segunda-feira, 25 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14660: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (48): Avião amigo ou inimigo!?

MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (CHERNO BALDÉ)

48 - Avião amigo ou inimigo!?

No decurso da guerra colonial na Guiné, a presença de um avião no céu podia engendrar diferentes interpretações na cabeça das pessoas cá em baixo, dependendo do lado da trincheira em que se encontravam. Do lado da trincheira portuguesa, junto dos aquartelamentos, o avião apresentava-se com uma cara amiga e era sempre bem vindo, uma providência divina que tanto podia trazer correio, comida, ou salvar vidas em zonas isoladas e de difícil acesso no mato.

De todos, o mais conhecido terá sido, sem sombra de dúvidas, o helicóptero dos olhos de vidro (Alouette III), cujo som, inconfundível, no meio de todos os ruídos terrestres, começava por nos entrar furtivamente aos ouvidos em forma dum ligeiro zumbido de insecto voador, transformando-se paulatinamente num put-put-put em crescendo para de seguida inundar o espaço com o seu bruaaa infernal que envolvia e barafustava tudo e todos na voracidade das suas potentes hélices, agitando e revolvendo a massa de ar a sua volta.

Aiihh!.., o medo que sentíamos por aqueles que se atreviam a aproximar-se de uma dessas máquinas em movimento. Que dizer do impressionante cenário de ver o Gen. Spínola a descer ou a entrar num desses helis, o corpo firme e hirto como o poilão gigante das nossas savanas, chefe militar e homem-grande que encarnava as nossas ilusões de guerra e de paz. E que dizer, ainda, da espectacular e inesquecível descida de um grupo de tropas especiais (Marcelino da Mata?) de uma coluna de helis em pleno voo, rumo ao Oio. Bravura inabalável de uma juventude indómita ou simples ‘cretinice’ de jovens inocentes!?...

DO 27 em Guileje / Foto de José Neto (2006) /
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Muito difícil de detectar eram as pequenas avionetas [, DO 27,]  que pela insignificância das hélices ou dos motores e quais finas borboletas esvoaçando ao vento entravam no nosso raio de visão muito antes de ouvirmos o ruído dos motores. Pousavam levemente na pista de terra e de seguida, qual avestruz endiabrada, iniciavam uma corrida desenfreada dando uma volta completa antes de estacar a nossa frente. Em muitas ocasiões, conseguiam surpreender a vigilância dos nossos ouvidos atentos de crianças de guerra.

Já os aviões a jacto [, Fiat G91,] eram mais matreiros, conseguindo sempre fintar-nos pois, quando o som se anunciava repentino e levantávamos os olhos para o céu já eles estavam fora do alcance da nossa visão, mostrando, da forma mais insolente, a negrura do seu traseiro que cuspia fogo e fumo prateado. O destino era invariavelmente o nordeste da Guiné, Canquelefá, Pitche, Buruntuma, onde o inimigo teimava em infiltrar-se perniciosamente.
Para os que se situavam doutro lado da trincheira, o avião, em geral, era sinónimo de terror e constituía o maior perigo com que se podiam confrontar no meio do mato cerrado ou, pior ainda, numa zona aberta como as lálas e bolanhas. Atravessar uma bolanha, naqueles tempos de guerra, podia ser tanto ou mais difícil do que atravessar as águas do Geba ou do rio Corubal a nado.

Todavia, também existiam situações intermédias e menos conhecidas como por exemplo de pessoas que não se situavam em nenhuma das duas trincheiras ou se situavam numa mas que, ao mesmo tempo, por razões diversas eram obrigadas a frequentar, com certa assiduidade, o outro lado da trincheira, em território considerado de zona inimiga.

Os fulas em geral e os fulas forros em particular (magricelas e com pele mais clara), onde quer que se situassem, entravam sempre nesta situação particular e dúbia de não se conformar com as restrições e/ou imposições absurdas da guerra que complicavam, sobremaneira, a prática da sua principal actividade económica que era a pastorícia. E conscientes da impossibilidade real de fazerem compreender aos comandantes e chefes de guerra brancos que a criação de gado bovino não se compadecia com o sedentarismo dos arames farpados e que a divisão do território e a criação de zonas de segurança complicava a vida dos ganadeiros fulas, que frequentemente eram obrigados a violar, de forma escamoteada e silenciosa, as restrições impostas pelas hierarquias militares.

Assim, ainda crianças, éramos preparados a contornar estas ordens de forma a penetrar nas áreas proibidas onde o pasto era mais abundante e favorecia os nossos animais, sobretudo na época das chuvas (de Junho a Novembro). A preparação consistia em ensinar crianças dos 7 aos 12 anos a identificar os possíveis perigos ai existentes e as formas de os abordar.

