sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14109: Notas de leitura (663): “O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Há edições de autor que são memoráveis, nelas, sem qualquer hesitação, incluo este “O céu de Guidage”, notas diárias, ou quase, de um alferes que é lançado vários meses para um rincão fronteiriço, aonde afluem gentes e importantes, muito importantes, informações.
A região é palmilhada por gentes do PAIGC, por ali passam caminhos que levam para Sambuiá, para o Oio, está-se perto de Zinguichor.
E sentimos que este alferes Gonçalves para além de armadilhar e caçar e de querer tornar Guidage um sítio viável, é confrontado pelo animismo, pelo domínio ancestral do homem sobre a mulher, pelas permanentes visitações da doença e da morte.
Era assim Guidage em 1967, e nós acreditamos piamente que era assim, como Domingos Gonçalves a descreve e se descreve.

Um abraço do
Mário


O céu de Guidage

Beja Santos

Vamos agora dar um salto no tempo, estamos em Julho de 1967, altura em que Domingos Gonçalves passa a ser o comandante militar de Guidage. Das três obras que ele teve a amabilidade de me oferecer depois da sessão de lançamento do livro “Fafe na guerra colonial”, que decorreu em Fafe a 12 de Dezembro último, é o seu livro de que mais gosto, vê-se à légua que foi a missão que mais o marcou, por isso as suas notas são abundantes, a sua dor é por vezes imensa como imenso é o seu deslumbramento por aquele território junto ao Senegal, quase fora do mundo, onde ele adora caçar e constantemente se motiva para ter os seus homens igualmente motivados: “O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004, com a seguinte dedicatória: “A todos os soldados da CCAÇ n.º 1546, do BCAÇ n.º 1887, que estiveram no destacamento militar de Guidage, ou que por lá passaram”.(*)

Escreve no dia 12 de Julho de 1967: “Vou com os meus homens passar três ou quatro meses em Guidage. A estrada encontra-se num estado miserável. É uma manhã triste e sombria, que se esconde para além desta neblina”. As viaturas atascam-se, repetem-se os palavrões, foi uma viagem difícil e penosa, chegam a Guidage, o outro grupo de combate que vieram substituir inicia a viagem para Binta. Vaza para o papel: “Neste pequeno mundo eu sinto-me quase um rei, autoridade máxima deste reino constituído por cerca de dez hectares de terreno rodeado de arame-farpado onde habitam cercam de duas centenas de nativos. Eu sou o comandante das tropas aqui estacionadas, cerca de cinquenta homens”. Localiza Guidage, releva as suas vulnerabilidades, fala das picadas em muitíssimo mau estado. A Guidage chegam informações que depois são reencaminhadas para o Batalhão, trazem notícias que Amílcar Cabral anda a percorrer as bases e a apaziguar os ânimos, haverá tensões entre guineenses e cabo-verdianos. Vem gente do Senegal cumprimentá-lo. Há razão para isso: “Todos os dias passam por Guidage dezenas de senegaleses. Regra-geral, vêm comprar tabaco, sabão, azeite, tecidos, petróleo para iluminação, etc. Trazem também algum contrabando e algumas informações sobre a movimentação das forças do PAIGC”. O destacamento encontra-se num estado miserável, queixa-se da falta de militares: “Dos seis furriéis que devia ter aqui apenas tenho dois. Os soldados e cabos também são poucos. Por isso têm que fazer serviço todas as noites”. A 17 chega-lhe uma notícia muito importante: “Amílcar Cabral continua em Samine. Um grupo de 80 turras vai sair de Jeribã para Jagali Balanta. Transporta armas ligeiras, munições, quatro bazucas e dois morteiros. De Jeribã seguem para Sindina e depois para Sambuiá. Devem atravessar o rio Cacheu em Concolim”.

O ramerrão diário tem imprevistos, dois cadastrados, soldados em Guidage, tentarem fugir para o Senegal, foram apanhados já em território do Senegal. Por vezes, a natureza lembra-lhe a sua região: “Estes campos verdes de milho que cresce à volta de Guidage têm um pouco da verdura do Minho… E fazem-me olhar para muito longe. É a saudade!”. A pista de aviação estava inoperacional, ele decide pô-la em condições de voltar a receber os passarões de aço e chapa. Os senegaleses doentes chegam a toda a hora. A polícia senegalesa é vista a observar o território da Guiné portuguesa com binóculos. Chegam notícia de que Guidage vai ser atacada. Estamos em plena época das chuvas, o destacamento é um lamaçal. No fim desse mês de Julho, começa a colocar armadilhas em marcos fronteiriços e pontes adjacentes. Há um furriel responsável pelas informações que agride os nativos com frequência, a população teme-o: “Chamei-o ao meu gabinete, proibi-o de bater nos nativos. Não foi nada fácil convencê-lo. Refugiado no facto de ter um trabalho autónomo, sobre o qual apenas tem de prestar contas aos serviços de informação militar, de quem depende, entendia que podia fazer com a população o que muito bem lhe apetecesse”. O relacionamento da população com a tropa de Guidage melhorou muito.

