quinta-feira, 26 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14408: (Ex)citações (268): Emoção e bom senso (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Março de 2015:


EMOÇÃO E BOM SENSO 

Nas nossas memórias, a intenção normalmente passa por transparecer emoções, racionalidade, por vezes agressividade, porque não vivemos numa redoma de vidro e somos afectatos pelo que se passa à nossa volta, tonando-nos alvos fáceis das chuvas ácidas e do Sol inclemente.

Há dias que tudo nos agride e qual espoleta sensível, facilmente deixamos rolar as lágrimas, assim como respondemos violentamente a qualquer situação que em dias normais deixaríamos passar com sorriso nos lábios, ou com um encolher de ombros, denotando assim a pouca importância da questão.

Temos uma geração inteira que teve pouco tempo para ser criança e muito menos para ser jovem, passou pela ditadura e pela guerra, teve medos anseios e viu o que nenhum ser humano está preparado para ver. Há quem tenha visto demais e aí chegados, uns reagem de uma maneira tornando-os insensíveis enquanto os outros o horror, permanece para além do imaginável e desejável.

De uma forma de outra, uns e outros ficaram condicionados ao reflexo daquele tempo. Muitos de nós começámos a usar a G3 antes mesmo de termos feito sexo pela primeira vez. Digo sexo, porque fazer amor, só mais tarde descobrimos o que era isso. Depois alguns choraram a sua desdita e outros mataram antes de amar.

Assim como quem usa uma bengala muito tempo, há momentos que sente necessidade de a voltar a usar, também ao longo da vida, quem tivesse uma G3 teria impulso de a usar numa briga da vizinhança, num desaguisado na estrada ou lavagem da sua honra, sim porque a ocasião fez o ladrão e os resultados não seriam diferentes do que se passa nos países onde as armas são de livre acesso, onde por exemplo os veteranos têm a opção de adquirir a arma com que prestaram serviço, com resultados funestos que todos ouvimos falar.

Há tempos li que os crimes, acidentes, etc com armas de fogo, já custaram três vezes mais vidas do que as que os americanos perderam em todas as guerras em que foram intervenientes, inclusive na guerra civil. Mas é assim, a G3 é um símbolo dos tempos de guerra mas também da paz, da mudança, da liberdade, da alegria e da esperança, não discuto se concretizada ou não, pois cada um é livre de estar contente ou não e de o dizer livremente.

Quem não se lembra da emoção com que lhe pegou a primeira vez e mais tarde a usou quase como adereço? Nessa altura não sabíamos que a passaríamos a usar como um turista usa a máquina fotográfica, para captar coisas boas e coisas más. A G3 empunhada pelo povo fardado, também tem que ser símbolo da Justiça e da equidade entre cidadãos, que têm o direito de ser defendidos acima da própria vida, e mal vai um país que não tem orgulho nas suas forças armadas.

Num arremedo de poema escrevi uma alegoria intitulada “se eu tivesse uma G3”.(*)

Essa G3 representa um símbolo daqueles anos de juventude, de algum desencanto, assim como um grito de revolta, pois todos têm o dever de perseguir a felicidade e não se contentar com o que nos querem dar.
Sejam ousados e exijam nada menos que o impossível, porque o não, esse está sempre garantido! Mas eu estou de acordo que por estas e outras razões, ainda bem que nós por cá não podemos ter uma G3. Razão tinham os hippies que gritavam no auge do movimento, façam amor e não a guerra.

Um abraço para todos e boas amêndoas.
Juvenal Amado
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 Notas do editor

 (*) Vd. poste de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)

7 comentários:

JD disse...

