segunda-feira, 5 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13101: De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65). Parte I: Caió, Bula, Olossato, Fajonquito, meados de 1963...





Guiné > Região do Oio > CART 527 (1963/65) > Olossato > Julho de 1963 > Fardas novas, capacete de aço. os graduados equipados com a pistola metralhadora FBP: em primeiro plano, o fur mil António Medina (em cima); a secção do António Medina (em baixo) (montagem de L.G.)

Nota do AM: "Vasculhando os meus arquivos encontrei a foto que faço juntar, que diz respeito à mata em Olossato. Eramos todos maçaricos na altura, com a farda ainda nova. Quem tirou a foto não me lembro."... Está bastante estragada, do lado esquerdo, pelo que teve de ser recortada e editada... (LG).


Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem, com data de 21 de abril último, do nosso camarada da diáspora (, natural de Santo Antão, Cabo Verde, a viver nos EUA) António Medina, ex-fur mil inf, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65):

Olá, amigo Graça,

Terminei o meu artigo , conforme te informei havia de to enviar logo que possível para ser publicado no blogue. Lamento nao ter fotos da area de Olossato que pudessem sustentar esse meu escrito, mas procurei ser o mais realista possivel. Ficarei aguardando as tuas noticias.


Um abraco camarada e amigo.


2. Resposta de L.G.:

António: Que memórias frescas!... Vou publicar e arranjar fotos... Diz-me se vais dar continuidade, e quantos textos ainda queres escrever sobre a tua vida na tropa e na guerra, e em particular sobre a história da tua CART 527... O que me mandaste podia ser "partido" em dois...Temos que fazer render o peixe... Mas, pelo que sei, tens mais histórias na forja... Vou abrir uma série, "De Lisboa a Bissau, passando por Lamego"... O início da guerra no TO da Guiné, em 1963, precisa de ser melhor documentado no nosso blogue... Vocês faziam coisas impensáveis no meu tempo (1969/71), só com um pelotão!... O que é feito do teu antigo comandante, o ex-alf mil Correia ? Tens notícias dele ?

Outra coisa: vê este documentário, de 1 hora, "Kolá San Jon é Festa di Kau Berdo", com cenas filmadas na Cova da Moura (Amadora), São Vicente e Santo Antão, a tua ilha, pode interesar-te. Foi realizado pelo Rui Simões, com produção da Real Ficção, em 2011... Está à venda em DVD:

Abraço grande. Luis

3. De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65): Parte I: Caió, Bula, Olossato, Fanjonquito, 1963

por António Medina

Cumprindo o serviço militar na Companhia de Caçadores 2, em Mindelo,  São Vicente, Cabo Verde, contando pelos dedos da mão os dias que já me faltavam para passar à peluda, inesperadamente fui mobilizado pelo RAL 1, de Lisboa, com instruções para me apresentar no Centro de Operações Especiais, em Lamego.

Deixei Cabo Verde naquela mesma noite no N/M Alfredo da Silva, revoltado e frustado por ver o meu tempo de serviço aumentar mais dois anos, e o perigo a que me iria sujeitar no teatro da Guerra. Como funcionário publico que era, tinha a garantia de retomar o meu emprego logo assim deixasse a tropa.

Fui então incorporado na CART 527. Se sucederam treinos variados, destacando a resistência física que foi a mais penosa e estafante, em especial quando se subia e se descia em cross a longa escadaria de Nossa Senhora dos Remédios. [vd foto a seguir].


Lamego: as célebres escadarias do Santuário
de N. Sra: Remédios. Foto: Wikipédia
A 29 de Maio deixámos Lamego e no dia seguinte, de Lisboa partimos para a Guiné, chegando a 4 de Junho em Bissau cerca do meio dia.

O sol era abrasador, o calor asfixiante, o suor escorria pelo rosto de todos, alguns sentindo ainda o mal estar do enjoo. Do navio atracado se via a banda militar, um primeiro sargento e seus “cometas” davam-nos as boas vindas à terra que se dizia ser portuguesa e que teríamos de defender com unhas e dentes até à última gota de sangue.

Estivemos duas semanas no Quartel de Amura. Nesse interim foi indicado Comandante da CART 527 o Capitão Antonio A. Varela Pinto que por sua vez dependeria do Tenente-Coronel Hélio Felgas do Batalhao de Bula [, BCAÇ 507]. O comando da companhia, o primeiro e o segundo pelotão ficariam sediados em Teixeira Pinto, o nosso terceiro pelotão em Caió e o quarto em Cacheu.

