O que levar e o que deixar? Os homens estão apressados, entram e saem das casas, olhando para o céu, nos seus preparativos habituais, as Mausers nas mãos trémulas. Cabisbaixos, os mais velhos sorriem, pois sabem que quem vai a guerra nunca estará preparado, o suficiente, para enfrentar a morte. Corpos amarfanhados de guardas e amuletos diversos, cem garrafas de “Nassy”(3) para lavar a cabeça e os membros, trinta e três surats do Profeta para superar as forças do imponderável.

O frenesim do dia termina com a chegada do crepúsculo e, com ele desaparecem, também, os sorrisos das crianças no meio da guerra. Mergulhamos de novo na escuridão da noite e ninguém sabe o que pode acontecer até o dia seguinte. As nossas vidas giram à volta deste medo quotidiano junto dos arames farpados e abrigos escuros, o vai-vem apressado dos carros da tropa, sempre na esperança de um novo dia que há-de chegar, não se sabe como nem quando. “ALFA BRAVO... ALFA BRAVO... AQUI CENTAURO... ESCUTO...”


Rapazinho que vinha recolher ao arame farpado, junto dos postos de sentinela, as sobras (restos) da comida que os soldados lhe davam. Perante a realidade que observava questionava-me: "O que andamos nós aqui a fazer? Que guerra é esta? Como se não deve sentir revoltado este povo?... A nossa presença deverá ser uma afronta!..."


Imagem retirada do P12872, de autoria de Joaquim L. Fernandes, ex-Alf Mil da CCAC 3461 -Teixeira Pinto e Bissau (1973-74) com o sugestivo titulo: “Acordar memorias, Porto do carro, a minha aldeia e Canchungo, ontem e hoje"; que me devolveu à memória alguns episódios e cenas vividos durante a guerra colonial na Guiné e serviu de inspiração para o presente texto.


Notas: 

(1)
Venha ver os arames dos brancos, menino; 
Venha ver os invólucros das balas, pequeninos; 
Venha ver a luz que brilha lá longe, para afastar o medo; 
Venha ver o mato escuro, onde os homens se matam à procura da paz.

(2)
“A minha mãe foi ao campo trabalhar e o meu pai foi ao Birré (casa de mato onde, antigamente, os homens bebiam vinho de palma) e não sei de quem é a voz que clama: Umh... Djeuro morreu”.
Trata-se de partes da canção muito popular de um conto iniciático em língua Fula que narra a coragem de uma criança, simbolizando a vida que, sozinha, conseguiu superar o medo e vencer a serpente, grande como a terra, que a queria engolir na ausência da mãe, sempre ocupada em trabalhos para o sustento da família, do pai ocioso e amante do vinho de palma e do irmão (Djeuro) que teria encontrado a morte ao tentar opor-se a serpente gigante.

(3)
Nassy = mistura de água perfumada e de versículos corânicos previamente escritos numa tábua de leitura, muito usada no seio da comunidade muçulmana da África ocidental em geral e entre os Fulas em particular, ao qual se atribui diferentes tipos de poderes.

Bissau, 27 de Março de 2014.
Cherno Abdulai Baldé (Chico de Fajonquito).
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

7 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Carlos:

Lamento desapontar-te mas a bajuda Kadidja que inseriste no poste do nosso amigo Cherno Baldé nunca foi minha lavadeira e como muitas vezes disse, vi-a uma única vez, quando há 44 anos a fotografei. Com a mulher grande Kadidja passou-se o mesmo; só a vi também uma vez há 4 anos.

Um abraço.
Fernando Gouveia

JD disse...

Os meninos eram simultâneamente os mais ariscos, e as maiores vítimas. Ariscos, porque os meninos usam a energia de maneira ingénua, e o Cherno descreve-a com a experiência, perspicácia, e candura dos verdes anos. Eram as maiores vítimas pela crueza da vida, quando eram atinjidas no corpo ou na alma.
Lá longe, nos gabinetes confortáveis faziam-se contas à guerra, os que forneciam ambos os contendores, os Estados-Maiores que dicidiam sobre vidas e recursos.
Bem diz o povo: o mexilhão é que se dana.
JD

Joaquim Luís Fernandes disse...


Caros Camarigos

Mais um poste que não posso deixar de comentar. Logo a encimar,as fotos fascinantes da promissora e jovial "bajuda" e da realizada "mulher grande" Kadidja, que já várias vezes tinha procurado encontrar no Blogue sem o ter conseguido. Eu explico: Já lá vai quase um ano, que nas minhas iniciais deambulações pelo Blogue, inopinadamente me deparei com um poste(?) com uma interessante estória de um camarada (?)-eu abrevio- Vd P6384.

Então, pelo que vi e li, senti forte emoção como se o que era descrito tivesse acontecido comigo e fiquei encantado com a pequena estória e o que ela significava. Na ocasião, não tomei nota do nº do poste nem do seu autor (coisas de iniciado) e esqueci por algum tempo o assunto.
Mai tarde, quis voltar a encontrar o mesmo poste, mas até agora não o tinha conseguido.

Hoje, como por magia, aparecem-me as fotos da Kadidja e descubro o seu autor: O camarada Fernando Gouveia, das belas fotos da princesa do Geba, Bafatá e não só. Necessariamente sou levado a dar uma mirada rápida às suas muitas publicações no Blogue (135) e fico prisioneiro do interesse que despertei em mim. Agora não sei quando vou ter tempo para ler o "Na Kontra Ka Kontra", de que as fotos de Kadidja poderiam servir de icon.