Relativamente aos perigos do tipo animais ferozes (a onça e o leão) ou a presença de militares (fossem guerrilheiros ou milícias do lado português) a técnica era fugir primeiro e verificar depois, fugir ao menor movimento dos animais e mais tarde verificar o que teria sucedido.
O ruído, o cheiro, o estado dos animais, os excrementos, as marcas no chão e nas folhas das árvores eram sinais que nunca mentiam. Mas, também, acontecia, fugirmos em consequência de um alarme falso motivado pela presença de um animal menos perigoso, como as cobras, giboias ou babuínos que espantavam o gado.


Fiat G91. Foto: Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné
Uma vez, lembro-me de termos fugido depois de uma agitação dos animais e quando chegamos a casa fomos obrigados a retornar a floresta à procura dos mesmos pois que a justificação dos factos não fora suficiente para convencer a experiência dos mais velhos. No caminho cruzamos com as vacas que regressavam seguindo a sua rota habitual guiadas pela cabecilha da manada reconhecível através dos seus longos chifres compostos em forma de um arco. No mato, homens e animais complementam-se mutuamente, combinando harmoniosamente a razão com o instinto, a coragem com a persistência mas, nós tínhamos sido simplesmente cobardes, fugindo à investida de um porco-de-mato.

Mais complicado em tudo isso eram, certamente, os aviões que apareciam de repente e aos quais não havia formas de comunicar para que soubessem que não éramos os “bandidos” que eles procuravam e que a nossa presença ali, em território inimigo, se explicava pela simples razão de que éramos pastores e vivíamos do pasto e estávamos a lutar pela sobrevivência dos nossos animais, única riqueza do nosso povo. Nesses casos, a nossa única esperança era que, mesmo que o avião nos tivesse visto, o que era uma forte probabilidade, não tivesse motivos suficientes para voltar atrás e perscrutar e muito menos para assumir uma posição de ataque contra nós, pobres pastores presos na lógica destruidora de uma guerra sem fim. O que se recomendava fazer nesse caso era procurar um abrigo qualquer, um buraco de baga-baga ou então dissimular-se nos arbustos, ficar quieto e esperar. Sobretudo não olhar para cima porque, diziam, a testa podia reflectir a luz do sol e denunciar a vossa presença.

Em virtude desta situação dúbia e muito complicada e ao longo da guerra perderam-se muitas cabeças de gado que as populações não podiam reclamar junto das autoridades militares tanto do lado da guerrilha como do lado português, e que muitas vezes era considerado “butin de guerre” pelas razões aqui expostas. Algumas vezes as perdas eram inestimáveis podendo incluir os próprios pastores, surpreendidos em plena floresta, porque se as milícias do lado português contentavam-se com o espólio dos animais, os guerrilheiros procuravam levar não só os animais mas também os jovens pastores a fim de engrossar as suas fileiras.

Heli Al III. Foto de Humberto Reis (2006) /
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Mas, felizmente, e aqui digo “djarama abion” ou melhor “Djarama djoma abion” porque aquilo que mais temíamos no mato, fazendo sol ou chuva e às vezes durante a noite e seguindo incansavelmente os trilhos dos nossos animais, nunca chegou a acontecer, pelo menos connosco, isto é ser alvo de um fogo amigo no interior de um território inimigo. Se calhar porque os aviões eram mais inteligentes que os morteiros ou obuses, que na nossa linguagem de crianças chamávamos “abus” o que, se calhar, não estava longe da verdade, isto é “abuso de morteiro” ou fogo amigo transformado em fogo inimigo."

Notas:
Tradução das palavras em língua fula:
'Djarama abion' = obrigado avião.
'Djarama djoma abion' = obrigado ao dono do avião (tradução directa) o que em português quererá dizer - obrigado aos (nossos) pilotos de avião.

Bafatá, Maio de 2015
Cherno Abdulai Baldé

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Observ - As fotos que não são do nosso blogue, foram enviadas  pelo Cherno Baldé, seleccionadas da Net, sem indicação da fonte.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

6 comentários:

Luís Graça disse...

Sem dúvida, uma belíssimna homenagem aos pequenos e corajosos pastores fulas que, apesar da guerra, sabiam levar às suas mandas a pastar, por vezes longe das suas tabancas e trazê-las a casa, sãs e salvas...

São estes relatos encantadores, da infância do nosso Chcio, menino e moço de Fajonquito, que um dia vão ter que aparecer em livro, numa antologia de textos do Cherno Baldé...

Oxalá a gente possa arranjar um editor generoso que ponha o livro cá fora!...

É bom voltar a ler-te, amigo e irmãozinho!

Anónimo disse...

É, é muito bom ( como bem dizes Luís) ouvir o nosso Cherno. Ele abre-nos os olhos para aspectos da guerra que, naquela ânsia de vermos o tempo passar, nunca percebemos muito bem. Bem gostaria que o Cherno viesse aqui falar de outros assuntos, por exemplo:o significado de tuga, a questão dos filhos da guerra etc.
Um abração Cherno
Carvalho de Mampatá.

Luís Graça disse...

Ó Carvalho, o Cherno tem escritos sobre esses temas (postes, comentários...): o significado de tuga, o problema dos filhos da guerra, etc. Vou tentar recuperar esse material. Um abraço. Luis

Henrique e Dulcinea disse...

