sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13858: Memórias de Mansabá (34): As amêndoas da Páscoa de 1969 (Francisco Henriques da Silva)

Vista aérea do quartel de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 1 de Novembro de 2014:

Meu caros camaradas e amigos,
Por razões várias, tenho prestado uma colaboração muito irregular a este blogue (mea culpa!) que, aliás, leio sempre com interesse e debato os “posts” aí publicados com os meus amigos e ex-camaradas de armas Mário Beja Santos e Raul Albino.
Junto vos envio uma descrição de um grande ataque a Mansabá, em 3 de Abril de 1969, poucas semanas depois da minha companhia se ter instalado naquela localidade, para participar na protecção aos trabalhos da construção da estrada Mansabá-K3-Farim.
Não disponho de qualquer fotografia de Mansabá no meu arquivo e muito menos do ataque em questão.

 Com um abraço cordial e amigo
Francisco Henriques da Silva
Ex- alferes miliciano de infantaria, C. Caç. 2402 (Có, Mansabé e Olossato), 1968-1970
Ex- embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)


MEMÓRIAS DE MANSABÁ

34 - As amêndoas da Páscoa

A 3 de Abril de 1969, Quinta-feira Santa, pelas 11 da noite, dá-se o grande ataque ao quartel de Mansabá, em que o grupo de combatentes inimigos devia ser superior a 120 elementos, armado com canhões sem recuo, morteiros de 82mm, metralhadoras pesadas, para além do armamento ligeiro habitual (Kalashnikovs, “costureirinhas”, RPG-2 e RPG-7, morteiro de 60mm, etc).(1)

A intensidade de fogo nos primeiros minutos, para além do efeito surpresa, impediu toda e qualquer reacção da nossa parte. Os rebentamentos incessantes faziam-se ouvir por todo o lado e percebia-se que tinham atingido a maioria das instalações militares.

No que me respeita, tinha acabado de fechar a luz, depois de passar os olhos, como era meu hábito, por um livro qualquer, porque no dia seguinte era dia de trabalho (ou seja, de protecção aos trabalhos em curso na estrada Mansabá-Farim), quando começou o fogachal. Encontrava-me num edifício constituído por um renque de pequenos apartamentos térreos, no enfiamento da pista de aviação, portanto num local completamente aberto e exposto ao fogo do inimigo, que estava, na prática, a fazer tiro de pontaria ao casario com, pelo menos, um ou dois canhões sem recuo e duas metralhadoras pesadas, para já não falar dos lança-rockets e das armas ligeiras que disparavam ininterruptamente. A cadência de fogo era, pois, de uma enorme violência. As coisas complicavam-se. As balas sibilavam em várias direcções. Os rebentamentos persistiam. Agarrei na G-3 e nas cartucheiras, vesti apenas a camisa do camuflado. Creio que uma bala terá trespassado a rede de mosquiteiro da janela indo alojar-se na parede. As coisas estavam a ficar feias. De xanatos e, em cuecas, corri para o quarto de banho, uma pequena dependência, nas traseiras, com uma parede de separação. Preparei-me para o pior, porque a violência do tiroteio e das explosões não abrandava. No quarto propriamente dito eu estaria demasiado exposto e o fogo vinha precisamente do fundo da pista, mesmo em frente. As balas de uma “pesada” iam quebrando as telhas do meu quarto mesmo por cima da minha cabeça. Um rebentamento muito próximo – fiquei momentaneamente surdo - dava-me a entender que uma canhoada ou morteirada devia ter destruído um dos apartamentos vizinhos. Se acaso os guerrilheiros tentassem entrar nas instalações, eu dispunha pelo menos da G-3 e de 5 carregadores para me defender. Tive a nítida sensação de que podiam tentá-lo. Não se atreveriam a tanto, ficava para a próxima... Quem sabe?

 Quartel de Mansabá - 1-Quartos dos Oficiais; 2-Edifífo do Comando: 3-Messe dos Oficiais

Será que tive medo? Não, creio que não tive, ou seja, o medo emocionalmente paralisante e que inibe o raciocínio, a decisão e a acção, mas também não podia iludir o sentimento de espanto, bem como, a veemência inicial do ataque, que atingiu proporções inusitadas. Por outro lado, também não terei tido aquela sensação habitual da entrada em combate, aquele nó na garganta, a boca seca com um gosto amargo, aquela sensação indizível de que ia começar um jogo incerto, mas que de algum modo o podia controlar, pelo menos na parte que me tocava Aqui não, estava só, literalmente só. Valia apenas por mim. Era tudo.