Caro Juvenal,
Hoje encontro alguma controvérsia neste teu texto sobre a relembrada G-3, e com uma delas dormi abraçado durante muitas e muitas noites.
Dizes que a G-3 é símbolo da paz, mas não lhe encontro tal simbologia, pelo contrário, se a usarmos contra outro, é porque alguma coisa perturba a paz: ou o adversário, ou nós próprios. Se o resultado vier a ser a paz, a G-3 representou o papel violento que permitiu um hipotético estado pacífico. Se a considerarmos como instrumento de intimidação para garantia da paz, é porque a arma nesse papel intimidador representa perigo quando accionada.
Talvez eu perceba que queiras associar a expressão à revolução de Abril.
Também referes que mal vai um país que não tem orgulho nas suas forças armadas, e eu concordo, mas tu sabes que estas não servem apenas para abrilhantar desfiles.
Servi com orgulho, usei a G-3 e outro armamento, o que significa, apesar de nunca ter tido a iniciativa, que recorri à força e à violência.
E isso transformou-me? Sim, certamente que sim, embora não me pareça que esteja afectado por algum stress, sinto que perdi algum nível de tolerância, e sinto muito claramente, que por causa da guerra aconteceu uma rebelião de carácter capcioso, que arrastou o meu país para uma sucessão de mentiras, de que o actual regime é a representação activa.
Um grande abraço
JD

manuel maia disse...


Juvenal,camarigo.


Gostei da tua escrita costumadamente sentida e escorreita.
Um grande a amigo abraço.


Desta feita sem sextilhas // mas com quadras d´improviso //descarreguei cá as pilhas //daí este sério aviso.


foi a G3 instrumento//por muitos milhares usado // bela peça de armamento // que vai ser posta de lado.


Tive uma com quem dormi// tal como diz Zé Dinis // por vezes quente a senti // noutras fria bem a quiz...


no dia da despedida// deixei-me emocionar // pela vida defendida // hoje aqui a recordar...


Com ela me senti forte //ao seu gatilho tocar //foi meu fiel e meu norte //em momentos de escaldar...


atravessei as bolanhas // de mão dada co´a G3 //não sei se rasguei entranhas // disparando tanta vez...


De emboscadas companheira // nunca fez greve ao "trabalho" // nem sequer mostrou canseira // certinha que nem um malho...


Foi tão fiel esta amiga // sempre pronta p´ra servir// que nem sei o que vos diga //do que foi o meu sentir...


devo dizer-vos que a amei // e `inda hoje a relembro //nos ataques que passei //como um tido em setembro...


despejou carregadores // naquele ataque ao arame // expulsando os invasores //d´inimigo então infame...


Abraço sentido a todos e a cada um camarigos.

Henrique Cerqueira disse...

Apesar dos pesares.
Eu que não tinham pretensões á carreira militar e muito menos ao uso de armas (só por grande necessidade nas circunstancias que vivíamos)gostava mesmo da minha G3 e até era muito cuidadoso com a minha arma.Acho que desde o primeiro dia que me foi distribuída a 1ª vês eu gostei logo do seu contacto. Sabia manusear com destreza,assim como cuidar da sua manutenção.Enfim foi uma atracção total pela G3.
Henrique Cerqueira

Álvaro Vasconcelos disse...

Amigo e Camarada Juvenal, leio com atenção tudo que passa no Blogger.
Faço-o com emoção e consigo, por vezes, intervalar com outras leituras.
Pela Net, leio; desde o JN, DN, Público, CM,o Jogo, A Bola, etc. etc..
Não consigo (ainda!...) "bolir" com à vontade na "geringonça" informática.
Mas, ainda bem (para mim) porque se já o conseguisse, por ventura seria um "franco-atirador" de teclado!
Na Guiné, desde Julho de 1970 até Agosto de 1972 (durante 27 meses e 7 dias) nunca usei a G3. A arma que servi foi sempre o "Morse".
Mas senti na pele as amarguras dos camaradas que se batiam no mato. Apercebi-me das terríveis situações que enfrentaram os camaradas de todas as outras especialidades operacionais. Também sofri com os que pagaram caro o sacrifício a que eram(os) sujeitos obrigatoriamente!
Neste contexto, porque entendo (ou julgo entender) o sentimento da tua escorreita escrita, deixa-me um sublinhado manifesto: o que alguns hoje procedem, na vida política nacional, nascidos depois daqueles anos da nossa juventude, carecem de severas reprimendas.
No nossa tempo, havia a "palmatória"!...
Um forte abraço

Anónimo disse...



