segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14163: Notas de leitura (671): “O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, com organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
“O Império da Visão” é um documento extraordinário, ao longo das suas 500 páginas ficamos a entender como entre 1860 e 1960 a fotografia foi o principal modo de tornar o mundo visível, uma imagem que jaz nos arquivos coloniais do presente e sobre a qual a nova historiografia tem muito a apostar: são momentos preciosos que falam da antropologia e da etnografia, da botânica e da medicina tropicais, de exploradores e de exposições, de denúncias do colonialismo, das revistas, da literatura, dos aparatos imperiais.
Uma obra que desvela a estetização do colonial graças a uma laboriosa investigação em bibliotecas e arquivos públicos. É o princípio da aventura, pois quando estes investigadores descobrirem o nosso blogue irão ficar siderados com o nosso acervo, passe a imodéstia com que invoco o nosso orgulho coletivo.

Um abraço do
Mário


Memória e fotografia no contexto da guerra da Guiné

Beja Santos

“O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, com organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014, é um empreendimento científico extraordinário. O que se diz na contracapa é elucidativo: “A fotografia não foi uma mera ilustração das colónias. A fotografia criou experiências coloniais. Os estudos recentes sobre colonialismo reconhecem como, ao lado da documentação escrita, as imagens são determinantes para se compreenderem e estudarem os impérios. Nas histórias entrelaçadas entre o império e a visão que se contam neste livro, destacam-se alguns temas: a fotografia usada como um instrumento inseparável dos vários saberes científicos que usaram as colónias como laboratório, da história natural à antropologia ou à medicina; fotografia como afirmação do poder; a fotografia apropriada pelos sujeitos colonizados, como também pelos europeus anticolonialistas, enquanto forma de resistência, no forjar de identidades nacionais”.

Trata-se de uma empolgante viagem onde a Guiné é largamente necessitada: logo na missão antropológica e etnológica da Guiné (1946-1947), que teve à cabeça o prof. Mendes Corrêa e as suas teses raciais hoje totalmente destituídas de fundamento; viagens dos régulos da Guiné a propósito das idas a Meca, bem como participação de guineenses nas exposições coloniais; e as imagens de guineenses combatentes de um lado e do outro enquanto meio de memória da guerra. É este o último tema que trazemos à consideração do leitor. Autora do artigo, Catarina Laranjeiro, dá-nos conta de que a prática fotográfica era frequente nos rituais associados à vida militar portuguesa (caso dos juramentos de bandeira, provas de recruta, imagens captadas em formaturas em Bolama, etc.) e do lado da guerrilha existe um apreciável acervo fotográfico relacionado com reportagens de jornalistas estrangeiros em bases dos PAIGC ou missões diplomáticas do PAIGC junto de países apoiantes. A autora entrevistou pessoas de um lado e do outro. Constata que um bom número de dirigentes do PAIGC era constituído por pessoas conhecidas por assimilados e cita dois excertos de entrevista: “Eu sou de uma família, parte de pai francês mestiço, parte de mãe negra, mas com meios de fortuna e preparação. Porque o meu avô, pai da minha mãe, negro, mandou educar os filhos todos em Portugal, e tinha fortuna…" e: “Fui estudar primeiro na Faculdade de Ciências e depois no Técnico (em Lisboa) e com os outros jovens cabo-verdianos e guineenses desenvolvemos uma atividade política que veio a desembocar na criação de um comité do PAIGC em Lisboa (…). Eu como tinha problemas de serviço militar, abandonei Portugal. Vou para Paris, e é aí que eu conheço Amílcar Cabral”.

Estes comandantes da luta, diz a autora, tornaram-se parte da nova elite nacional e ocupou lugar dos antigos governantes portugueses, todas as residências de Bissau que pertenciam à administração colonial passaram para as mãos desta elite. Diz a autora: “As fotografias que me mostravam eram fotografias de um mundo que já não existe: um bloco de Leste que apoiava incondicionalmente a libertação das colónias africanas e que espalhava o ideal marxista-leninista”. E mais adiante: “Foi ao fim de algumas entrevistas que me apercebi que este exercício era absolutamente inútil”. Porque tudo era silêncio perante um passado que perdera significado. E há mais: “Estes homens e mulheres são políticos formados em países como a antiga URSS, Cuba ou Checoslováquia. Ao longo das minhas entrevistas, mesmo sem a presença das fotografias, não consegui que tivessem o mínimo de espontaneidade. Cada palavra ou frase já tinha sido dita antes, ensaiada”.

