segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P13988: Notas de leitura (655): Apresentação do livro "O Concelho de Fafe e a Guerra Colonial (1961-1974)", dia 12 de Dezembro de 2014, pelas 21h30, na Sala Manoel de Olivera, em Fafe (Beja Santos)

CONVITE PARA O LANÇAMENTO DO LIVRO "O CONCELHO DE FAFE E A GUERRA COLONIAL (1961-1974), A LEVAR A EFEITO NO PRÓXIMO DIA 12 DE DEZEMBRO DE 2014, PELAS 21H30, NA SALA MANOEL DE OLIVEIRA, EM FAFE.
A APRESENTAÇÃO SERÁ FEITA PELO NOSSO CAMARADA MÁRIO BEJA SANTOS QUE TAMBÉM PREFACIOU A OBRA.





Fafe na luta contra o esquecimento

Prefácio de Mário Beja Santos

A obra “O concelho de Fafe e a guerra colonial (1961-1974)”, com a chancela do Núcleo de Artes e Letras de Fafe, é uma iniciativa exemplar: destas paragens partiram para três teatros da guerra africana mais de 1500 jovens, houve vidas ceifadas e vidas destroçadas, há mágoas insanáveis, há ainda memórias em carne viva, para muitos há uma guerra ou um tumulto que adormece com intermitências, sucedem-se, inopinadamente, rebentamentos e gritos de feridos que vão e vêm, e que deixam sofridos, stressados, não poucos desses combatentes, repercutindo-se esta dolorosa agitação nas suas famílias.

Fafe, ao longo destas últimas décadas, evoca-os com tocante dignidade, e mediante várias iniciativas ímpares. O documento agora à disposição do público, e de que fui cumulado com a honra de apresentar, congrega diferentes intervenções dentro de um curso livre de história local. O leitor passa a ter à sua disposição olhares de gente da terra que se irá debruçar sobre o contexto internacional em que fermentou, se preparou e desencadeou a guerra de guerrilhas em Angola, Guiné e Moçambique. O que aqui se escreve é fidedigno, probo, irrefutável. Esse mesmo leitor estremecerá quando vir partir estes jovens mal preparados e até profundamente desconhecedores dos lugares para onde são levados. Tudo fica sumariamente explicado desde os centros de instrução, a formação de batalhão, a existência de uma unidade mobilizadora, as rendições individuais, a chegada a África, o ponto de partida para a viragem de um jovem em adulto, porque todos aqueles teatros mexeram com a gente, mudaram a gente: na abnegação e na solidariedade; a cuidar da solidão e a gerir saudades; a descobrir a liderança e o sentido das responsabilidades com a vida dos outros em jogo; a ver a morte de perto e a engolir as lágrimas; por causa desta guerra se sulcaram dimensões imprevistas, desde a higiene e os cuidados com o corpo, até às novas dimensões do que é essencial e secundário nas nossas escolhas, e para todo o sempre.

O que prontamente me impressionou foi constatar que este minucioso estudo local tem foros de universalidade, há ali dimensões do país todo, aqueles testemunhos, aqueles relatos de operação são genuinamente portugueses, apesar de todos nós termos um apodo local: o Setúbal, o Xabregas, o Açoriano… Um estudo onde há mortes em combate e por acidente, heróis e desaparecidos, moribundos que não se deixam em terra de ninguém, há gente que se atira ao rio para salvar o camarada; há filhos nascidos de relações espúrias ou paixões assolapadas. Estão ali os fafenses, estão ali todos os portugueses que combateram em todas as paragens africanas. Igualmente interessante é o estudo da imprensa, uma análise cuidada, estão ali as mensagens de exaltação nacionalista, saídas de professos como houve em tanta imprensa nacional e regional daqueles tempos, como se vai ler noticiário de partidas e chegadas, com crónicas de militares e variadas peças literárias.

Alguns autores fazem depoimentos circunstanciados sobre as suas comissões, lendo-as, dei comigo a pensar sobre o que tenho refletido acerca de literatura da guerra colonial. E como há um estudo cativante neste livro sobre as memórias literárias na guerra colonial, convocando fafenses, permito-me dissertar sobre a importância desta literatura que procuro dedicadamente estudar há alguns a fio, vazando para este espaço o que penso sobre esta corrente nascida com o desencadear das hostilidades e que só desaparecerá quando se finar o último combatente da guerra colonial.

