quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14105: Manuscrito(s) (Luís Graça) (42): Requiem para um paisano... (à memória do meu infortunado camarada Luciano Severo de Almeida)


Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Sinchã Mamadjai, ou Sinchã Qualquer Coisa... Algures, numa tabanca do regulado de Badora, em autodefesa, reforçada pelo 3º Gr Comb, com os respetivos furrieis mlicianos: o  Luciano Almeida (foto nº 1) e o Luís Graça [henriques] (foto nº 2), junto a um dos abrigos e posando com o RPG 2 para a fotografia... O fotógrafo foi o Arlindo Roda.

Fotos © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]







Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio, quase fantasma,  da marinha mercante,  da Companhia Colonial de Navegação.

Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, "contra os ventos da história" (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na chamada classe turística, reservada aos sargentos: (i) uma sopa de creme de marisco; (ii) seguido de um prato de peixe (pescada à baiana); e (iii) um prato de carne (lombo estufado à boulanger)... sem esquecer (iv) a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king...

Obrigado ao Humberto Reis e à sua famosa "memória de elefante" por me lembrar que o 17 de Março de 1971 foi o primeiro dia do resto das nossas vidas...  E, nas costas da ementa de um desses jantares a bordo, talvez o do último dia, deixámos escritos os nossos nomes e moradas. Dois de nós já não estão entre os vivos: é o o caso do Luciano Severo de Almeida (que morava no Montijo, desaparecido em trágicas condições e em data que ninguém sabe ao certo), bem como do António Branquinho que voltou para a sua terra, Évora, e que morreu em 2014, de doença...   


Quando soube da triste notícia da morte do Branquinho, não consegui  despedir-me dele sem  lhe reservar um lugar à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande, sob o nº 661...  Quanto ao Luciano Almeida, a esse, já em tempos lhe fizera um poema ("Requiem para um paisano") tendo prometido publicá-lo aqui, neste blogue,  "um dia destes"... Pois esse dia  chegou hoje, o primeiro dia do ano de 2015 quando vão 44 anos do nosso regresso no T/T Uíge... Quis, com este gesto,  que  a memória destes dois meus camaradas de armas  não ficasse  por aí, na vala comum do esquecimento...

Quanto aos outros camaradas da lista, felizmente  ainda estão vivos e recomendam-se: o Piça, o Jaquim, Fernandes, o  Tony Levezinho, o Humbertos Reis... Ficámos todos amigos... para sempre !

 
Foto:  © António Levezinho (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]}

Requiem para um paisano

por Luís Graça


(À memória do Luciano Severo de Almeida,
meu camarada
da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, 

Contuboel e Bambadinca, 1969/71,
e dos meus demais camaradas da Guiné, 
desconhecidos,
que morreram,
de morte violenta,
já como paisanos, 

depois do regresso á pátria,
por homicídio, suicídio ou acidente)



Disseram-me que tinhas morrido,
meu infortunado camarada,
já muito depois do nosso regresso a casa.
Talvez nos finais dos anos 70
do século passado, 
não posso precisar.
Morrido, lerpado,
para usar o nosso calão de caserna
bruto e feio, 
Lerpado, assim, sem mais nada,
sem uma palavra,
sem uma despedida,
sem uma oração,
talvez até sem um ui nem um ai,
sem um grito,
sem um ato de contrição,
sem um último desejo,
nem sequer um xeque-mate!

Morrido, de morte matada,
morrido, como um cão,
de um tiro na nuca,
como os cães que abatemos,
uma noite, em Bambadinca,
a Noite das Facas Longas,
lembras-te?!


