quinta-feira, 12 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13275: (In)citações (66): Sobre o 10 de Junho, Dia da Raça (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Junho de 2014:


Sobre o 10 de Junho, dia da Raça

Comemora-se hoje o dia da raça. Durante o período colonial, designadamente durante a guerra de África, a RTP dedicava importante espaço de emissão à grande sala de cerimónias no Terreiro do Paço, onde as tropas formavam, onde se juntavam deficientes e familiares de falecidos durante a missão africana, e alguns combatentes que eram publicamente homenageados (todas as nações elegem os seus heróis), e apresentados como exemplos a seguir. Havia, claro, um período para discursos, que continham mensagens de patriotismo e devoção nacional, como símbolo do sentido militar. Lembro que o juramento de bandeira, abrangia a dádiva da vida pela defesa nacional. Era grande o sentimento de comunhão e solenidade entre civis e militares. Se os milicianos juravam a defesa da nação até às últimas consequências, os militares profissionais, por maioria de razão e opção de vida, também o faziam. Aliás, entroncava nessa vertente o chamado estatuto militar, que contemplava a especial condição de contagem de tempo para reforma, e a excepcional melhoria de vencimento enquanto deslocados em África, entre outras situações distintivas da condição militar.

Hoje recordei a clivagem gerada pelo MFA. Aquele movimento veio justificar o golpe que levou a cabo, pela conclusão de que a guerra só poderia ter uma solução política. Tal conclusão, por parte dos profissionais militares que, em princípio, estariam de posse dos elementos conclusivos naquela direcção, deveria ter dado sinais claros dessa preocupação, depois de o tentarem pela via hierárquica, fazendo chegar ao Governo relatórios suficientemente estruturados, e demonstrativos das novas razões que se impunha ponderar. Estas coisas não acontecem com a facilidade de premir o interruptor, pelo que deviam estar preparados para um período de debate governativo, depois de estabelecidos canais de comunicação adequados, e que garantissem o necessário segredo sobre as "démarches". A união em torno de argumentos sérios e inequívocos, daria aos capitães a garantia de não haver vítimas disciplinares, ou outras que se mostrassem ostensivas.

Tudo parecia correr com "normalidade": os profissionais eram mobilizados com parcial regularidade para comissões no ultramar. Alguns integravam unidades de combate. Os restantes exerciam as suas actividades, em princípio, a recato dos perigos da guerra e chegavam a fazer-se acompanhar pelas famílias. Daqueles que integravam, como comandantes ou sub-comandantes, as unidades de combate, alguns assumiam o risco, outros refugiavam-se nas sedes das unidades, e renunciavam às suas obrigações de líderes de combatentes. Esta situação era conhecida e tolerada. Os comandantes de unidades de combate que se refugiavam de riscos, nem sequer eram instigados a mudar de atitude. Nessa medida poderiam influenciar a maior ou menor eficácia dos seus comandados que, em geral, ficavam sob a tutela dos jovens milicianos comandantes de pelotões, que praticavam e intuíam a guerra conforme as suas experiências e capacidades. Este, poderemos considerar um primeiro paradoxo.

O livro do General Spínola, "Portugal e o Futuro", desencadeou uma espécie de debate público entre apoiantes e oponentes do Governo. Mas, se o livro propunha uma solução política que não contemplava a independência do ultramar, e limitava implicitamente as negociações com os movimentos de libertação, parece ter inspirado definitivamente as insondáveis angústias dos militares, que viriam a desencadear o golpe, sem que tivessem acautelado alguma responsabilidade perante a nação, tendo em conta que os seus argumentos poderiam ser óbvios na defesa do interesse nacional. Em vez de um golpe, poderiam ter tido a força para, ponderada e decisivamente, ajudar o país a descobrir novos rumos políticos e estratégicos, que garantissem uma regular passagem de uma situação a outra, incluindo qualquer das formas de autodeterminação. Ora, o que aconteceu, nos termos em que aconteceu, de abandono acelerado de territórios e gentes, pode exprimir novo paradoxo.

