segunda-feira, 11 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14597: Notas de leitura (711): "O Outro Lado da Guerra Colonial", por Dora Alexandre, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
O outro lado da guerra não precisa de ser visto com olhos coloridos, nem tudo é diversão nem constituído pelo bizarro ou pelo insólito. Para muitos, era a primeira viagem de barco, havia o inesperado do embate dos costumes, usos e gentes. Nesse outro lado da guerra inventaram-se ofícios, nasceu o temor reverencial pela mata e perigos recônditos, descobriu-se que a guerra era urdida com infinitas perícias, com barcos zebro, com o tratamento de informações, com maqueiros e transmissões, com tropa em destacamentos e forças especiais, havia o bendito helicóptero e as benditas enfermeiras. Faziam sinos, melhoravam as suas instalações, erguiam-se memoriais aos mortos, cultivavam-se rivalidades, os cozinheiros sofriam as iras de quem queria um rancho melhorado, uma coisinha diferente.
Dora Alexandre fez 50 entrevistas e deixa-nos aqui uma molhada de peripécias a que não ficamos indiferentes. Até aparece o cabo Domingos, conhecido como Belle Dominique.
Não sei se é bem o outro lado da guerra, mas há aqui muitas recordações felizes, muitas saudades da camaradagem de antanho.

Um abraço do
Mário


O outro lado da guerra colonial, por Dora Alexandre

Beja Santos

A autora adverte-nos logo no limiar da conversa de que não é um livro convencional sobre aquelas guerras de África que mobilizaram mais de um milhão de jovens, entre 1961 e 1975: “Não se centra nos conflitos, não explica os bastidores ou a estratégia militar. Mas é um livro sobre a vida durante a guerra. Apesar dos momentos menos bons que muitos terão vivido, os militares portugueses não passavam os dias a lamentar a sua sorte. Souberam adaptar-se às circunstâncias, ser fortes, encontrar soluções criativas e trazer de lá momentos que vale a pena recordar”.

Primeiro, aquelas viagens de barco, para alguns de avião, as despedidas dolorosas, os enjoos, a expetativa do desembarque. E depois a descoberta de uma nova realidade, o embate perante gentes e costumes, o deslumbramento com a fauna e a flora, os mosquitos, o calor infernal, as formigas construtoras de bagabaga, a marabunta, as formigas devoradoras, os tornados, as chuvas diluvianas, os arrozais, as florestas espetaculares.

Segundo, a diversidade de fazer a guerra, as tropas em destacamentos, vivendo como em ermitérios, abastecidas sabe Deus como, as tropas especiais, os fuzileiros com as suas lanchas e os seus zebros, guerras com muitos tiros ou muito poucos, e as múltiplas especialidades, desde as transmissões, passando pelos maqueiros e cozinheiros até às autometralhadoras, os batismos de fogo, o primeiro morto do nosso grupo de combate, os hinos e cantigas para animar a malta, é um repositório de peripécias de que se escolhe uma, felizmente com um final feliz.

Era conhecido pelo Vila de Rei, um soldado muito alto em bem constituído que andava para ali cheio de febres altas e tremores. Combatia a doença indiferente aos tiroteios e morteiradas constantes. “A dada altura, quando a Companhia de Paraquedistas 121 estava dentro do perímetro de Gadamael-Porto, presenciou o cúmulo do azar: uma granada acertou precisamente na palhota onde estava o soldado doente, deixando-a completamente destruída. Nem queriam acreditar… Dentro da vala onde se protegiam do ataque inimigo, os paraquedistas entreolharam-se, consternados, comentado o infortúnio do rapaz por quem, infelizmente, já nada havia a fazer. A granada acertara-lhe em cheio. Eis que, para surpresa de todos, viram então chegar o suposto defunto a arrastar o físico a muito custo, e a ficar especado e incrédulo perante a destruição do local onde tentava curar-se do paludismo: tinha ido à casa de banho…”.