Disseram-me que tinhas sido encontrado,  
morto,
longe da nossa Guiné,
dessa terra verde e vermelha que tu amavas,
longe da tua Sinchã Mamadjai,
e da morança da tua bela Fatumatá,
de mama firme,
que se escapulia para a tua morança,
nas noites de lua cheia,
em que uivava a hiena…
Longe do tarrafo do Geba,
da Ponta Varela e do Poindom, 
do Mato Cão,
dos Nhabijões,
da Ponta do Inglês,
da Missão do Sono,
da Ponte do Udunduma,
da orla da bolanha,
do poilão,
do bagabaga…

Onde, afinal ?
Não longe dos teus verdes anos,
não longe do arco-íris do teu céu de menino.
perto do teu Tejo,
numa valeta de uma rua escura da tua cidade…
Ou de um qualquer subúrbio triste e cinzento
de cidade nenhuma.

Que morte tão crua, a ser verdade,
oxalá fosse boato a notícia de fait-divers
que alguém leu no jornal,
a notícia de uma morte 
em que eu não te (re)vejo.
Oxalá, meu camarada,
tenhas simplesmente desaparecido,  emigrado,
tenhas sido sequestrado,
tenhas mudado de código postal
ou até de identidade,
sempre era menos mal.
E poupavas-me este requiem,
o teu elogio fúnebre,
que é a pior das missões
que se pode pedir a um camarada de armas.
Disseram-me (, mas eu não quis crer,)
que tinhas sido morto,
sem honra nem glória,
depois de cumprido o teu dever
para com a Pátria que te foi madrasta,
cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado
no mar da Palha da tua infância,
já muito depois dos últimos guerreiros do império
terem feito o espólio de todas as guerras
e o relatório da sua errância
desde Quinhentos.


No século passado, meu amigo,
no século transato, meu irmão!...
Lembro-me de o velho Uíge,
navio da velha Companhia Colonial de Navegação,
nos ter devolvido a terra,
à nossa cidade e capital.
Nas praias de Alcântara,
no cais da saudade,
no cais de pedra donde partíramos,
quase às escondidas,
vindos do comboio noturno e soturno
de Santa Margarida,
do Campo Militar de Santa Margarida.
Não sei quem te esperava
nesse dia 22 de Março de 1971,
mas seguramente os mesmos entes queridos
que me esperavam a mim, a todos nós, 
que ali, no cais,
passávamos à condição de paisanos,
depois de nos depedirmo-nos,
bebendo o último gole de uísque sem gelo
e fazermos promessas de amizade para sempre.

Vestidas as calças à boca de sino,
e as camisas às florinhas,
regressávamos ao doce lar,
com as exóticas bugigangas compradas no Taufik Saad,
ao lar e à rotina das nossas vidas, 
pequenas,
insignificantes.
E a uma outra guerra,
a da lufa lufa do quotidiano.
com outras picadas,
com outras minas e armadilhas,
com outras emboscadas e golpes de mão.

Tu tinhas um lar, 
todos tínhamos um lar,
uma família, 
alguns um emprego,
muitos uma namorada 
ou uma noiva 
ou uma mulher à nossa espera…
Mas eu…, eu, o que sabia de ti ?
O que sabíamos uns dos outros ?
E dos nossos sonhos ?
Muito pouco, afinal…
Casaste ? 
Tiveste filhos ?
Não, não tiveste tempo de ser bom filho, nem bom pai,
muito menos avô bababo…


Nunca mais voltei a rever-te,
em todos estes anos,
em que tantas coisas aconteceram,
para o pior e o melhor,
na nossa Pátria,
uma palavra, repara,
que saiu do léxico dos tugas,
e já não se usa mais…
A Pátria...
Afinal o que é a Pátria, camarada ?


A imagem mais forte, não a última,
que retenho de ti,
é a do menino e moço
que saiu, fardado, garboso,
da casa de seu pai e sua mãe…
É a imagem do puto reguila,
quiçá rebelde, 
temperamental,
belicoso mas generoso,
da margem sul do Tejo.
Com jeito para o desenfianço,
o desenrascanço,
que a vida era dura para os homens
da CCAÇ 12, brancos e pretos.