Entretanto, o fogo inimigo abrandou, enquanto se encetava a resposta do nosso lado, tímida e lenta, primeiro na base de morteiro 81 e uns largos minutos depois com as peças de artilharia. O tempo de reacção da nossa parte foi demasiado arrastado, o que permitiu ao IN actuar com total à-vontade. Tendo o fogo do exterior abrandado, corri para um abrigo situado na extremidade da fiada de apartamentos. Ouvi uma mulher a chorar e também o que me parecia ser o choro de uma criança. Devia ser família de algum dos engenheiros civis. Passei em corrida. Trazer mulheres e crianças para a guerra!?! Francamente...

Bati à porta, energicamente e com alguma impaciência.

- Oh, minha senhora, saia daí. É melhor refugiar-se no abrigo. É mais seguro – gritei-lhe cá de fora, agachado junto a um pequeno muro de resguardo, que a bem dizer não protegia nada, porque choviam balas tracejantes por todos os lados que iam iluminando o céu estrelado.

Noutro apartamento ao lado, alguém acendeu uma luz. Crispado, já com os nervos à flor da pele, vociferei não sei muito bem para quem:

- Desligue lá essa m... imediatamente, senão ficamos aqui todos! Não vê que isso chama a atenção?

No final da fiada de casas, lá estava o abrigo. Entro e ponho logo os pés numa quantidade infinda de fezes humanas, os meus xanatos de quarto para nada serviram. Fiquei sujo quase até aos joelhos. Os nossos bravos soldados, jamais prevendo que pudessem ser alvo de um ataque, tinham transformado o abrigo em retrete colectiva!

Não estava ali viv’alma. Enfim, para que é serviam os abrigos? Boa pergunta. Uma metralhadora lá para o fundo da pista ainda estava activa. Disparei inutilmente três ou quatro tiros, naquela direcção, porém sem qualquer convicção. O certo é que não estava a fazer nada e, entretanto, o fogo tinha amainado consideravelmente, ouvindo-se apenas tiros isolados e uma ou outra rajada. Passei pelo quarto, vesti uns calções, corri então para a parada em direcção a um dos barracões onde estavam instalados os meus homens. De caminho, vi 3 ou 4 feridos, de outras unidades, um jazia numa poça de sangue a contorcer-se com dores, um outro coxeava e tinha um braço ensanguentado, mais longe perto do abrigo do morteiro 81 alguém jazia prostrado no solo, sem dar sinal de vida (Morto? Ferido? Sei lá...). Enfim, não parei. Havia gente a correr por todos os lados e ainda se respondia ao fogo.

Entro no barracão, onde estariam os meus homens e gente da minha companhia. Pergunto de chofre:
- Temos muitos mortos e feridos?

Não era um dos meus soldados, mas pertencia à C.Caç. Respondeu-me:
- Feridos há alguns, meu alferes. Mortos creio que não, mas nas outras companhias parece que morreu gente.

Os enfermeiros e maqueiros corriam de um lado para o outro. Alguns feridos pareciam necessitar de evacuação urgente, porque aparentavam ferimentos graves. Com grande parte dos edifícios atingidos (quase todos), foi um milagre não se terem verificado mais vítimas. Para tal bastaria uma canhoada em cheio numa das casernas. Procurei o nosso capitão. Estava de serviço, mas não o encontrei.

Num abrigo de pequenas dimensões, perto da messe de oficiais e da torre de transmissões, vi o comandante de batalhão, deitado numa cama a olhar para o tecto, com um ar inquieto.

- Há muitos feridos e mortos? – perguntou-me.
- Alguns, meu comandante, alguns, ainda não se sabe ao certo quantos.
- Então, têm de ser evacuados – concluiu
- A esta hora e nestas condições não creio que seja possível - repliquei.
- Você está todo enlameado – interrompeu ele, mudando de assunto e olhando para as minhas pernas.
- Não é bem lama, meu comandante. Como sabe, estamos na estação seca. É outra coisa. Com sua licença...