Em meados de Junho de 1963 deixámos Bissau a caminho de Teixeira Pinto, atravessámos o rio Mansoa pela jangada de João Landim. Foi o nosso primeiro contacto com o mato.

Chegamos à pequena vila de Caió onde se encontrou um pelotão independente que terminara a comissão e aguardava qualquer momento para o embarque de regresso. Como é óbvio, tinham eles alegria no rosto, enquanto mostravamos saudade, medo, preocupação e vontade de também querer partir.

Em principios do mês de Julho o inimigo já infiltrado se mostrava activo nas zonas Norte e Leste. Do Comando de Bula [, BCAÇ 507,] chegara em cripto instruções para o nosso Alferes Correia, que juntos com o quarto pelotão tomássemos o caminho de Bula prontos a entrar em acção (sic). 

Pela estrada fora um dos condutores do quarto pelotão adormeceu ao volante e o Unimog bateu numa árvore, devido a ferimentos graves o nosso Furriel Severino perdeu a vida, lembro-me de ter rezado baixinho para ele, fazendo o sinal da cruz antes do seu passamento.

Bula estava em pé de guerra com tropas chegadas de Mansoa
e outros quartéis, como reforço para a operação Morés.

Antes do Sol nascer,  e sob o comando do Tenente-Coronel Felgas,  partimos em coluna pelas estradas de Binar, Bissorã, Mansabá até chegarmos a Morés onde se dizia existir abrigos subterrâneos do PAIGC. Durante o percurso não houve contacto com o inimigo. Dois aviões Fiat lançaram foguetes para dentro do mato em Morés sem qualquer resposta, regressando à base em Bissau.

À tardinha foi então dada ordem de retirada para Bula, excepto ao nosso terceiro pelotão que. em vez, foi desviado para Olossato, na região do Oio, a reforçar a secção do furriel Campos que pertencia a uma companhia de Cavalaria, aquartelada em S. Domingos ou Farim.

A secção de Cavalaria ocupava um celeiro, porque o espaço não chegava para todos,  eu e o colega Fidalgo ficámos numa parte do edificio da Escola Primária. Coube-nos o chão cimentado que não era de todo mau para se passar a noite, mesmo assim alguns preferiram as carteiras da escola para que mesmo sentados tivessem algum descanso.



Guiné > Mapa da província >1961 > Escala 1/500 mil > No tempo em que um pelotão dava à volta a meio território, ou pelo menos, saía de Bissau, era colocado em Caió, dependente de Bula, ira reforçar o Olossato, participava numa operação no Morés  e ia acudir as gentes de Fajonquito... Estamos de meados de julho de 1963!.. Oficialmente a guerra tinha começado com uns tiros em Tite, no dia 23 de janeiro de 1963... Por sorte, ainda não havia minas... (LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)


Batismo de fogo em Olossato e Fajonquito: início de uma guerra
Guiné, Região do Oio,
Olossato, 1963. CART 527. Fur mil
António Medina, equipado
de pistola metralhadora FBP



De madrugada fomos flagelados por um bando armado tentando atingir as nossas sentinelas, ao qual respondemos prontamente com o fogo das G-3. Não houve baixas.

De manhã reconhecemos a vila com casas cobertas de colmo,  outras com chapas de bidons e aluminio, formando uma pequena avenida. Deparamos com uma padaria pertencente a um casal libanês e mais abaixo, quase no principio da estrada que seguia para Farim, uma sucursal da Casa Gouveia.
Na quarta noite um guarda noturno da Gouveia nos informou que um grupo armado do PAIGC estava saqueando a empresa. Que alguns posicionaram-se ao longo da pequena avenida de Olossato entre as residências, para emboscar qualquer forçaa que se atrevesse a avancar.

O nosso Alferes determinou que eu saísse a pé com o guia por uma vereda que nos levaria às traseiras da Gouveia. O Furriel de Cavalaria que saisse alguns minutos mais tarde, de Unimog com metralhadora fixa pela avenida abaixo, então foram surpreendidos pelo nosso fogo cruzado

Constatámos no dia seguinte que o inimigo se retirou furtivamente no escuro da noite, deixando mercadorias ao abandono. Entretanto o casal libanês foi raptado e nunca mais se soube deles.