Cherno Baldé.
Tens o dom de escreveres textos simples e de tal modo descritivos que me faz sentir dentro da personagem.É incrível que o teu texto se refira a sentimentos e sentidos ,vividos como população ou seja pequenos pastores e ao mesmo tempo fazeres com que as minhas lembranças em especial no mato como militar e em relação aos ruídos dos aviões e não só.Pois que me habituei a reconhecer grande parte dos ruídos do mato assim como os cheiros mais característicos e em boa verdade ajudado a compreende-los pelos nativos teus conterrâneos.
Enfim amigo Cherno ,obrigado pelo teu texto,mais uma vês me trazes lembranças que na maior parte das vezes foram agradáveis enquanto estive obrigatoriamente na Guiné.
Um abraço grande Cherno.
Henrique Cerqueira

Cherno AB disse...

Caros editores,

O ultimo paragrafo do texto apresenta uma troca de frases que, certamente, pode dificultar a compreensao do mesmo. Junto reenvio o formato original como segue:

" Mas, felizmente, e aqui digo “djarama abion” ou melhor “Djarama djoma abion” porque aquilo que mais temiamos no mato, fazendo sol ou chuva e as vezes durante a noite e seguindo incansávelmente os trilhos dos nossos animais, nunca chegou a acontecer, pelo menos connosco, isto é ser alvo de um fogo amigo no interior de um territorio inimigo. Se calhar porque os aviões eram mais inteligentes que os morteiros ou obuses, que na nossa linguagem de crianças chamávamos “abus” o que, se calhar, não estava longe da verdade, isto é “abuso de morteiro” ou fogo amigo transformado em fogo inimigo."

Notas: Traducao das palavras em lingua fula.

'Djarama abion' = obrigado aviao.
'Djarama djoma abion' = obrigado ao dono do aviao (traducao directa) o que em portugues querera dizer - obrigado aos (nossos) pilotos de aviao.

Caros amigos,

Muito obrigado pelos vossos comentarios, como ja tive oportunidade de dizer noutras ocasioes, o facto de termos vivido durante muito tempo no meio de um conflito armado, obrigava-nos a desafiar de forma permanente muitas das restricoes impostas pela propria situacao da Guerra, o que, por sua vez, engendrava confusao e muita desconfianca no seio dos proprios militares em especial dos nossos amigos e aliados metropolitanos.

Durante as minhas primeiras tentativas de arranjar amigo e assim poder entrar no quartel, lembro-me de um soldado branco que se aproximou do arame farpado e perante a nossa curiosidade com mistura de ansiedade de conseguir um pedaco de pao, perguntar-nos:

- Voces sao turras, nao eh? (na altura nao compreendiamos a lingua e nem sequer sabiamos o que ele queria dizer com a palavra 'turra'. Perante esta pergunta directa e julganbdo nos tratar-se de qualquer coisa para comer, a nossa resposta foi instantanea).

- Nao, batata! (Ainda hoje, quando me lembro deste episodio fortuito, fico convencido que melhor resposta nao podiamos dar, naquela altura, pois que, aos olhos do branco era sempre melhor comer batata do que ser confundido com 'turra'.

Amigo, Carvalho de Mampata,

Quanto a tua questao, eu concordo com a sugestao do Luis Graca de trocar as expressoes 'filhos de vento' vs 'filhos de tuga' por "filhos da Guerra". Fico feliz e, de certo modo, aliviado em saber que alguma coisa esta a ser feito para ajudar a aliviar o peso de consciencia de um lado e de outro e no fundo, de todas as geracoes anteriores, quem eh que nao seria filho da Guerra colonial?

Um abraco amigo
,



A nossa situacao

Anónimo disse...



Meu amigo também fui na infância e adolescência um guardador de vacas mas em lameiros e vales longe das florestas e bolanhas da tua África para onde fui enviado a fazer a guerra sem suspeitar que tu ainda criança, nesse tempo, já arriscavas a vida para alimentar o gado da família. Na conversa difícil e com um retorno precário entre nós a natureza e os animais as nossas almas sonhavam com outros mundos mais pacíficos, divertidos e comunicativos. Porque meu amigo a vida dos pastores, mesmo sem guerra, é uma vida de solidão, mais própria dos monges, dos místicos e dos santos de todos os credos.
Em Aldeia Formosa conheci, um velho ancião respeitável, talvez um santo, talvez um místico, chamado Cherno Rachid, teu avô penso eu, corrige-me se estou errado.
Para ti e para todos esses meninos pastores do teu tempo, dessa Guiné sacrificada pela guerra e outros males dedico um poema que Fernando Pessoa, esse grande poeta escreveu, quando foi o Alberto Caeiro "guardador de rebanhos" :

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho. ....

O poema continua é belo e longo como os dias solitários dos pastores, para uns mais calmos, para outros mais perigosos pelo ruído dos aviões e de outras armas de guerra.

Um grande abraço
Chico Baptista