Dei meia volta. Creio que não se apercebeu, nem sequer pelo olfacto, do meu estado real de sujidade, nem, tão-pouco, das razões para tal.

Foto 1 > Mansabá > Alguns dos feridos esperando evacuação para Bissau

O capitão que encontrei um pouco mais tarde disse-me que o comandante de batalhão havia solicitado apoio aéreo, o que era uma asneira, pois a aviação já nada podia fazer àquela hora, uma vez que a “guerra” tinha, de facto, acabado, nem actuava em plena escuridão. Seguiu-se uma noite sem pregar olho a cuidar dos feridos, a contabilizar os homens, a verificar os estragos e à espera de ordens. A população civil da tabanca e os trabalhadores da obra tinham sido duramente atingidos, mais do que a própria tropa, e registavam-se vários mortos e feridos entre eles, para além de inúmeras moranças incendiadas.

Os comandos lá conferenciaram entre si e deram-me por missão, bem como a outros grupos de combate da minha companhia, de efectuar um reconhecimento, logo ao raiar do dia, pelos presumíveis locais de instalação do inimigo, designadamente pela pista de aviação e região circunvizinha. Verificámos dois ou três factos curiosos: antes do mais, era extremamente difícil, à primeira vista, determinar os ditos locais, uma vez que, contrariamente ao que era usual, não se viam invólucros pelo chão; em segundo lugar, os trilhos de aproximação tinham sido apagados com ramos de árvores, que nos impediam de determinar com algum grau de certeza os rodados das armas pesadas (muitas, como viemos a saber mais tarde, foram previamente desmontadas e transportadas a ombro por carregadores – técnica que era também utilizada, como se sabe, na guerra do Vietname) e as próprias pegadas do grupo inimigo; em terceiro lugar, as posições dos canhões sem recuo e dos lança-rockets só se conseguiam detectar pelas ervas queimadas ou pelos vestígios de pólvora no solo; finalmente, o terreno, vasculhado a pente fino, não estava minado, o que, felizmente, contrariava as nossas piores expectativas.

Na Sexta-feira Santa, pouco depois de terminado o nosso reconhecimento no terreno, desembarcado do helicóptero para se inteirar do que se havia passado e dar algum alento às tropas, lá estava o inefável “Caco” Baldé. Uma das alcunhas porque era conhecido, à época, António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné. Baldé é um nome comum entre as etnias fula e mandinga e “caco” pelo facto de usar monóculo. Mostrou-se insatisfeito com o comportamento do comandante de batalhão.

Foto 3 > Mansabá > Um dos edifícios atingidos
Fotos: © Raul Albino

Uns dias mais tarde, por ordem do “hómi garandi da Bissau”, é lançada uma grande operação de retaliação na mata do Morés com pára-quedistas que, para além de terem infligido algumas baixas ao inimigo e de capturarem numeroso material de guerra, descobriram um mapa com a localização exacta das instalações militares e civis de Mansabá, com as medições em passos aferidos da localização das diferentes construções existentes e com indicação precisa das actividades que ali se desenvolviam. Ora, aí estava uma das explicações para a constante fuga de capinadores e de trabalhadores que, aliás, continuavam a circular, como sempre, sem quaisquer restrições, dentro do quartel. As deficiências da nossa intelligence foram mais que notórias, sem falar, evidentemente, das patentes falhas da segurança, que carecem de adjectivação adicional e que, aliás, continuavam.

Depois disto, Spínola, incumbiu-nos de nova missão: o Olossato, do outro lado da mata do Morés, onde iríamos terminar a nossa comissão de serviço.
____________

Notas do editor:

(1) Vd. poste de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13457: Memórias de Mansabá (33): No dia em que morri (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

12 comentários:

Anónimo disse...

Caro camarada F.H.Silva

Foram completamente apanhados com "as calças na mão"..rotina..rotina..e alguma incúria..levou a isso.

Quem esteve em zonas mais quentes..ou melhor, em zonas onde não era possível essa rotina..o efeito surpresa do IN..não era praticável..é que estávamos sempre em alerta.

Um alfa bravo

C.Martins

Anónimo disse...