Destacados para Olossato vindos de Morés apenas com armas e munições, o que o Furriel tinha em stock não bastava para alimentar um pelotão por muito tempo. Por isso, o nosso colega Cruz,. desprezando o perigo,  saiu de Olossato a caminho de Mansoa à procura de mantimentos para voltar practicamente de mãos vazias, apenas com um saco de arroz e algumas folhas de bacalhau.



Guiné > Região do Oio > Olossato  > 1958 > O senhor Reis, da Casa Gouveia.  Foto nº 2267,  do nosso camarada   Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, NhacraQuinhamel, Binar, Teixeira PintoEncheia e Mansoa, 1963/65).

Foto (e legenda): © Leopoldo Correia (2013) Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


Aliás, o colega Cruz durante o seu caminho para Mansoa viu passando em certa érea algo estranho, árvores caidas atravessando a estrada, cratera de minas que explodiram e sangue, mais tarde confirmado que naquela madrugada a tropa de Mansoa caira numa emboscada com muitas baixas.

À tardinha, um dos guardas do Posto Admninistrativo acabara de chegar dando-nos a notícia que um grupo armado do PAICG esteve na tabanca de Fajonquito, aliciando, intimidando e recrutando pessoal, onde decapitaram dois dos habitantes que, para eles,  eram supostos colaboradores da tropa colonial.

O nosso alferes resolveu fazer um reconhecimento à tabanca no dia seguinte de manhã cedo. Connosco levámos alguns batedores com catanas e que iriam à frente em linha, abrindo caminho naquele mato cerrado cheio de espinheiras. Tivemos de atravessar uma bolanha de arroz, com água até aos joelhos,  para que se chegasse a Fajonquito.

A tarefa não foi facil, já  cansados avistámos a tabanca de Fajonquito, em terreno descoberto,  cultivado de mancarra à volta. O inimigo nos surpreendeu,  abrindo fogo do lado direito do terreno onde começava a mata, redireccionámos os nossos homens e contra-atacámos com as G-3, o furriel de cavalaria com a bazuca e o morteiro. O tiroteio durou algum tempo, depois fugiram deixando a minha secção com duas baixas sem gravidade.

Devo realçar o sangue frio do 1º cabo aux enfermagem  que mesmo debaixo de fogo não se poupou a cuidar daqueles feridos que mereciam receber os primeiros socorros, antes de serem evacuados para o Hospital de Bissau.



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1964/66 > Sérgio Neves e um camarada em cima de uma autometralhadora Daimler > Foto nº 15, do álbum fotográfico de Sérgio Neves (ex-fur mil, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66), a falecido, irmão do nosso camarada Constantino (ou Tino) Neves.

Foto (e legenda): © Constantino  Neves (2010) Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]


Mas aonde estaria o nosso Alferes Correia, que é feito dele ?

De inicio pensámos o pior, finalmente encontrámo-lo sentado no chão, abrigado em um monte de baga-baga. Como cristão que era, calmamente rezava seu terço. Sempre o trazia com ele, para fazer suas orações nas horas certas.

Em fins de Julho o nosso alferes nos informa que de imediato aprontássemos para o nosso regresso a Caió. É que o pelotão de Caió tinha recebido ordem de marcha e cabia agora a nós segurar aquela zona.

Euforicamente arrumámos o nosso material, tomámos as viaturas e partimos em alta velocidade pela estrada fugindo a qualquer emboscada que se avizinhasse, passando por Mansoa e Bula até chegarmos a Caió,  sãos e salvos. Olossato ficara para trás mas serviu para nos mostrar a determinação do inimigo em querer lutar pela sua ideologia e futura independência.

Doente e dando sinais de um certo desiquilíbrio,  o que na altura bastante lamentámos, o nosso alferes foi levado a se apresentar na junta médica em Bissau, que o desqualificou do serviço e o evacuou para Portugal.


8 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Só para dizer que adorei a tua narrativa.Sou teu contemporâneo no primeiro ano um pouco mais Sul Cachil Ilha do Como, nós como fomos dos primeiros a surpresa era o pão nosso de cada dia.
Desculpa mas quando dizes aviões Fiat devias dizer F-86, os Fiats só em finais de 1966 chegaram à Guiné.
Um abraço Colaço C.caç 557 Cachil, Bissau, Bafatá 1963/65.

Luís Graça disse...

(i) Para o António Mediana

Aqui tens o teu poste, com algum atraso... Diz-me se gostas do título da série ou queres alterar... Lamego só faz sentido se a tua CART 527 passou por lá...Fiquei na dúvida: foi a companhia toda que esteve em Lamego, no Centro de Operações Especiais, ou foste só tu ?...