Entretanto, já havia mostras de vontade negocial por parte dos movimentos, nomeadamente, na Guiné e em Moçambique, que envolviam nações do grupo dos afro-asiáticos como o Senegal, o Malawi e a Zâmbia, para além de outras nações ocidentais. Em Angola, vivia-se um clima de grande tranquilidade, com a guerra praticamente em banho-maria. Mas Angola era um caso especial de progresso e desenvolvimento económico e social, onde todos poderiam ser integrados na vida profissional, e havia estruturas que, se não fossem exemplares, davam mostras claras de um estado organizado. Em todas as parcelas podemos dizer, que os movimentos não tinham apoio regular das populações, o que contrariava um dos princípios fundamentais da guerrilha, pelo que não eram representativos de nenhuma parte específica de cada uma das chamadas "províncias", além de lhes faltar homogeneidade ideológica. Outro paradoxo.

Esta situação ilustra que a guerra era alimentada do exterior por países satélites de interesses ou ideologias (USA, URSS e China). Na Guiné, o PAIGC não tinha identidade ideológica com o Senegal, pelo contrário, conflituavam frequentemente. Em Moçambique também a Frelimo não mantinha identidade com os países vizinhos, apesar da guarida dispensada por dois de entre seis, embora reflectisse algum perigo político-económico relativamente a alguns deles.

Desencadeado o golpe veio a verificar-se, porém, que nenhuma das razões apontadas como justificativas, correspondia a um espírito de grupo coeso e identificado com o Programa. Na verdade, logo aconteceram as diatribes provocadas por inúmeras diferenças de objectivos e comportamentos, entretanto influenciados pela política, tornando clara a impreparação de um golpe que se pretendia representativo do sentir das Forças Armadas. A desorientação espelhou-se na procura de civis mais ou menos credenciados, com oportunismos à mistura, no sentido de oferecerem alguma espécie de garantia e desapego do poder, tanto interna, como internacionalmente. O que atrapalhava esse objectivo, era a constante confrontação e definição de grupos de pressão. Disso viria a reflectir-se a sucessão de asneiras sobre o ultramar. Inventou-se a "descolonização exemplar", que não foi além da entrega ostensiva, imoral, incompetente e criminosa, dos destinos das colónias aos movimentos que, além de não serem representativos, não eram manifestamente capazes de assegurar o normal funcionamento das nações onde passaram a governar, porque o MFA e os políticos cooptados, todos sem legitimidade democrática, em nome de uma pretensa superioridade moral e democracia de satisfação a interesses externos, capitulavam surpreendentemente nas negociações com os movimentos, e com isso condenaram todos os que, pretos, mulatos ou brancos que se acolhiam sob a cultura, bandeira e nacionalidade portuguesa, a situações vexatórias de violação dos direitos mais sagrados, ao arrepio de uma tutela internacional consagrada na Carta da Nações Unidas, e fica manchado como atitude de desprezo dos militares pelas obrigações que juraram assumir, o que constitui outro paradoxo.

O Programa do MFA, segundo um contemporâneo, foi redigido em termos de congregar as vontades que ainda se encontrassem dispersas, de obter a adesão de todas as correntes políticas e, mesmo, a contemporização das camadas conservadoras da sociedade portuguesa, o que constituía evidente ardil e novo paradoxo. Muitos portugueses optaram pela comemoração emotiva do evento, sem que o tivessem apreciado na essência, e priveligiaram exuberantemente a exultação da contradição com o regime autoritário deposto. Deram gestação ao Estado liberal (travestido de socialista, que ia do CDS à UDP), incongruente e deficitário que persiste.

Último paradoxo: toda a gente sabe, e está consignado na lei, que qualquer individuo com ligações laborais fica vinculado a princípios de lealdade e disciplina, pelo que no caso dos aderentes ao MFA, empregados do Estado, tendo em vista a desgraça de consequências daquele acto colectivo, só por terem sido rebeldes vencedores, é que não respondem pelas indignas consequências do que levaram a cabo, assim como, também se evidencia a cumplicidade nas relações entre políticos (poder constituído) e militares, prova provada, do atraso social da comunidade onde ocorreram as situações descritas, numa comunhão e protecção de interesses semelhante à que perdurava durante o regime derrubado.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13212: (In)citações (65): Salvemos o elefante africano que 40 anos depois do fim guerra volta a percorrer o corredor de migração de Gandembel, Balana, Cumbijã e Colibuía na época das chuvas!