Caro Francisco Silva:
Achei muito interessante o teu relato, a tal ponto que a minha curiosidade me leva a perguntar-te o seguinte: Dizes que, "no final da fiada de casas, lá estava o abrigo. Entro e...".
Que abrigo era este?!... Uma vala, simplesmente, ou uma qualquer construção?!... É que, mais à frente, vais encontrar "os teus homens que estão instalados num barracão" e, além disso, a propósito do comandante, senhor comandante, aliás, vais encontra-lo "num abrigo de pequenas dimensões,... deitado numa cama a olhar para o teto...".
Não te importas de me dar esta pequena ajuda na reconstituição da "coisa"?... É que, como sabes, o tipo de abrigos variava de quartel para quartel e eu gostava de poder fazer uma ideia tão próxima quanto possível da realidade relativamente à forma como Mansabá estava organizada a tal respeito.
Já agora, vou confidenciar-te algo: Após uma primeira leitura (apressadíssima, como sempre, para as primeiras impressões) do teu excelentemente recheado relato, fiquei com a ideia de que a tua tropa se tinha borrado toda com o fogo inimigo, o que me levou a gargalhar até às lágrimas, para logo me interrogar: "Espera aí, para isso, teriam que arriar primeiro as calças. Não pode ser, foi precipitação minha, deixa lá ler de novo e agora com a devida atenção!". É claro que, segundos depois, concluía que, afinal, o dito abrigo se tinha, de há uns tempos a essa parte, transformado em latrina colectiva. E, como pudeste constatar, na hora da verdade, nenhum dos utentes se foi lá meter.
Mário Migueis

Anónimo disse...

Caro Francisco Silva:
Considerando a extensão do meu "comentário" anterior, mais virado para o lado cómico da situação, era minha intenção ficar por ali. Porém, ao rever, uma vez mais, as imagens publicadas, não posso deixar de reforçar a referência do C. Martins à incúria e/ou impreparação de alguns daqueles que tinham a enorme responsabilidade de responder pela segurança das suas tropas e das populações sob a sua custódia, incúria e/ou impreparação essas cujas funestas consequências aqueles corpos estendidos sobre as macas por demais representam, sem necessidade de qualquer legenda.
A aparente facilidade com que o IN, em tão grande número e com várias armas pesadas "às costas", tanto se aproximou das instalações das NT sem ser detectado, faz supor termos estado em presença de um desses casos de negligência ou grosseira ignorância quanto às medidas de segurança que se impunham.
Mário Migueis

Anónimo disse...


A certa altura, caro Francisco Silva, referes que, finalmente e de um modo algo tímido, lá acabamos por reagir, primeiro com morteiro 81 e, a seguir, com "as peças de artilharia". Importaste-te de informar quantas e que tipo de peças?... E, ainda assim, o IN, com tanta gente empenhada no ataque e com tanta "tralha às costas", conseguiu retirar incólume?!...
Mário Migueis

Carlos Vinhal disse...

Caros C. Martins e Mário Migueis.
A coisa toca-me de perto pois estive em Mansabá 22 meses, alguns dos quais só com a minha Companhia e o Pel Caç Nat 57.
Que me lembre só uma vez tivemos um ataque semelhante ao que descreve o camarada FH da Silva, e curiosamente na situação análoga de reinício da construção da estrada Mansabá-Farim, no meu tempo o troço final, de Bironque até ao Rio Cacheu.
Quando falam em incúria, devem tentar perceber que Mansabá não tinha nenhuma protecção natural. Havia uma pequena bolanha a sudoeste que não era impeditiva de que fôssemos atacados de qualquer um dos pontos cardeais. Havia bases IN em redor, não esquecendo o impenetrável, no meu tempo, Morés. A minha companhia tinha que assegurar a defesa do quartel, participar nas operações a nível do Batalhão de Mansoa (2885), patrulhar a nossa zona de acção que compreendia: no eixo norte-sul desde o Bironque até meio do caminho entre Mamboncó e Cutia, e no eixo leste-oeste de Manhau até para além de Mansodé. Veja a Carta de Farim. Fazíamos colunas quase diárias entre Mansabá e Mansoa, assino como para Norte para o K3. Foi incúria termos perdido dois homens numa emboscada em Mamboncó, no chamado corredor da morte?
Quase não havia noite que não fizessemos emboscadas nocturnas e não havia dia em que não saíssemos para o mato.
Mesmo com o quartel a abarrotar de gente, Comandos, Páras e outros reforços, éramos atacados à distância com armas pesadas e até foguetões. Incúria?
Caro C. Martins, o sítio onde cada um de nós esteve foi sempre o mais perigoso. Não estou a confundir com condições, que aí Mansabá marcava pontos.
Abraço
Carlos Vinhal
Fur Mil
CART 2732

Carlos Vinhal disse...