Primeiro, é um fenómeno literário irradiante, abarca romance e conto, memórias, ensaio, poesia, reportagem, história e diários. Nela debutaram e aprimoraram o seu talento escritores inesquecíveis como Álvaro Guerra, João de Melo, José Martins Garcia, Lídia Jorge ou António Lobo Antunes. Há centenas e centenas de títulos e agora, que estes plumitivos estão na reforma, estes ex-combatentes escrevem torrencialmente. De um modo geral, escreve-se uma vez e fica tudo dito, é o que eu chamo o primeiro e último regresso. Há casos excecionais de reincidência, como Armor Pires Mota que escreveu Tarrafo em 1965 e continua a escrever, parece que nunca mais deixou a Guiné.

Segundo, é um subgénero literário que possui uma marca própria, o que se escreve sobre a Guiné não é coadunável com Angola e Moçambique. É que as guerras não são só emoções, podem ter ficado nas memórias tiros e rebentamentos, o medo das minas, a fúria das emboscadas, mas os “inimigos” tinham localização e natureza diferenciadas, todos estes palcos de guerra eram intransitáveis. Tenho lido livros sobre Angola em que há caminhadas sobre montanhas, viagens de centenas de quilómetros, pode haver parecenças com Moçambique, absolutamente impossível com a Guiné. Transcrevo o que já escrevi: “Atenda-se ao relevo da Guiné, com os seus pântanos e onde cresce uma vegetação eriçada, um temível obstáculo para quem queria progredir a partir de uma lancha, para se internar rapidamente na mata; havia aquelas marés que até enganavam os profissionais, aquelas distâncias aparentemente curtas que se tornavam em infindáveis marchas onde até os guias se perdiam e os azimutes falhavam. Os palcos de guerra têm todos a sua identidade e a Guiné é este tarrafo, os poilões, os lagartos à espreita nas bermas das águas barrentas de cursos de água sem nascente; a Guiné tem o seu crioulo, os seus tornados, o seu macaréu, na Guiné se encontrava a lepra e as mais terríveis doenças tropicais. E, acredite-se ou não, o combatente do PAIGC tinha uma vontade indómita, era corajoso e com bravura enfrentava essoutros combatentes que não lhe voltava as costas”.

Terceiro, como em tudo na vida, este subgénero literário está marcado pelo tempo e o espaço. Nos anos 1960, era uma literatura de exaltação patriótica, de glorificação do esforço do soldado português; na década de 1970, com discrição antes do 25 de Abril e às escâncaras com a democracia, começaram os libelos acusatórios, apareceram peças ímpias ou truculentas; nos anos de 1980 e daí em diante a escrita parece que serenou, mesmo a ficção ganhou vincos memoriais. E escreveram-se memórias de toda a ordem e feitio, do punho de gente de todos os ramos das Forças Armadas. Um pouco à margem, publicaram-se documentos históricos como aqueles que foram assinados por João de Melo, Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, José Freire Antunes. Agora a escrita parece mais desinibida, parece que a memória está menos recatada, mas há uma extrema necessidade de pôr a pratos limpos a experiência avassaladora que se quer comunicar. Exemplifique-se com uma passagem de um livro importante, As Ausências de Deus – No Labirinto da Guerra Colonial, de António Loja (Âncora Editora, 2.ª edição, Abril de 2013):  
“Não teve tempo de dizer-me que havia uma mina na picada porque, na certeza enganosa de que o terreno que antes calcara estava livre, colocou o pé sobre outra, já tinha passado sem notar e que explodiu com violência. Mamadú ficou desfeito, literalmente, em pedaços espalhados pela picada e escorrendo derrames das árvores; e Abdulai, que vinha logo atrás, foi apanhado por um estilhaço que o atingiu na parte superior do tórax. Deu dois passos na minha direção, dizendo: 
- Ai, meu capitão! Meu capitão! - De um buraco abaixo da clavícula jorrava, a cada batida do coração, um repuxo de sangue que me atingiu a cara, os óculos e me escorreu para o nariz e para a boca. Sustentei-o debaixo dos braços e pousei-o devagar sobre as folhas das árvores, no meio da picada, enquanto toda a companhia assumia posições de defesa. Nunca consegui esquecer o sabor do sangue ainda quente e o cheiro adocicado e logo nauseabundo que me invadiu as narinas. Disse-lhe uma mentira piedosa:
- Vem aí o enfermeiro. Vais ficar bem! Já mandei vir o helicóptero…
Espero que ele tenha acreditado, nos breves segundos que levou a morrer. Só que na morte não há breves segundos. É um tempo sem relógio. É toda a eternidade de um fim que parece nunca chegar. Morreu a esvair-se em sangue que ninguém poderia estancar. O que recordo com horror é a minha reação seguinte: ainda ajoelhado junto dele, inclinei-me para o lado e vomitei, de um modo incontornável, ali a dois passos do cadáver do meu camarada”.