Amigo Juvenal:

Nos últimos dias tenho lido mal por problemas de visão, que estão a ficar ultrapassados felizmente, sem querer entrar nalguma polémica sobre a G.3 com outros camaradas igualmente amigos e respeitáveis. Não devia entrar entrar nessa polémica, pelas razões atrás expostas mas confesso-te que para pena minha, já que eu te admiro, tu em tiro de G3 para mim serás um nabo. Mais guerreiro será o nosso camarada e amigo J.D.quando afirma:
" Dizes que a G-3 é símbolo da paz, mas não lhe encontro tal simbologia, pelo contrário, se a usarmos contra outro, é porque alguma coisa perturba a paz, ou o adversário, ou nós próprios"
Sem querer exagerar nos meus juízos, atendendo aos camaradas que conheci na Guiné, com as nossos conhecimentos e capacidades intelectuais, a G.3 era uma arma de defesa que tinhamos que transportar para o mato. As armas mais importantes estavam na arrecadação das nossas mentes e é essas que hoje podemos usar num clima de liberdade, nós todos, o Henrique, o Álvaro, o J.D. e eu também. Devemos saber usá-las, sem nos magoarmos, eu acho que tu tens muita habilidade para tal e confesso que o amigo J.D. também sabe esgrimir com elegância e lealdade.

A todos um grande abraço.

Francisco Baptista

António Tavares disse...

Camarigos,
Gostei da G-3 que me deram no CTIGuiné. Estimei -a tanto que nunca a usei durante os 23 meses que fomos íntimos amigos. Estimada, limpa e por vezes engatilhada para nos defendermos. Felizmente nunca precisei da sua usança embora estivéssemos debaixo de fogo e em situações difíceis.
Espero que as “férias” que lhe dei se prolongassem nas mãos de outros camaradas. Fomos os maiores amigos naquela guerra de guerrilha.
Nunca te esquecerei, amiga G-3. Tenho fotografias tuas e um prazer indescritível ao escrever isto. Prazer que reparto contigo! Ao ler o P14408 recordei-te. No dia 22 de Março de 1972 separámo-nos. O Juvenal Amado continuou, no nosso quartel, nas matas do leste do CTIGuiné.

Hélder Valério disse...

Pois é, Juvenal

Quando a 'coisa' fica melhor explicada, os entendimentos são logo outros e isso reflecte-se nos comentários.

Relativamente à G3, propriamente dita, é verdade que ela foi a 'fiel companheira' de muitos e é perfeitamente natural que a recordem com 'ternura'.

A anterior evocação de "se eu tivesse uma G3" é que pode levar a interpretações dúbias e sobre isso já se falou bastante. Agora parece tudo muito mais claro.

Também não tive arma distribuída, apenas muito pontualmente (lembro-me de estar na cerimónia da inauguração do Quartel do Agrupamento de Transmissões, na primeira fila, a escassos 4 metros do Sr. Cmdt. Chefe Spínola com uma bichinha dessas com balas e tudo, pois foi tudo à pressa, foi acabar o turno na Escuta, pegar numa das armas que por lá havia para 'defesa' e andar depressa para a cerimónia, com muito pouco ou mesmo quase nenhum tempo de espera).

Também me lembro de que quando integrei a primeira coluna de Nova Lamego para Piche e embora à guarda dos camaradas do BCAV 2922 em que alguns dos Furriéis tinham estado comigo em Santarém, tinha uma sensação de falta de qualquer coisa nas mãos mas teve que ser!

Abraço
Hélder S.