quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Tinha saudades de Angra do Heroísmo, foram sempre estadias meteóricas, sempre um pouco da cidade, sem lhe tomar o peso, sem lhe medir esta dimensão de cidade da Renascença, de encruzilhada das Índias, ponto focal da resistência aos Filipes que, à cautela, aqui mandaram construir uma das maiores fortalezas atlânticas.
Tive sorte com o tempo, foram os dias de Março com aguaceiros espúrios e com a humidade do costume.
Um dia completamente dedicado a Angra, a seguir um passeio costeiro pela Ribeirinha, Feteira, Porto Judeu, Fonte do Bastardo até Praia da Vitória, havia que respirar aqueles ares da juventude de Vitorino Nemésio. E o mais que vos contarei, impante de alegria.

Um abraço do
Mário


A mui leal, nobre e valente Angra do Heroísmo

Beja Santos

Há bem 15 anos que não visitava este rincão que a UNESCO consagrou como património mundial da humanidade e com justeza: encruzilhada das Índias Ocidentais e Orientais que aqui faziam aguada, se abasteciam de mantimentos vários, largavam doentes, aqui morreu Paulo da Gama, no regresso da viagem de 1498, aqui se fundou a primeira cidade moderna do Atlântico, nada das ruas enviesadas dos tempos medievos, são ruas desafogadas, parecem correr em direção à angra dos galeões que traziam a prata de Potosi; aquela Angra da mocidade de Garrett, para onde confluíram os liberais; e daqui partiram para o Mindelo, mais adiante, em Praia da Vitória foi desbaratada a armada miguelista, primeiro ponto para a derrocada no absolutismo. Mas há mais, como é evidente, por exemplo o Monte Brasil, sobranceiro à cidade marcada pela Renascença.


Começo o passeio pela Sé Catedral, profundamente afetada pelo sismo de 1980, e a seguir pelo incêndio de 1983. É também conhecida por Igreja do Santíssimo Salvador da Sé. É de grande imponência, mantém o seu estilo renascentista e vestígios do que escapou ao incêndio. Vale a pena ver a estante de leitura em estilo indo-português, em jacarandá do Brasil com marfim de baleia.


O fotógrafo é amador e canhestro, regula as entradas de luz por puro instinto, e por isso esbanja oportunidades na captação de imagens que contribuiriam para ver a riqueza deste tempo. Fica um detalhe, dá para perceber o tempo antigo e os fulgores de uma riqueza que já houve.


Este Santo António escapou ao incêndio, depois de algumas visitas a igrejas deu para perceber que os terceirenses têm por ele uma indesmentível devoção. Pena é a falta de nitidez da imagem, mas o fotógrafo amador comprazeu-se como o antigo sobressai das paredes restauradas, de uma alvura impressionante.


Do adro da Sé contempla-se esta fachada da Confederação Operária Terceirense, ali se inscreveu: Operários uni-vos! O socialista Antero de Quental, que se correspondeu com Marx, micaelense, seguramente se regozijaria.


Dá gosto ver o aprumo destas fachadas, as suas varandas em ferro, as cores garridas, o desvelo da manutenção, as bonitas calçadas. O visitante tem um prospeto na mão onde lê, a propósito do que tem em frente: “As primeiras casas surgiram nas colinas, em ruas íngremes e tortuosas, tendo no topo do Outeiro longe do mar, um castelo de defesa. Era a forma medieval de viver. Álvaro Martins Homem manda, em 1474, desviar e canalizar a ribeira que corria para a angra. Criada, assim, o indispensável sistema industrial da futura cidade, baseado na força hidráulica. Libertava o vale espaçoso para, de acordo com as normas do urbanismo do renascimento, os arruamentos obedecerem a uma malha reticulada e se organizarem por funções, de acordo com as necessidades do porto, cada vez mais frequentado por navios vindos dos quatro pontos cardeais”. Foi assim a fundação desta Angra, que uma Rainha apôs Heroísmo, em lembrança da muita lealdade às causas pátrias, Angra foi capital de D. António Prior do Crato e alavanca do liberalismo.


A fachada da Igreja da Misericórdia, debruçada sobre Angra, saiu tortinha mas dá para ver duas coisas: a belíssima calçada e o templo do século XVIII, neste local houve o primeiro hospital dos Açores, obra da Confraria do Espírito Santo e um dos seus fundadores chamou-se João Vaz Corte-Real, descobridor da Terra Nova.