Retenho ainda a imagem do nosso patético duelo
no bar de sargentos de Bambadinca,
tendo por arma, letal,
uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
sei apenas que era scotch, e do bom,
daquele que vinha From Scotland
for the Portuguese Armed Forces with love!,
da Escócia para os tugas
com amor)…


Um duelo de morte, 
gole a gole,
até ao gole final,
em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
apostas a dinheiro,
mirones e claques de apoio,
como mandavam as regras
dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
exaustos,
usados e abusados,
filhos de Sísifo,
filhos de um deus menor,
condenados ao mais insano dos suplícios,
uma guerra a que chamavam
de contraguerrilha,
do gato e do rato.
de subversão e contrassubversão…
Não, não, era a roleta russa,
ninguém tinha pistolas de tambor,
era o fado lusitano,
era o fado da Guiné,
meu camarada,
meu amigo,
meu irmão,

Era a nossa triste condição,
era a nossa quiçá estúpida,mas viril, 
maneira de matar… o tempo,
o tempo em tempo de guerra,
o tempo de espera entre uma e outra operação,
o tempo de espera que podia ser entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
era a raiva, traiçoeira,
era a lucidez da loucura a tomar conta de nós…. 

Foi esse fado que te matou,
essa maldita toxina,
essa adrenalina,
que trouxeste das águas do Geba 
e das bolanhas do Corubal,
e que te impedia de parar para pensar,
simplesmente parar,
simplesmente pensar,
simplesmente viver,
simplesmente respirar
à tona de água.
meu irmão,
meu camarada.
meu amigo.

Foi o sobressalto da vida,
foi a vida em sobressalto,
foi a vida em saldo,
foi a alma em carne viva,
foi a dor em lume brando.
Foi isso que te matou.
No pós-guerra,
na guerra dos paisanos.
Foi isso, 
foi a Guiné que te matou.
Ao retardador.
Ou não ?!


v10 1jan2015


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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14027: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Maresias, Lisboa, Tejo, memórias, amnésias... Parte II: O Terreiro do Paço e a(s) cenografia(s) do poder

6 comentários:

Hélder Valério disse...

Meu amigo Luís

Para começar o ano, "levamos" com isto e nem sei que te diga.

Por um lado não posso deixar de louvar a homenagem que aqui prestas a um teu (nosso) camarada que'já partiu'.
É bom que assim se faça, pois é a forma que temos ao nosso alcance para perpetuar a memória desses camaradas.

Mas, por outro lado, fica no ar a angústia de se perceber que "a partida" não foi 'normal' (como se houvesse uma normalidade institucionalizada).

O teu poema/homenagem deixa pistas. Levanta questões.
Formula hipóteses.
Adianta 'motivos'.....
Várias 'leituras' são possíveis.

Em todo o caso, apenas quero aqui louvar a tua atitude e também lamentar que os nossos esforços possam ter tido resultados destes.

Abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Meu caro Hélder, tens razão, podia ter escrito algo bem mais "luminoso" para o 1º dia do ano...

Em boa verdade, este "manuscrito" já estava escrito, e como o blogue tem o horror ao vazio foi o poste possível na noite da passagem de ano... (DEsta vez fiquei em casa).

A poesia tem essa vantagem: deixa ao leitor muitas pistas de leitura... Mas deve transpirar emoção9...

A inspiração, neste caso, é "autobiográfica", baseia-se em factos verídicos das nossas vidas anónimas de operacionais da CCAÇ 12 (que foi para a Guiné como CCAÇ 2590, com 50 "melros" metropolitanos, tugas...).

O que aconteceu depois de 22 de março de 1971, em que regressamos juntos no T/T Uíge, é já especulação. Não tenho informação detalhada e confirmada sobre as circunstãncias da morte prematura (e violenta) do meu amigo e camarada... E posso até estar ferir susceptibilidades de amigos e parentes...