Teme-se a qualquer momento uma flagelação, redobra a vigilância. As armadilhas começam a fazer o seu efeito, houve uma explosão, foram lá ver, encontraram um rapaz que não teria mais de quinze anos: “Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, sem qualquer elemento que o pudesse identificar”. Para pasmo de Domingos Gonçalves, a população irá executá-lo. O alferes não pára de armadilhar e caçar. A população senegalesa queixa-se dos roubos de vacas pelos turras. Com a coluna de Binta, veio o capelão: “É um bom homem. Chamam-lhe o pardal espantado porque ele não para em lado nenhum. Aproveita todas as oportunidades possíveis para se deslocar de destacamento em destacamento. É uma pessoa muito piedosa sempre preocupada com o bem-estar dos outros”. Nos patrulhamentos, encontra vestígios de passagem dos guerrilheiros. As armadilhas vão rebentando, obra dos homens e da passagem dos animais, ele volta a armadilhar, não dá tréguas. Em 17 de Setembro, Guidage é atacada, não há feridos nem estragos a lamentar. De Binta, o capitão dá-lhe ordens para patrulhar e armadilhar e ele escreve: “Não vou. Não cumpro ordens estúpidas”. As tensões acentuam-se, os furriéis não se entendem uns com os outros, há imensas bebedeiras, as chuvas são abundantes, as informações que chegam a Guiadge são preocupantes, prepara-se um ataque em força, as carências são de toda a ordem, parece que tudo falta em Guidage.

Estes apontamentos de Domingos Gonçalves tocam-nos profundamente: um destacamento à beira do Senegal aonde afluem pessoas em carência, informações, onde se afina o instinto de sobrevivência, o resistir à solidão, o sentir-se o abandono, as vidas transtornadas à nossa volta, e então o ser humano levanta-se, comunga com a natureza e escreve-se sobre este respeito, com simplicidade e sinceridade: “As trovoadas aqui são cheias de grandeza. Tanto nos incutem medo como admiração. Quase me apetece afirmar que valeu a pena vir à Guiné só para observar estes espetáculos. É muito belo, em noites de trovoada, este céu de Guidage. Entretanto sobre a mesa do meu improvisado gabinete, os ratos brincavam com os papéis". Mas nesse mesmo apanhado de notas, ele escreve adiante: “De tarde, patrulhei a área de Fajonquito, onde encontrei vestígios da passagem recente dos turras, e onde recolhi um quico perdido por eles. Passei por Quenheto e caminhei, ainda, pela estrada do Dungal, onde deixei ficar três potentes armadilhas. Regressei pela linha de fronteira, passando junto do marco 124”.

O alferes tem que praticar justiça, agir como juiz de paz em casamentos desavindos, procurar, nesse escuro túnel cultural, agir com prudência, travar roturas, desinchar o mau estar. Já se passaram três meses, sonha-se com o regresso a Binta. Mas, por outro lado, sente-se incomodado por voltar à companhia do capitão (a quem ele chama Faruk). Pouco antes de regressar a Binta, no início de Novembro, escreve sobre o seu intérprete, a quem chama o Patron: "É um ingénuo, é um homem puro. Não fora aquela pura ingenuidade e ele seria bem capaz de ver que temos mais de demónios do que de anjos, e que a nossa terra apenas tem homens como os daqui, embora de cor diferente”. Despede-se de Guidage com tristeza, mas no dia 2 de Dezembro está de novo rumo a Guidage, vai substituir temporariamente um alferes que se deslocou a Bissau, e relata a operação “Chibata”, 170 homens, incluindo os Roncos de Farim e os Caçadores Nativos de Guidage, vão atacar Cumbamory, no Senegal, capturou-se armamento, as nossas forças sofreram quatro mortos. Detetaram-se cubanos no acampamento. Volta a armadilhar à volta do destacamento. A 23, está de regresso a Binta, e despede-se assim do leitor: “As terras de Guidage, e o seu povo ficarão cada vez mais longe de nós, perdidas na distância do tempo e da saudade”. Percebe-se como este céu de Guidage marcou Domingos Gonçalves para toda a vida.
____________

Nota do editor

(*) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14095: Notas de leitura (662): Eu e a minha burra, sozinhos, mais a nossa própria sombra... Recordações da infância (Fernando Sousa, natural de Penedono, autor de "Quatro Rios e um destino")

3 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro MBS,

Obrigado por mais esta recensão e, a proposito, informo que estive em Guidage ha poucos dias (21/12/14) em missão de serviço ligado a Saúde. O trajecto foi Bissau-Mansoa-Mansaba (com passagem por Mores atraves de uma excelente estrada)-Canjambari-Jumbembem-Farim-Binta-Guigage (aqui exceptuando o trajecto Canjambari-Jumbembem, a pista é muito má).