Grandes os mistérios que a alma humana encerra e se manifestam em sentimentos inexplicáveis.

Um abraço Fernando Gouveia e obrigado pelas tuas partilhas

Anónimo disse...

Mais uma vez o Cherno traz-nos o regresso à vida nas tabancas ocupadas por unidades militares. E se há aspectos recorrentes na Guiné este, o da (omni)presença das crianças no meio dos militares, umas vezes acarinhadas, outras nem por isso, é o mais comum. São tantas as evocações que não me largam, não me largarão jamais, desses tempos em que alguns de nós acreditavam ser prestimosa para as populações locais, a nossa presença, apesar do seu caracter militar. Na verdade, hoje, à distância, percebe-se que o esforço era tão inglório como o de Tântalo...ah, se pudéssemos refazer a história, com muito menos suor, muito menos sangue e muito menos lágrimas, nenhuma criança teria levado um pontapé no cu e todos seríamos agora mais felizes.

Um abração
Carvalho de Mampatá

Joaquim Luís Fernandes disse...


Caro amigo Cherno Baldé

Mais um expressivo e sentido texto das tuas memórias de menino de Fanjonquito. Evocas como fonte inspiradora um dos meus postes e publicas uma das fotos que postei. Não posso deixar de manifestar como me sinto honrado e grato. Quero também, mais uma vez, expressar a minha admiração por esse menino, hoje "Homem Grande", o Doutor Cherno Abdulai Baldé, que encontrei neste Blogue e que tenho vindo a conhecer pelas suas publicações e comentários, de grande sensatez e sabedoria. Têm sido para mim boas lições e fonte de conhecimento e de reflexão.

Quem diria que aquela foto de 1973, que fiz de dentro do quartel de Teixeira Pinto, viria a ser publicada em 2014, na Internet, disponível na Blogosfera para reflexão. Então, estava sensibilizado com o que observava no menino junto ao arame farpado, condoído com o sofrimento que a sua figura me provocava e me levou a falar com ele e pedir-lhe para se deixar fotografar. Colhi depois uma flor dum hibisco, que coloquei entre os arames como sinal da minha oração pela paz e pela amizade e fraternidade entre os povos. Hoje os meus sentimentos atualizam-se no mesmo querer e na mesma oração.

É assim, amigo Cherno. São os sinais que falam quando os prescrutamos. É o "dillé" como nos ensinas no P6864- A (Mu)dança das Bandeiras - que li e refleti recentemente, vendo como bem falavam esses sinais.

Sobre o teu texto, de sentidas memórias, fortes e emotivas, destaco algumas frases para meditação, neste tempo de Quaresma, para os cristãos tempo de preparação para a Páscoa. Semelhante ao tempo do Ramadão na religião Islâmica.

"nem a morte nem o medo sofridos na escuridão da noite superam a vida"

"o dia clareou" (e irrompeu brilhante e vitorioso o) "Sol, nosso General"

"não sabemos quando termina esta guerra que consome a nossa alegria de viver"

"junto dos arames, uma criança está à espera do amigo, talvez dum pedaço de pão"

"no mato escuro onde os homens se matam uns aos outros na procura impossível da Paz"

"As nossas vidas giram à volta deste medo quotidiano, junto dos arames farpados e abrigos escuros"

Porém, digo eu: Numa busca incessante de segurança e confiança que nos proteja e salve e só em Deus alcançamos.

É esta experiência religiosa que os cristão são convidados a fazer ao longo destes 40 dias de quaresma, que culmina na celebração da Páscoa, a vitória da Vida sobre a Morte.

Vai longo o comentário. Fico-me por aqui.

Faço votos que o ato eleitoral que se avizinha na Guiné-Bissau, decorra em harmonia e seja frutuoso para a consolidação da paz e das prosperidade dos povos irmãos,dessa terra que também amamos.

Um abraço amigo
JLFernandes

Fernando Gouveia disse...

Para o amigo Cherno:
Ao ver o teu poste logo tive, de imediato, necessidade de advertir que a kadidja nunca foi minha lavadeira…
Agora sim, quero dar-te os parabéns pelo que escreves-te, aliás como por tudo que tens escrito no blogue. Os anteriores comentários disso fazem eco.

Para o camarada Luís Fernandes:

A comoção que tu sentiste ao ler a minha estória, podes crer, senti-a ao viver a situação há quatro anos, senti-a quando a estava a escrever e sinto-a todas as vezes, e são muitas, quando a releio.

Abraços para os dois
Fernando Gouveia

Hélder Valério disse...

Caros camaradas
Caro Cherno

O Cherno já nos habituou à qualidade própria dos seus escritos e ao seu valioso conteúdo.
Não temos que concordar com tudo. Com todos os seus pontos de vista. Mas podemos apreciar, pelos seus olhos, pelos olhos e sentidos da criança de então, os ambientes vividos à volta de um quartel.

Neste caso após um ataque. É deveras interessante como a curiosidade se sobrepõe à cautela.
O seu grupo de crianças aventura-se a reconhecer o local de ataque, a descobrir os vestígios, vários, do que se passou na noite anterior, sujeitando-se a algo perigoso, caso os atacantes tivessem deixado armadilhas.
Nesse aspecto, acho que as crianças são iguais em toda a parte.

Abraço
Hélder S.