Mas entende este poema como uma homenagem aos que morreram "cá", depois de virem de "lá"... De acordo com a nossa missão bloguística, ni fundo só queremos que os camaradas que privaram connosco e que "da lei da morte já libertaram", não fiquem na vala comum do esquecimento... que é outra forma de ficar insepulto...

Que o ano de 2015 seja 15-20, para ti e para todos nós... Entenda-se, entre o bom e o excelente, em termos individuais e coletivos.


PS - Podem perguntar-me o que é que é eu fazia com um RPG 2 na mão, em calções e tronco nu, nuam qualquer Sinchã Mamadjai, no 3º Gr Com da CCAÇ 12... Muito provavelmente a substituir o madeirense José Luis Vieira de Sousa, com baixa ou de férias... Ele era um dos três furrieis do 3º Gr Comb, juntamente com o Arlindo Roda (o fotógrafo) e o Luciano de Almeida...

Hélder Valério disse...

Pois sim, é verdade que entendi a homenagem ao Luciano como uma forma de, por aí, serem referidos todos aqueles que, como dizes, morreram "cá", depois de virem de "lá".

O que é mais especulativo é que ficamos a saber que a sua morte foi "prematura e violenta" e isso dá largas à imaginação.

Quanto à foto do "guerreiro do RPG 2" temos que concordar que é uma bonita pose....

Bom Ano!

Hélder S.

Anónimo disse...



Amigo Luís:

A poesia é a arte suprema da palavra. Entra no meu cerebro e aquece-o, alegra-o como um bom vinho bebido numa roda de amigos. Os grandes prazeres da vida atingem o climax quando são compartilhados.
A tua poesia torrencial procura envolver-nos nessa partilha e eu sinto-me um pouco transportado (melhor dito, bebado) quando me deixo levar nessa corrente.
Neste poema fazes um requiem por esse camarada que para ser completo e perfeito só lhe falta ser musicado. As circunstâncias e o tempo da sua morte, o Helder quis conhecer, mas eu acho que não importam muito.
Tantos camaradas como este morreram alguns anos depois do regresso da Guiné, porque trouxeram bombas com retardador, no corpo e alma, prontas a explodir, em situações particulares de conflitos.
Se me permites eu dedico este teu poema a todos esses camaradas esquecidos, perdidos pelos campos e cidades de Portugal que morreram cedo, porque trouxeram já da África o beijo da morte (conheci alguns).

Bom Ano, um grande abraço

Francisco Baptista

Luís Graça disse...

"Se me permites eu dedico este teu poema a todos esses camaradas esquecidos, perdidos pelos campos e cidades de Portugal que morreram cedo, porque trouxeram já da África o beijo da morte (conheci alguns)." (Francisco Baptista).

Francisco, tens toda a minha permissão. Este poema não é meu, é nosso.

A. Murta disse...

Amigo Luís Graça.
Lê-se o teu poema e não se consegue ficar indiferente, como se não o tivéssemos lido. Ia a meio e pensei que me ia emocionar, mas não. Pelo contrário, comecei a sentir a alma alentada pela mostra de afecto que marca a sã camaradagem, neste caso em relação a uma pessoa ou a memória dela em concreto, mas podia referir-se a mim ou a outro. O poema-homenagem é, no fundo, um hino à amizade e à camaradagem entre os combatentes que nós fomos. Mostra como é forte, ainda, a carga afectiva que nos liga àqueles que um dia estiveram ao nosso lado no infortúnio e na alegria, ainda que em datas ou regiões muito diferentes.
Abro a caixa dos comentários e reforço a ideia que me foi crescendo à medida que lia o poema.
Camaradagem e amizade é isto. E faz-me sentir menos só, felizmente integrado numa Tabanca tão afectiva e sensível. Felizmente com tantas sensibilidades.
Como eu gostava de dizer tudo isto numa frase apenas, mas está fora do meu alcance...

Grande abraço para todos.
António Murta.