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

Para quem não é reaccionário, já falaste bastante para o meu gosto, ó Diniz.

Claro, reaça e velho retornado me confesso!

Cherno Balde disse...

Caro amigo J.Dinis,

A tua reflexao sobre o MFA, o 25 Abril e o destino do ultramar "portiugues", do meu ponto de vista, eh ousado e bastante inovador, portanto, merece ser amplamente debatido e aprofundado.

Nao obstante, nao me parece que se tenha tido em devida conta a natureza altamente repressiva do regime em questao.

Com um abraco amigo,

Cherno Balde

Jazzebel disse...

Olá Cherno!

O meu texto assenta em diversas leituras e informações que tenho recolhido, mas não esgota pontos de vista.
Tinha duas alternativas: ou apresentava um texto repleto de fundamentação, o que se tornaria longo e, provavelmente, maçador, ou apresentava uma síntese das ideias sobre o tema. Optei por esta.
Quanto ao aspecto repressivo do regime, já aqui tenho referido alguma da legislação colonial que caracterizava um legislador ausente, ignorante da evolução social em África, e o predomínio de leis que remetiam os africanos de qualquer raça para a condição bastas vezes humilhante.
Esta situação motivava constantes reivindicações que, a par da autonomia pela orientação política, já constituíam passos firmes na direcção da autodeterminação, apesar do conjunto de políticos ultra conservadores que influenciavam e retardavam aquela evolução.
E para confrontar estas ideias tomei a iniciativa agora publicada. Espero que não encontres erros grosseiros, pelo que apoio a tua ideia de debate e aprofundamento.
Com votos de que bons tempos possam estimular, animar e desenvolver os sacrificados guineenses, envio-te um abraço amigo
JD

JD disse...

Caro Cherno,
Volto ao assunto com uma adenda interpretativa, sobre as sequelas do MFA relativamente às parcelas do território português, que viviam um período de alguns anos em crescimento económico e social,com estruturas dignas de países organizados.
Embora o caso especial da Guiné, onde a guerra mais se fazia sentir, não possa ter o mesmo significado, constatava-se ali, as populações beneficiarem de assistência médica e medicamentosa como não voltaram a ter; da erradicação da mosca tsé-tsé (ou quase); da razoavel escolaridade em boa parte do território que era de qualidade superior à que hoje se pratica; à simbíose da organização administrativa/tradicional que permitia acalentar esperanças de harmonização e desenvolvimento, e à prevista introdução de actividades económicas complementares tão necessárias à organização social - companhia de pescas e industrias agro-alimentares. Para mais, em condições de tanta adversidade.
Parece fácil de compreender, que o maior erro do MFA foi ter estabelecido uma estrutura tricéfala (JSN, Comissão coordenadora e governo), em que as partes rivalizavam, e prosseguiam diferentes objectivos, e em cada uma delas reinava a desordem e a falta de identidade entre os respectivos membros.
Por que raio acharam necessário tal modelo de governação tripartida? Porque não foram previstos, ou criados, mecanismos de correcção, na eventualidade (mais que comprovada) de desvio de resultados?
Desse desconjuntado conjunto, que também deu guarida a civis rigorosamente comprometidos com os interesses que se opunham a Portugal, ancorados em propagandas atentatórias dos interesses de pessoas e bens residentes nos diferentes territórios, resultaram variadas práticas de traição, conducentes aos resultados conhecidos, que configuram crimes contra a humanidade.
Ainda andam por aí, propalam asneiras e lançaram o país no caos e no descrédito, quais algozes sem memória das vítimas.
Com um abraço
JD

Anónimo disse...

Caro Diniz, desassombrado e lúcido
os postes sobre esta treta do mfa e a realidade do Pais.Caro António Rosinha os seus posts tem para mim um valor humano e real.E se gostarmos do País é ser reacionário como alguns dizem, então também sou reacionário.Quantos às tretas do repressivo e outras balelas que andam para aí no blogue nomeadamente dos adesivos aos donos do mfa (porque esses estão bem) será que aindam não perceberam que estamos mais colonizados que nunca e que nos quem e estão a empobrecer e a matar á fome.Eles já perceberam mas continuam com a treta do costume