segunda-feira, 30 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14418: Notas de leitura (698): “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2014:

Queridos amigos,

É a história de um sonhador, um militar visionário que acreditou que podia levar carros de combate para os trópicos. Os M5A1, velhos tanques da II Guerra Mundial, fizeram sucesso em Nambuangongo.

Mendes Paulo escreve uma narrativa aliciante, crónicas da sua vida de criança até à Guiné, onde arrumou as botas, e mudou de vida. Insistiu que podia levar os M5A1 para a Guiné, argumentou em vão, deram-lhe viaturas Chaimite, inadequadas.
Irá descrever, com imensa dor, a operação Mabecos, em fevereiro de 1971, foi o canto do cisne nos seus sonhos.

Elefante Dundum lê-se de um só sorvo, é prosa autêntica, não há para ali sinceridade remendada.
O senhor M5A1 fez muitíssimo bem em escrever este seu testemunho que fica para a história.

Um abraço do
Mário


O senhor M5A1: 
A história prodigiosa do Elefante Dundum (1)

Beja Santos


A obra intitula-se “Elefante Dundum – Missão, testemunho e reconhecimento”, por João Luíz Mendes Paulo, edição de autor, 2006. É uma narrativa que se devora como um livro de aventuras, o Major Mendes Paulo regista imagens da sua infância no Ródão, no Colégio Militar, na Academia, na Índia, em Moçambique, em Angola, na Guiné, onde voluntariamente pôs termo a uma briosa carreira militar. Explica o nome da obra:

“Elefante Dundum foi o nome dado pelos guerrilheiros nacionalistas da FNLA a uma máquina que surgiu imprevistamente em Nambuangongo e deu brado. Que feitiço, medo e sentir lhes provocou tão evocativo nome de batismo? Para os soldados portugueses, o Elefante Dundum era um cavalo de ferro, com lagartas e torre, cheiro a óleo e nome de mulher… esta é a história dos carros e combate M5A1, velhos tanques da II Guerra Mundial que a determinação e ousadia de um oficial do Exército fez resgatar à sucata, e dos homens que então se fizeram protagonistas construindo a aventura dos únicos carros de combate que participarem em ações de guerra em toda a história do Exército português”.

Spínola enviará Mendes Paulo a Lisboa para resgatar vários M5A1 que seriam destinados a região de Piche. Lisboa indeferiu, era armamento cedido pela NATO, desculpas de mau pagador, no mais pechincheiro mercado do armamento mundial encontrava-se esta pseudo-sucata a preço de saldo. Em contrapartida, foram viaturas Chaimite para Bissau. A seu tempo se falará do assunto.

O Major Mendes Paulo desvela-se, é homem que não tem rebuço na transparência, expõe sentimentos íntimos, é mesmo ternurento, arranca a sua prosa com se estivesse movido pelo estro poético:

“A primeira imagem é de um cão grande, malhado de branco e preto e que se chamava Tejo. Ele era grande e eu pequeno porque conseguia montá-lo sem tocar com os pés no chão. Ainda nem andava na escola. Atrás da casa havia uma serra enorme que acabava no Penouco, uma parede redonda e branca que se via cá de baixo”. 

E um dia vai para o colégio militar, para ele um tempo muito bonito, vê-se que guarda as melhores recordações. A seguir a carreira das armas, a Cavalaria está-lhe no goto, cavalos e máquinas, blindados Fox, tanques M-47. E em janeiro de 1959 é mobilizado para Goa. Em março de 1961, em Valpoy, o tenente Mendes Paulo, que vai regressar, finda a sua comissão deixa escrito algumas recomendações para o novo comandante, destaco:

“Os tempos movem-se ao sabor das políticas e um dia também podemos ficar sem Goa. Se tal acontecer podem mudar os governos, mudar a política, mas o nome de Portugal, a religião cristã, a boa relação com todos, não mudará na memória dos goeses nem na longa história comum”.