Passando para os combatentes do exército colonial português, a autora também confessa que também aqui as coisas não correram bem. Pediu apoio logístico à embaixada de Portugal e foi-lhe cedido um espaço no Centro Cultural Português. Nesse edifício trabalhava o sargento Viana que era o seu interlocutor privilegiado com a Liga dos Antigos Combatentes. Ela via uma fila enorme de gente de todas as manhãs à porta da embaixada. O sargento Viana pô-la em contacto com a liga dos antigos combatentes. E ficou atónita pois logo na primeira entrevista o seu interlocutor pediu-lhe para pressionar o sargento Viana para lhe assinar a documentação que lhe permitisse ir para Portugal. E não esconde a sua deceção: "todos os antigos combatentes estavam comigo com a esperança que, de alguma forma, a colaboração com a minha investigação lhes trouxesse algum benefício. Eu apenas me propus a ouvir a sua história e eles pediam-me apoio, num discurso impregnado de uma hierarquia colonialista, no qual o branco é que detém o poder. Aproveitar-me da sua situação para recolher dados para a minha investigação seria uma enorme falta de ética". Descobriu que os seus interlocutores tinham feito desparecer as fotografias, a seguir à independência os antigos combatentes guineenses procuraram desembaraçar-se de documentos, fotografias de todo o tipo. Um dos entrevistados não lhe escondeu a sua mágoa e deixou um alerta: “Nem que morramos todos, os nossos filhos ficarão cá a lutar pelos direitos dos seus pais”. E a autora conclui: “A memória das lutas de libertação vive uma parábola análoga à de outros movimentos emancipadores, na medida em que a sua memória pública desapareceu. Hoje o povo guineense não é visto como um povo que conduziu uma luta bem-sucedida contra o regime colonial. Tal como outros movimentos emancipadores africanos contra o imperialismo, este também foi silenciado e recoberto por outras representações africanas do mundo. Hoje, o povo da Guiné-Bissau é outra vez vítima, na medida em que continua a ser objeto de salvamento. Por seu turno, os países europeus, outrora colonizadores, como Portugal, continuam a cumprir a sua ‘missão civilizadora’, agora envolta na capa ideológica do apoio ao desenvolvimento”.

E dei comigo a pensar quando estive na Guiné em 2010 para me despedir dos meus antigos soldados, as precauções com que tiravam do vestuário sacos de plástico de onde saiam, por vezes em retalhos, os seus documentos militares, incluindo a caderneta, as folhas com louvores, e sorriam, era impossível que nosso alfero não viesse de longe sem trazer as boas notícias da pensão digna depois de tanto sofrimento… E como doía ter que explicar, uma, duas, três, muitas vezes, que infelizmente eu não tinha poder para contrariar a indiferença da História.
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 Nota do editor

Último poste da série de 14 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14149: Notas de leitura (670): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (3): Como era Alcobaça em 1890

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

"E como doía ter que explicar, uma, duas, três, muitas vezes, que infelizmente eu não tinha poder para contrariar a indiferença da História."

Beja Santos, a História terá ficado mesmo indiferente?

Ou a História está viva e bem viva, não só lá em Bissau, mas também em París, Nigéria...!

Foram abandonados sim, e eles estão a cobrar esse abandono, à Europa colonial e estupidamente descolonizadora.

Tu Beja Santos e outros tugas superaram-se, não podiam contrariar a indiferença da História, mas foram os últimos a desistir.

A Europa desistiu e sofre hoje as consequências dessa desistência.

JD disse...

"A indiferença da história", diz-se no fim.
Como é usual reproduzir no Blogue e em outras publicações, a história é descrita pelos vencedores. Ou seja, pelos aristocratas, pelos colonialistas (os que mexem os cordelinhos, não confundir com os colonizadores pioneiros, os que estabeleceram contactos e geraram a curiosidade dos povos) que, raros, lá longe, em parte incerta, dominam os mercados, controlam o desenvolvimento das nações, e o potencial a extrair de cada uma, ou de uma estratégia com vista ao monopólio. Uma parte do ocidente deu linha ao ímpeto das conferências que estiveram na génese dos novos "ventos da história", e minou as eventuais boas intenções, quando percebeu que cada homem julga-se merecedor de reconhecimento. Ora, se eles arriscavam a vida, queriam muito reconhecimento. E deslumbraram-se. O ocidente passou a dar aos novos líderes, todo o apoio necessário ao controle das matérias-primas e da economia, a troco de trocos, o bastante para realizarem "prestígio" e fortunas pessoais, que URSS e China não podiam antecipar.
O povo, em qualquer lugar, é sempre uma amálgama (com diferentes níveis de sofisticação) fácil de controlar.
A Guiné-Bissau, nesta perspectiva, ainda estará longe de atingir o ponto das necessidades de auxílio, ou seja, de despertar a curiosidade e "solidariedade" das nações poderosas.
Há erros históricos que custam caro aos povos.
JD