Já agora e para ser mais explícito.
Quando se reiniciou a construção do troço final da estrada para Farim, Mansabá foi reforçada com uma Compnhia de Comandos (a 27.ª), CAÇ PARAS 122 reforçada com 2 Pel/CCAÇ 121. Tínhamos 1 SEC MORT 81 reforçada e obuses 8,8 (3 se não erro). Ainda tínhamos connosco o Pel Mil 253 que fazia parte da guarnição normal.
Destaco, porque me esqueci no comentário anterior, que a CART 2732 participava activamente com um pelotão na protecção da frente de trabalhos, apesar de ter de assegurar todo o apoio logístico às tropas instaladas em Mansabá que não tinham meios autos próprios.
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Olá Vinhal!
Acabas de me pregar um susto do caraças!... Quando vou aos "comentários" e deparo com a foto daquele "bravo do pelotão", com ares de me querer puxar as orelhas, quase me dá uma coisa: "Ai, que já vou levar na cabeça!... Quem me manda meter onde não sou chamado!..."
Bom, regularizadas as batidas cardíacas com umas inspirações bem medidas, comece-se por dizer que não há como comentar ou pedir esclarecimentos para se fazer luz sobre o que mal iluminado possa estar. E dita esta evidência, que é também verdade absoluta, impõe-se, agora, que se refira o seguinte:
Pela parte que me toca, caro Vinhal, se reparares bem - e deves tê-lo feito, porque, afinal, não me estás a acusar de nada - eu não digo taxativamente que houve incúria por parte de quem comandava, mas tão só que "A aparente facilidade....., faz supor termos estado em presença de um desses casos de negligência...". Ora, agora, cá estás tu, com a tua nobreza de caracter, a chamar a atenção para certos aspectos que, obviamente, eu desconhecia e que podem explicar, senão toda, pelo menos parte da minha estranheza.
Temos, então, que Mansabá - andei por longe - não tinha nenhuma protecção natural, podendo ser atacado(a) "de qualquer dos pontos cardeais". Confirmas, então, que não havia condições para, através dos meios normalmente utilizados (patrulhamentos e emboscadas nocturnas, colocação de minas e armadilhas, prévio ajustamento de tiro curvo e directo de armas pesadas para os acessos prováveis, etc)*, assegurar de modo satisfatório a defesa do aquartelamento e da população civil?!... Claro que, relativamente ao ataque "à distância com armas pesadas e foguetões" não estaria nas nossas mãos impedi-los de nos bombardearem, mas o que eu não consigo é imaginar-me num aquartelamento, onde o IN tem francas possibilidades de, com grupos numerosos e equipados com armas pesadas, chegarem, sem serem detectados, a uma proximidade tal que lhes seja permitido fazer tiro directo ou de pontaria com (passo a citar o Francisco Silva)"armas pesadas (muitas, como viemos a saber mais tarde,...)", designadamente com canhões sem recuo (já não falo dos - continuando a citar - "morteiros e 82 mm, metralhadoras pesadas, para além do armamento ligeiro habitual (kalashnikovs, costureirinhas, RPG-2 e RPG-7, morteiro de 60 mm, etc"). Repara que o Francisco Silva refere a certa altura que estava "... exposto ao fogo do inimigo, que estava, na prática, a fazer tiro de pontaria ao casario com, pelo menos, um ou dois canhões sem recuo e duas metralhadoras pesadas, ..."
E, que me dizes ao facto de o Francisco Silva ter ido encontrar "o comandante deitado na cama a olhar para o tecto", sem se ter inteirado ainda sequer sobre as baixas sofridas durante o ataque ?!... E que comentar ao facto de este ter pedido apoio aéreo às onze da noite ou um pouco depois?!...
Não quererá isto dizer, no mínimo, impreparação para o exercício das funções em que fora investido?!...
Estes meus comentários, esta minha perplexidade, ao constatar aqui - como lá, no próprio TO, tive oportunidade de o fazer, não raras vezes - certas e graves incapacidades por parte de parte daqueles que nos comandavam aos mais diversos níveis, não têm propriamente um sentido acusatório, um sentido denunciador, pelo menos em relação a esses nossos camaradas que, exercendo superiores funções de comando, mais e melhor não fizeram porque para tal não tinham naturais capacidades e/ou não reuniam as condições de formação militar a que o exercício de tão responsáveis cargos obrigava. Muitas milhas marítimas - e das outras, também - nos separavam, certamente, dos grandes culpados, que é como quem diz daqueles que nos lançavam autenticamente às feras, recusando-se a admitir que os trilhos até então utilizados estavam por demais gastos e minados, havendo que arrepiar caminho e procurar uma nova via para a solução do conflito.
Tenho dito.
Mário Migueis