Outra coisa: o teu testemunho sobre os primeiros meses da guerra são muito importantes. Estão ainda relativamente pouco documentadas as nossas práticas de guerra, bem como as do PAIGC em 1963/64...

Por exemplo, não havia ainda minas, é verdade ?... Ias do Olossato a Fajonquito a pensar apenas nas emboscadas... É isso ?

Quanto ao uso da decapitação como forma de terror... Falas em dois casos em Fajonquito, por parte do PAIGC como forma de punir o "colaboracionismo" ... Tiveste
conhecimento de mais casos ?... Foi prática corrente do PAIGC nesse tempo, nomeadamente em relação aos guineenses que colaboravam com as NT ?

E, da nossa parte, também conheceste algum caso de decapitação, nomeadaemnte de cadáveres ?

Sei que o que o assunto é delicado... Mas não vale esconder o sol com a peneira... O primeiro comandante do PAIGC a ser morto, e depois decapitado, foi o Vitorino Costa, por volta de finais (?) de 1962, antes do inícío oficial da guerra, em Darsalame, região de Quínara...A sua cabeça foi trazida para Tite como troféu...

Gostaria que alimentasses a tua série, com mais uns tantos postes... Arranjo-te depois fotos, se não tiveres...

Um abração. Saúde. Luis

(ii) Para o Zé Colaço:

Obrigado pela tua preocupação com o rigor factual... Em meados de 1963 não havia Fiat G-91, é isso ? Só F-86 ? Descolavam de onde ?

Um abração para o grande veterano Colaço!

Luís Graça disse...

Alguns práticas cruéis da guerra na Guiné a que alguns de nós assistiram ou ouviram falar (decapitação de cadáveers, cortes de orelhas, etc.), também têm de ser contextualizadas....

Entre os usos e costumes jurídicos dos fulas, e mais propriamente no que dizia respeito ao "direito penal", sabemos que, antes da sua "submissão" aos novos senhores do território, isto é, antes da chamada "pacificação", aplicava-se entre os fulas a pena de morte, ou com sem decapitação do cadáver, embora em casos excecionais... Em geral, aos salteadoers de estrada, com crimes de sangue, era aplicada a pena de morte com decapitação. A cabeça era espetada num pau, como forma de terror.

O corte de um ou dois membros ou orelhas também era uma das penas corporais no direito fula, que de resto era de inspiração corãnica. Tal como as vergastadas, a incisão com ferros em brasa e a tortura...

É neste caldo de cultura da violência do direito consuetudinário que temos de entender eventuais "excessos" do lado do PAIGC mas também das NT, antes e no início da guerra...

Convenhamos que o assunto está mal documentado do nosso blogue... Do lado do PAIGC, sabemos que alguns dos "excessos" de senhores da guerra do PAIGC, contra as populações, terão sido julgados (e punidos) no congresso de Cassacá (1964)...

Não havendo tabus no nosso blogue, fica aqui o desafio para falarmos também deste tema que tem dado apenas a um ou outra referência ao correr da pena...com, por exemplo, este parágrafo do poste do António Medina:

"À tardinha, um dos guardas do Posto Admninistrativo acabara de chegar [, ao Olossato,] dando-nos a notícia que um grupo armado do PAICG esteve na tabanca de Fajonquito, aliciando, intimidando e recrutando pessoal, onde decapitaram dois dos habitantes que, para eles, eram supostos colaboradores da tropa colonial." (...)

José Botelho Colaço disse...

Que eu tenha conhecimento era da base de Bissalanca em Bissau, o único que se comentava e que bombardeava e regressava à ilha do Sal em Cabo Verde era o PV2-5, mas este avião só actuava durante a noite, isto pelo que me foi dado observar durante a operação Tidente.

Retribuo o abração.

Luís Graça disse...

Ah!, as malditas gralhas... Eu queria dizer: "Algumas práticas cruéis da guerra"... [como se a guerra, em si, não fosse o máximo da crueldade, meus amigos e camaradas]...

Peço desculpa pela falta de concordância.... LG

Luís Graça disse...

E, claro, não é António MEDIANA, mas sim MEDINA (!)... I'm sorry, my friend!... LG

José Botelho Colaço disse...

Em hora de rectificar também não é Tidente mas sim Tridente.

Luís Graça disse...

António Medina, o teu mail não está operacional! Vê o que se passa!... Temos o Atlântico pelo meio e tanto que conversar!... Um bom dia para ti. Luis Graça