Quarto, esta literatura é tão ou mais importante que os relatos das operações, as histórias das unidades militares, os ensaios interpretativos de toda a índole. Constituída, em grande parte, por edições de autor, e sem grandes pretensões de chegar ao grande público, acolhe testemunhos soberbos de oficiais, sargentos e praças. Um dos autores do livro observará: “A guerra não acaba. Fica em nós até ao nosso fim. E fica a obrigação de nos reconstruirmos e ensinar o que aprendemos, de tentar encontrar uma virtude e um sentido para a vida”. E lendo os poemas dos combatentes de Fafe leio toda a poesia que chegou a esta metrópole por aerograma ou carta, enviada à mulher ou à noiva ou a familiares, e que parece ser fado militar, acima de qualquer patente, são homenagens aos mortos, lembranças à mãe que está longe, por vezes versos de desalento. São narrativas de circunstância, tal o choque daquela mina ou daquela emboscada. E há os reencontros, na justa medida em que estes militares teimam em ver-se, reúnem-se anualmente de Norte a Sul do país e em momentos mais solenes como o cinquentenário da CCAV n.º 587, que ficou inoperacional ao fim de um ano de combate, tantos foram os mortos e os feridos. E li com emoção neste documento o que escreveu Parcídio Summavielle, que não vejo há tanto tempo e de que guardo apreço e admiração, a propósito deste meio século daquela unidade militar devastada, algo que vai de Fafe para o país inteiro e que nos convida a continuar a trilhar a pesquisa, a acumulação de testemunhos e o render de homenagem a quem parece destinado ficar numa nota de rodapé na história de Portugal:
“Durante dois longos anos aprendemos a saber como e quanto é desgastante viver a incerteza e a incógnita do amanhã! A vida jogava-se numa roleta quase diária, numa angústia de nervos à flor da pele, numa esgotante luta contra o medo. Mas havia que resistir, que tudo fazer para, ao fim do dia, poder riscar mais um dia no calendário (…). Lá longe, aprendemos também o valor incomensurável da chegada do correio, do refúgio da sua leitura, da importância desse laço que, por instantes, nos unia ao mundo a que tínhamos sido arrancados. E, impotentes, aprendemos ainda a iniquidade, a irracionalidade e falta de sentido de tal conflito armado.
Por tudo isto, porque a memória não se deve varrer e muito menos apagar é que hoje aqui estamos (…)”.

E é por hoje aqui estarmos que estes testemunhos são valiosos. Fafe está de parabéns pela memória que conserva. Que todos os outros lugares de Portugal ponham os olhos nesta dedicação, nesta permanente lembrança em nome dos feridos e dos mortos, para que o porvir deles aproveite a lição.

Lisboa, 5 de Novembro de 2014
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13977: Notas de leitura (654): Reimpressão do livro “Crónica dos [Des]Feitos da Guiné" da autoria de Francisco Henriques da Silva (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Bispo1419 disse...

Meu caro Beja Santos:
Após a leitura deste prefácio, de imediato me surge um "muito obrigado, Beja Santos".
Muitos parabéns, com um abraço do
Manuel Joaquim

PILAO2511966 disse...

Caro Beja Santos
Creio haver alguma confusão em relação à CCav 587, julgo não ter havido essa CCav. Será 487,pois 587 não consta das listas.
Atenciosamente

Carlos Coutinho