* - não é a voz de nenhum especialista na matéria.

Carlos Vinhal disse...

Caro Migueis
Não pela descrição do camarada FH da Silva, mas sobre o mesmo ataque, pela do camarada Raul Albino, a companhia deles estava há dias em Mansabá e quase desconhecia os locais onde se deviam abrigar em caso de ataque. Não me lembro onde era o abrigo dos oficiais, só de que me arrepiava a localização dos quartos deles, mesmo no enfiamento da pista numa zona sem protecção.
Nós evitávamos montar minas e armadilhas nas imediações de Mansabá por causa da população que se deslocava para as suas plantações de mancarra, exploração de óleos e vinho das palmeiras, etc. Também cultivavam arroz na tal bolanha de Mansabá. Um civil, o senhor José Leal explorava madeira nas imediações. Como disse anteriormente, só uma vez o IN esteve, no nosso tempo, perto do arame (12NOV70) com o quartel cheio de tropa. Os nossos obuses estavam regulados e faziam fogo regularmente para os locais habituais de aproximação, assim como em caso de ataque ao aquartelamento. Os nossos morteiros 81 estavam também operacionais. Tínhamos ainda metralhadoras pesadas em pontos estratégicos à volta do quartel.
A defesa do quartel e população era problemática atendendo à sua área e à população civil que era em bastante número. Não havia destacamentos em volta, os nossos vizinhos mais próximos estavam, a sul, em Cutia a 15/20 quilómetros de nós. Para norte, só no K3 para aí a 30 quilómetros. Estou a calcular a olho e a aredondar as contas.
Uma coisa reafirmo, a CART 2732 não podia ter feito mais.
Abraço
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Caríssimo camarada C.Vinhal

No meu comentário,refiro "rotina e alguma incúria"..obviamente, só baseado nos factos relatados.

Concordarás que em situações como a esta.. raramente atacados..a rotina diária leva a facilidades e ao consequente efeito surpresa do IN.

A responsabilidade do dispositivo de defesa seria sempre do Sr.Comandante e não dos quadros intermédios..alferes e furriéis.

Tinham obuses 8,8 e como sabes podiam e deviam fazer tiro directo..se estivessem devidamente enquadrados e com pelo menos uma secção em prevenção..se nos postos de sentinela estivessem pelo menos dois soldados e se estes estivessem guarnecidos com uma metralhadora pesada..etc.etc..

Provavelmente nada disto acontecia devido à tal rotina e incúria do responsável "deitado na cama a olhar para o tecto"..diz tudo sobre a sua capacidade de comandar.

Resumindo..foram apanhados de surpresa.."de calças na mão"..foi um facto.

Um alfa bravo

C.Martins

Unknown disse...

