sexta-feira, 23 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13182: Notas de leitura (593): "O Eco do Pranto - A criança na poesia moderna guineense", recolha e coordenação de António Soares Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
Conforme anota Leopoldo Amado na introdução, uma plêiade de jovens poetas entrou em cena no período que precede a independência guineense e nela vai viver as primeira décadas, são estros líricos que apontam para novas direções e, de um modo geral, a criança, em metáfora, é a tocha que ilumina os caminhos sombrios daqueles tempos de derrisão e múltiplas derrotas do sonho coletivo em tempos melhores, sonhos do desenvolvimento, da criatividade.
Tal como Cabral dizia que as crianças eram as flores da luta dos independentistas, estes poetas agarram-se à ternura e à inocência ofendidas para acender o rastilho da esperança, às crianças tudo se deve prometer, têm o futuro por sua conta.

Um abraço do
Mário


O Eco do Pranto:
A criança na poesia moderna guineense

Beja Santos

“O Eco do Pranto, A criança na poesia moderna guineense” é uma recolha e tem coordenação de António Soares Lopes, prefácio de Leopoldo Amado, Editorial Inquérito, 1992. Ao tempo, era pertinente a observação de Leopoldo Amado de que a poética guineense ainda estava profundamente marcada pela temática revolucionária, uma constante em obras como a de Vasco Cabral e Amílcar Cabral. A geração subsequente à independência tornou mais amplo o leque temático, e chegados os anos de 1990 era já possível pôr em coletânea poemas dedicados à criança, mesmo com ligações ao período libertador e ao tratamento poético, por vezes melancólico, dos estados de deceção pelo país à deriva, mais pobre e com elevado sentido de derrotismo. A coletânea abre as hostilidades com Agnelo Regalla, jornalista e político. Ele é autor da poesia “O Eco do Pranto”.

Associando Amílcar Cabral à expressão que as crianças eram as flores da luta em curso, dedicou ao líder assassinado um poema que assim se inicia:

No chão vermelho
Do teu sangue, camarada,
Caem como gotas de orvalho
As lágrimas sinceras da dedicação.
As flores da nossa luta
Que tu com carinho plantaste
Estão a desabrochar
Em gargalhadas infantis


- O poema “Saudade” é de 1973 e correlaciona a luta com o futuro melhor para as crianças:

Sinto… A amargura dos que vão
Na onda dos emigrados.
Sinto também,
A secura nos meus lábios
E o último prazer daquele beijo
Na tua face, Mãe.
Na minha bagagem,
Só roupas e alguns livros,
A tua fotografia
o sofrimento de um Povo escravo.
Trago ainda comigo
A recordação das crianças
Com fome e sem escola.
Estou a vê-las
Com cestos à cabeça,
E o passo apressado
De quem tem a noção do tempo;
E assim lá vão…
São homens pequeninos,
Sonhando com livros,
Brinquedos e jogos, como todas as crianças.


- António Soares Lopes, jornalista, denuncia no seu poema “Teto do Silêncio” as degradantes condições de vida da criança:

Ergo a minha voz
e firo o teto do silêncio
Nego a morte de crianças
porque há míngua de medicamentos.

Na angústia
liberto o verbo
mordo o pólen da desgraça
que graça
nesta África desventurada
em obra
e graça
subdesenvolvendo-se.
............

Exorcizo o paludismo
apeio a poliomielite
amputo a desgraça
encho a taça de ternura
e fica a graça da criança
florescendo a vida.


Conduto de Pina, técnico de artes decorativas, no seu poema “Criança” exalta a inocência, a candura, a promessa de amanhã radiosos, verseja em moldes clássicos:

Não sabes odiar, não sabes desprezar
Só queres criancinha, amigos arranjar
Na tua inocência, na tua espontaneidade
Dizes o que ouves, p´ra um novo amigo cativar.


- Félix Sigá, músico e compositor, dirige-se ao filho, pioneiro, acalenta-o com esperança em tempos de tanta desorientação:

Não deites lágrimas no meu pranto
............

Com liturgias frustradas
Esvaem-se idolatrias
por pseudo-mitos
E este Povo martirizado
embrenha-se sempre
pelas veredas do PAIGC
Na senda do progresso e felicidade
para sua e tua gerações


Hélder Proença, deputado escritor e responsável político, escreve uma vibrante elegia intitulada “O baque do pranto em dez poemas com terra e lágrimas”, é uma construção rigorosa e clássica, como se exemplifica

Não era dia nenhum
quando o pêndulo emudeceu
e o sorriso murchou
na flor da idade.
Não era tarde nenhuma
aquela hora
em que não se ouvia
a tua respiração.


- Jorge Cabral, diplomata de carreira, é portador de uma lírica luminosa, ritmada, cândida, pronta a ser soletrada na própria escola, como se exemplifica com o seu poema “Bom Dia, Menino”:

Bom dia, menino

Agora que saíste
vencedor
da tua primeira luta
pela vida

Sê bem-vindo
e perdoa-nos
pela imperfeita herança
deste presente amargo e fugaz feito
de esperança e ilusão
de jardins por regar
e corações por limpar
de penumbra por iluminar
e prantos por secar
de dor por consolar
e sonhos por realizar
de miséria por aliviar
e morte por ressuscitar

A coletânea inclui ainda poemas de Mariana Ribeiro, Pascoal D’Artagnan Aurigemma e Vasco Cabral. Enfim, um retrato das gerações mais jovens associadas à luta pela independência e amargados pelos sonhos desfeitos.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13162: Notas de leitura (592): "Operação Mar Verde" em banda desenhada, por A. Vassalo (Mário Beja Santos)

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