A vida no mato tinha a ver com toda esta diversidade e as respostas que as unidades encontravam, melhorando o conforto, cultivando hortas, dando assistência médica às populações, assegurando a defesa com fortins, arame-farpado, valas, abrigos para os combustíveis e viaturas.

Quarto, era um mundo de logística complicada, por vezes os reabastecimentos eram verdadeiras operações, os cozinheiros tinham que imaginar menus com ingredientes intragáveis, como a dobrada liofilizada, e os quartéis sujeitos a flagelações permanentes tinham que receber as munições na manhã seguinte, lá vinham os helicópteros. Logística complexa, e também prestadores de serviços desvelados, caso dos médicos e dos enfermeiros nos hospitais da retaguarda.

Quinto, as diversões, a procura de sexo, o ensino das primeiras letras aos soldados praticamente analfabetos que não podiam abandonar a tropa sem o exame da 4.ª classe. Ficamos aqui com um quadro bem completo que como se desanuviava o espírito em tempo de guerra, imitando touradas, indo à caça, ouvindo música, escrevendo aerogramas. E um dia a guerra acabou, nuns casos houve conversações amistosas com os inimigos de ontem, como na Guiné, noutros assistiu-se à eclosão da guerra civil, como em Angola, com os seus cenários dantescos.

Dora Alexandre em 50 entrevistas registou memórias e vivências especiais e soube vazá-las numa reportagem animada, colorida, onde entram artistas, militares de carreira, somos tomados por histórias insólitas, algumas bem divertidas, casos de boémia desopilante e até entra no saco das memórias o cabo Domingos, conhecido como Belle Dominique, um travesti que deu muito que falar. Uma interessante recolha de peripécias e recordações… porque há memórias da guerra que nunca se apagam, mesmo que não metam mortos nem feridos.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14586: Notas de leitura (710): "Cabra Cega - Do seminário para a guerra colonial", por João Gaspar Carrasqueira, Chiado Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

jpscandeias disse...

O resumo abre o apetite. Das doenças, para além das referidas, destaco a micose e a lica que era comum a todos os combatentes. E matacanha em alguns. Na Guiné. Sobre o travesti- recordo que havia na CART 3493, penso não estar enganado, um soldado de nome Tony que tinha o nome encapachado num unimog 414. O Tony gozava de bastante popularidade no meio castrense. Soube da sua existência por conversas de caserna. Mas apenas o vi uma vez à porta do hospital militar de Bissau, em 1973. Distinguia-se dos demais pela sua cabeleira longa (em termos militares)de loiro pintado. E também pela sua indumentaria, mesmo quando fardado. Todos, ou quase todos, acabamos por ter vivido algumas das situações que deduzo, pelo que já li, estarem plasmadas no livro.
Irei compra-lo quando for a cidade grande, lisboa. Depois talvez emita aqui a minha opinião. Já agora só um reparo, são referidas várias especialidades mas a que existiria em maior número, atirador, infante, cavaleiro ou artilheiro não aparece.


João Silva, ex-Furriel Mil, At. Inf. CCaç 12, Bambadinca e Xime, 1973

Hélder Valério disse...

Já comprei.
Vou ler.
Claro que há sempre "um outro lado" pois 'nem só de pão vive o Homem' nem só de tiros e emboscadas e golpes de mão se fez a guerra.
Como se ressalta, tanto na introdução da autora como nesta do Beja Santos, ficamos a confirmar que, para uma larga maioria, sobrevivente, para além dos momentos amargos, que todos tiveram, mais ou menos intensamente, ficou o registo da camaradagem, da solidariedade, da lembrança dos bons momentos e é isso que todos os anos origina o forte impulso que motiva as reuniões e os Encontros que se fazem por todo o País.

A guerra foi má. As guerras são más. Fica a amizade e o sentimento de superação.

Hélder S.