Na Academia Militar encontra pela primeira vez os carros de combate ligeiros designados por M5A1. Não será amor à primeira vista, ficará como amor serôdio. E em março de 1963 é mobilizado para Moçambique, CCAV n.º 570. Em 1965, a FRELIMO está a desencadear as hostilidades, o capitão Mendes Paulo tem muito orgulho na sua CCAV n.º 570. Regressa e teve que acompanhar as terras que pertenciam a um tio em Sarnadas e Ródão, vê-se que não desgostou. Volta ao convívio com os M5A1 em Beirolas, está de novo colocado na Academia Militar. Congemina como pode aplicar os M5A1 na guerra africana, faz exposições, há muitas objeções, que os carros eram velhos, se aqueciam aqui, nunca iriam aguentar climas mais quentes, rebate essa argumentação. É mobilizado para Angola no BCAV nº 1927, lá vão os M5A1, chegarão a Nambuangongo. Os Elefantes Dundum entram na guerra, têm nome de mulheres: Milocas, Gina, Licas. Rádio Brazzaville diz cobras e lagartos destas máquinas, Mendes Paulo tem a cabeça a prémio. João Medina, na sua História de Portugal, deixará uma referência a estas máquinas insólitas nas guerra dos trópicos:

“… os cavaleiros deitaram mão de todos os seus dotes para manterem a tradição e darem vida nova a velhas autometralhadoras Fox do tempo 2.ª guerra e conseguiram até, embora isso seja raramente referido, utilizar no Norte de Angola, carros de combate! Um capitão diligente conseguiu vencer a burocracia e as más-línguas e levar consigo tanques M5A1, exatamente iguais aos que os canadianos haviam utilizado na conquista de Paris aos alemães”.

Mendes Paulo frequenta o curso de oficial superior, a seguir é promovido a Major e mobilizado para a Guiné com o BCAV n.º 2922, é o oficial de operações. O batalhão vai operar a partir de Piche, vasto território onde cabem Canquelifá e um destacamento em Dunane; no eixo norte, Cambor era também importante; em caso de ataque, a artilharia de Piche podia alcançar Cambor e a de Canquelifá chegava a Dunane. E escreve:

“No eixo Leste era Piche, Ponte Caium, Camajabá e Buruntuma. Ponte Caium dependia da Companhia de Piche, Camajabá da de Buruntuma, mais uma vez meia dúzia de homens-soldados comandados pelos alferes. Ponte Caium tinha de ser rendida a cada três semanas pela necessidade de géneros e água, mas também – talvez acima de tudo – porque seria esse o máximo de tempo que, psicologicamente, o destacamento podia aguentar. Ainda hoje quando me dizem que estiveram na Guiné e conheceram Leste eu costumo perguntar: - Como era Ponte Caium? Se me dizem que era o maior ‘buraco’, uma ponte com trinta metros de comprimentos, dois abrigos à entrada e dois à saída, dia e noite passado nos limites do espaço, do tempo, na expetativa do ataque – quando este começava, já estavam cercados por todos os lados porque ali não havia milícias nem tabanca, nem pista de aviação ou possibilidade de retirada…”.

Descreve também Piche: era um quartel novo, com razoáveis instalações para a CCS e para mais duas companhias operacionais. Tinha água canalizada e gerador elétrico, era bem melhor que Nambuangongo. O primeiro ataque foi para nos testar. Vieram pela pista de aviação com morteiros 82, RPG-7, metralhadoras pesadas e as inevitáveis Kalash e PPSH. Apesar de todas as recomendações anteriores, foi um festival de fogo-de-artifício. As instalações do quartel incluíam trincheiras, base de fogos do morteiro 81, três peças 11,4 e as habituais casernas, messe, cozinha e posto de socorros, tudo rodeado por arame farpado, com a respetiva Porta de Armas. A povoação de Piche envolvia o quartel do lado Sul e todo o perímetro da povoação era protegido por abrigos enterrados, 13 ao todo, em ligação com as trincheiras, com holofotes, metralhadoras e contacto via telefone e rádio para o posto de comando. Em caso de ataque, só os tais abrigos da periferia abriam fogo, quando atacados diretamente ou à ordem, para alvos já referenciados”.