Esta imagem é para puro desfrute dos sportinguistas, aqui têm a delegação fraterna. Umas ruas abaixo este fotógrafo apanhou a delegação do Benfica, não menos graciosa. Mas que não se tome esta estampa como um convite a rivalidades clubistas. O que se lê naquela lápide ao nível do primeiro andar é que ali viveu D. Violante do Canto, acérrima defensora da causa de D. António Prior do Crato, chegaram os espanhóis e a senhora não cedeu, e foi então obrigada a ir para Espanha. Que dos bons portugueses reze o nome.


Houve primeira visita ao Palácio dos Capitães Generais, primeiro foi colégio de Jesuítas, desde 1595, sabe-se como foram detestados pelo Marquês de Pombal que aproveitou a reforma dos capitães donatários e criou a titularidade de capitães generais, o primeiro foi D. Antão de Almada, que tem direito a retrato a óleo. Diga-se de passagem que foi uma visita ímpar conduzida por uma jovem cuidadosíssima, finda a visita conduziu-nos à Igreja do Colégio, também muito bela, mas foi num canto da sacristia que se encontrou esta preciosidade, minhas senhoras e meus senhores é tudo azulejaria de Delft, vale a pena descer ao pormenor.


Pede-se desculpa por algum sombreado, se é verdade que somos a potência mundial em azulejaria não se pode desmerecer da genialidade alheia, e aqui dá para perceber que os azulejos de Delft marcaram a história das artes decorativas, pela sua originalidade e cromatismos.


No jardim da cidade há esta memória de Garrett, ele aqui estudou na sua juventude e Angra não o esqueceu. O visitante fez uma pausa, é quase um septuagenário, já deambulou pela Praça Velha, olhou cá debaixo o Outeiro da Memória, calcorreou por estas ruas assombrosas, com nomes como Pisão, Garoupinha e Santo Espírito, falta-lhe energia para ir ao Convento de S. Gonçalo, um dos maiores dos Açores com rico revestimento em talha e tetos pintados, já se degustou no Palácio dos Capitães Generais, amanhã está previsto um passeio por metade da ilha, haverá tempo para pôr os pés no Monte Brasil e ver Angra do cimo, espraiando-se até S. Mateus e o seu belo porto. São mais dois pormenores de flores e plantas.


Sempre ouvi dizer que todas as árvores se dão bem nos Açores, basta recordar o delírio floral criado por José do Canto tanto no Parque Terra Nostra, junto às Furnas, em S. Miguel, como o jardim que tem o seu nome, em Ponta Delgada. A investigadora Filomena Mónica dedicou-lhe um livro espirituoso, foi um contemporâneo à frente do seu tempo. Mas este jardim tem aquelas pequenas jóias com que a natureza nos brindou. Estamos em Março e parece que a Primavera vai despontar, até os catos florescem, parece um cacho luxuriante, um quase centro de mesa, apoteótico.


E esta palmeira chinesa, não é uma delicadeza para os olhos, parece uma palmeira anã, de palmas irradiantes e um deslumbrante centro de mesa, também. A visita está feita, já se ganhou energia para o resto da deambulação, o tempo é açoriano, há assim umas abertas para o sol, abertas fugazes, a cobertura de chumbo é maioritária. Vamos praticar o pluralismo, mostrar o Benfica em construção angrense típica, em espaço da UNESCO, pois claro.


Só mais tarde, no enfiamento das fotos, é que se descobre, e com que pesar, que aquelas imagens do Teatro Angrense foram parar ao éter. E com que satisfação se procurou captá-las, andou-se lá dentro sempre a pensar naqueles teatros italianos de província, de uma riqueza contida, interiores bem decorados e com excelente acústica. Paciência, fica aqui o Benfica, em toda a sua vibração, em tons de rosa velho, há que pensar na maresia forte e constante que enferruja, dessora, calcina, enche de verdete e ferrugem. O Eusébio estaria aqui a meu lado feliz da vida, não tenho dúvidas. Amanhã há mais para ver e contar, ficam aqui pálidas referências à mais linda cidade dos Açores. Entrou-se no lusco-fusco, vejo nuns televisores imagens grotescas de mirones bem marrados nas touradas à corda, ando com os olhos no chão, há sempre novidades nesta calçada portuguesa, e enfio para o porto dos pescadores, para saborear os ruídos oceânicos, dei contas à vida, conheci esta cidade antes do sismo, é sumamente bom ver as diferenças para melhor, este património tão cuidado onde estão esmaltadas algumas das mais poderosas histórias da História de Portugal. Viva Angra e o seu heroísmo!
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14319: Os nossos seres, saberes e lazeres (77): A arquitetura de Haia em visita de médico (Mário Beja Santos)

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Tanto elogio da pequena, grande vaidade!
Somos o que somos.

António Graça de Abreu