Relativamente a pista que conduz até Guidage, pode-se usar a mesma expressao do Domingos Goncalves “A estrada encontra-se num estado miserável” passados mais de 47 anos depois.

No caminho, entre Binta e Guidage passamos pelas Tabancas de Udjégue e Cufeu. A saida do Cufeu descemos para a bolanha que da pelo mesmo nome e que me trouxe a memoria a triste narrativa do Ex-Para Victor Tavares, salvo erro, sobre as primeiras tentativas frustradas de cortar o cerco a Guidage em Maio de 1973.

A realidade socio-demografica da area de Guidage nao mudou, praticamente, é maioritariamente povoada por Balanta-Manés em mistura com outros grupos etno-linguisticos minoritarios como Mandingas e Balantas.

A influencia do vizinho Senegal é notoria, durante os salamaleques com a populacao local, alguém nos perguntou como estávamos na Guiné-Bissau como se, de facto, estivéssemos fora dela.

Finda a nossa missão, passeamos até ao sitio do antigo aquartelamento da guerra colonial pois queria tirar algumas fotos de recordação das casernas que ainda estavam de pé já sem a cobertura e, surpresa minha, quando saia do interior do mesmo, vejo alguém que me fazia sinais para se aproximar, vestido com o que parecia ser uma farda militar, afinal sempre era um quartel no activo.

Facilitados, certamente, pela viatura das NU, falamos um pouco no meio de alguns queixumes e fiquei a saber que no quartel viviam 7 militares da guarda Nacional ou guarda-fronteira. Do resto nada indicava qualquer presenca da nossa autoridade e muito menos de sinais de soberania nacional.

Um abraco amigo,

Cherno AB

Cherno Baldé disse...

Caro MBS,

Obrigado por mais esta recensão e, a proposito, informo que estive em Guidage ha poucos dias (21/12/14) em missão de serviço ligado a Saúde. O trajecto foi Bissau-Mansoa-Mansaba (com passagem por Mores atraves de uma excelente estrada)-Canjambari-Jumbembem-Farim-Binta-Guigage (aqui exceptuando o trajecto Canjambari-Jumbembem, a pista é muito má).

Relativamente a pista que conduz até Guidage, pode-se usar a mesma expressao do Antonio Goncalves “A estrada encontra-se num estado miserável” passados mais de 47 anos depois.

No caminho, entre Binta e Guidage passamos pelas Tabancas de Udjégue e Cufeu. A saida do Cufeu descemos para a bolanha que da pelo mesmo nome e que me trouxe a memoria a triste narrativa do Ex-Para Victor Tavares, salvo erro, sobre as primeiras tentativas frustradas de cortar o cerco a Guidage em Maio de 1973.

A realidade socio-demografica da area de Guidage nao mudou, praticamente, é maioritariamente povoada por Balanta-Manés em mistura com outros grupos etno-linguisticos minoritarios como Mandingas e Balantas. A influencia do vizinho Senegal é notoria, durante os salamaleques com a populacao local, alguém nos perguntou como estávamos na Guiné-Bissau como se, de facto, estivéssemos fora dela.

Finda a nossa missão, passeamos até ao sitio do antigo aquartelamento da guerra colonial pois queria tirar algumas fotos de recordação das casernas que ainda estavam de pé já sem a cobertura e, surpresa minha, quando saia do interior do mesmo, vejo alguém que me fazia sinais para se aproximar, vestido com o que parecia ser uma farda militar, afinal sempre era um quartel no activo. Facilitados, certamente, pela viatura das NU que nos transportava, falamos um pouco no meio de alguns queixumes sobre a situacao do quartel e dos seus inquilinos e fiquei a saber que no quartel viviam 7 militares da guarda Nacional ou guarda-fronteira. De resto, nada indicava qualquer presenca da nossa autoridade e muito menos de sinais de soberania nacional, caso para perguntar:
- E toda aquela querra para ficarmos com isto?

Um grande abraco para todos os amigos do Blogue da TG e votos de um feliz ano com esperanca renovada para que seja melhor e mais radiante para todos.

Cherno AB.


Cherno disse...

PS:

Com as minhas desculpas, trata-se de uma narrativa soberba mas triste de Amilcar Mendes da 38a CCmds com o titulo: De Farim a Guidage: a picada do inferno. Publicada no blogue em Outubro de 2006.

Cherno AB.