Vou responder a algumas das perguntas, mas, desde logo, remeto os meus amigos para o livro autobiográfico que irei publicar no 1º trimestre de 2015 em que o ataque a Mansabá é relatado com mais alguns pormenores e os alegados problemas da incúria e desorganização naquele quartel são igualmente tratados. Faço minhas as palavras do C. Esteves Vinhal. É difícil falar em incúria, pura e simples. Mansabá era um alvo estratégico para o PAIGC e a construção da estrada Mansabá-Farim uma questão fundamental para a política do gen. Spínola. Logo, as flagelações e os ataques eram frequentes e inopinados. Além disso, a implantação de minas era terrível. Recordo-me que numa manhã os sapadores, exaustos, já tinham levantado 19 e a 20ª estava destinada ao major responsável pelas operações, que ficou sem uma perna ao saltar do jipe (aliás, também descrevo o incidente).
Remeto-vos igualmente para o relato do meu camarada e amigo Raul Albino que estava lá na mesma ocasião e que complementa a minha descrição.
Ora bem, no final da fiada de casas, no enfiamento da pista de aviação, na direcção Poente (creio eu) encontrava-se um abrigo, uma construção cimentada, com toros de madeira e com uma protecção de bidons. É tudo o que me lembro. Já lá vão uns anos e a minha passagem por Mansabá resumiu-se a pouco mais de um mês.
Quanto ao comandante estava numa dependência pequena perto do posto de rádio e a uma curta distancia da messe. Não era um abrigo, estilo "bunker" mas uma dependência com paredes de alvenaria e cimento, portanto um pequeno quarto que conferia protecção relativamente adequada a quem lá se encontrasse. O sermos apanhados com as "calças na mão." É verdade, mas o problema era essencialmente dos comandos e não dos subalternos, sargentos e praças. Aliás, o comandante foi destituído pelo gen. Spínola no dia seguinte ao ataque e não vou pôr mais na carta , por ora. Logo a seguir, a minha companhia foi transferida para Olossato, onde terminámos a comissão. Os soldados estavam num barracão sem protecção, mas com abrigos na vizinhança. Resta acrescentar que a minha companhia chegou a Mansabá em duas fases: 2 grupos de combate uma ou duas semanas antes deste ataque e os restantes praticamente nas vésperas do mesmo, como, aliás, salienta, a justo título, o Raul Albino.
Remeto-vos também para o relato do C. Esteves Vinhal que a meu ver é bastante exacto quanto à exposição de Mansabá a eventuais ataques.
O problema da não realização dos patrulhamentos nocturnos "para não cansar os homens" permitiu a aproximação do IN.
Existem sempre duas ou mais versões sobre o mesmo assunto, o que relatei é a minha versão, tal como a vivi.
Para quem estiver interessado, já vou no meu 3º livro sobre a Guiné, diferentemente dos anteriores este assume um carácter autobiográfico e mais inimista. Os anteriores foram "Crónicas dos (des)feitos da Guiné" (centrado na guerra civil de 98-99), "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro", de pareceria com o nosso camarada e amigo Mário Beja Santos.
Abraços
Francisco Henriques da Silva

Anónimo disse...


Resumindo e concluindo (sem estar a encerrar o debate, claro - quem sou eu?...), meus caros Francisco Silva e Carlos Vinhal, a minha perplexidade e a aludida incúria por parte do nosso querido amigo C. Martins tinham toda a razão de ser. Ou seja, se outra coisa houve que não incúria, foi, para o General Spínola, razão suficiente para destituir o comandante logo no dia seguinte (fico a perguntar-me se a companhia de "piras" não foi tocada para o Olossato pelas mesmas razões, embora concorde com O Francisco Silva, quando este refere que o problema era essencialmente dos comandos e não dos subalternos, sargentos e praças).
Como já tive oportunidade de referir, a falta de aptidão natural e/ou deficiente formação militar de certos comandantes (normalmente, de capitão para cima) não era tão rara como seria desejável. Era o que tínhamos... Valha-nos a consolação de termos tido também a oportunidade de conhecer/lidar com o outro extremo, isto é, com comandantes e chefes de elevado gabarito, milicianos e profissionais incluídos.
Mário Migueis

Cesar Dias disse...

Carlos Vinhal
Como te deves lembrar, também estive lá em 12 de Novembro, recordo-me que naqueles dias havia muita actividade naquele quartel,tinham chegado muitas tropas para protecção á estrada, como dizes entre elas a 27ª e a 122, e ainda as Panhards, que deram uma grande ajuda nesse dia. Mas em minha opinião, o IN só chegou tão perto (estiveram ao fundo da pista ) porque havia demasiada confusão com a chegada das tropas, e foi descorada a defesa do quartel, pois o reconhecimento feito á posteriori, mostrou que até camas de capim tinham junto aos locais onde instalaram as armas pesadas. A minha memória já vai falhando, mas quando leio qualquer coisa relacionada com situações que passei, por vezes faz-se luz.
Um abraço
César Dias