Buruntuma estava dias e noites inteiras debaixo de fogo dos morteiros 120, retaliava-se com os morteiros 107, os nossos maiores morteiros. Ocorre um ataque brutal a 25 de novembro de 1971. Dois dias depois, Spínola aterra num Dornier na pista de Buruntuma. Manda juntar todo o pessoal, milícias e população. Nesse momento seis Fiat G-91, rasam Kandica, e depois ouviram-se enormes rebentamentos em Sofá, a base do PAIGC. Spínola falou às populações locais: - "Viram o que aconteceu? Agora vão dizer aos do lado de lá que se tornam a fazer outro ataque com morteiros, mando o dobro dos aviões e o dobro das bombas!”

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14411: Notas de leitura (697): "Império Ultramarino Português", Empresa Nacional de Publicidade, 1950 (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Valdemar Silva disse...

Eu estive lá. Eu estive na Ponte Caium. O meu 4º. Pelotão da CART 11 foi lá fazer um reabastecimento. Ainda me recordo como era 'aquilo' e da cor bronze-amarelada dos soldados. Como foi possível uma 'coisa' daquelas?. Como é aqueles homens aguentavam viver naquelas condições? Que filme extraordinário se fazia enaltecendo o sofrimento daquela tropa.
Mais uns anos de vida para os que estiveram na Ponte Caium.
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Eu estive lá. Eu estive na Ponte Caium. O meu 4º. Pelotão da CART 11 foi lá fazer um reabastecimento. Ainda me recordo como era 'aquilo' e da cor bronze-amarelada dos soldados. Como foi possível uma 'coisa' daquelas?. Como é aqueles homens aguentavam viver naquelas condições? Que filme extraordinário se fazia enaltecendo o sofrimento daquela tropa.
Mais uns anos de vida para os que estiveram na Ponte Caium.
Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Conheci o Sr. Major Mendes Paulo.

Era o "Major de Operações" do BCAV2922, em Piche, quando estive lá, de Dezembro de 1970 a finais de Maio de 1971.

Sim, isto que é descrito aqui brevemente, relativamente a ser um forte impulsionador da Cavalaria, era muito falado por lá.
Dizia-se que era um dos 'homens de confiança' de Spínola.
Dizia-se que estava fortemente apostado em levar para lá, para o Leste da Guiné, 'carros de combate'.
Dizia-se que a ida das "Chaimites" era o resultado da sua insistência... afinal, parece que não era bem isso que pretendia.
Seja como for, a "tal" operação "Mabecos", que eu referi aqui no Blogue quando enviei um texto sobre o Carnaval, festividade em 1971 em que ocorreu essa Operação, foi de facto decisiva para a sua carreira.
Nessa ocasião, como rescaldo da mesma, quando regressou ao Quartel, fechou-se deliberadamente no quarto, tendo antes arrancado os galões e dizendo que só sairia de lá quando Spínola fosse lá falar com ele. E de facto isso aconteceu.
Na minha opinião não teve responsabilidade no que aconteceu. Havia 'patentes' acima e essas recusaram-se a tomar as medidas necessárias. Como consequência.... correu mal!

Sobre a "Ponte Caium" já temos, felizmente, algumas fotos e depoimentos aqui no Blogue.
São de facto ilustrativos das dificuldades vividas e as palavras que Mendes Paulo diz são perfeitamente justas.

Hélder S.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Fui instruendo do cap. Mendes Paulo e, mais tarde, encontrámo-nos em Cascais, estando eu na Cidadela e ele a dirigir o Clube de Campo D. Carlos I.
Li o livro e creio que também está acompanhado por um CD. O livro é muito autêntico e descreve alguns aspectos da guerra, especialmente na Guiné, que devem ser tidos em conta numa apreciação dos acontecimentos.
Creio que lá se fala dos primeiros testes com as Chaimite que além de chegarem tarde, não eram aquilo de que precisávamos.
É pena que não tivéssemos podido recebê-lo aqui no blog pois era uma colaboração descrita preciosa.
Um Ab.
António J. P. Costa