sexta-feira, 12 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14737: Notas de leitura (727): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
É uma felicidade dispormos de esplêndida literatura nos diferentes teatros de operações.
A Guiné é a nossa estrela polar, mas temos tudo a ganhar em identificar as pepitas alheias.
Este livro de António Brito é um monumento, vaticino-lhe um futuro com grandes audiências. É uma escrita desmedida, onde se entremeiam o patético, o doloroso, o melhor do ser humano, o mistério do heroísmo, as doçuras da camaradagem e as imagens mais negras do militarismo.
Vende-se a preço abordável, ficam já a saber. E asseguro que ninguém ficará desapontado com este contrabandista que assinalará grandes façanhas, conhecerá sofrimentos inenarráveis, tudo dentro dum extremo e numa bipolaridade que nos toca o coração.

Um abraço do
Mário


Olhos de Caçador: Livro soberbo, o poliedro das brutalidades da guerra (2)

Beja Santos

“Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014, é um livro inesquecível: pelo vigor das reconstituições, pela convocatória permanente da linguagem da caserna, pela abordagem sem reservas dos estados de alma, tocando em todas as teclas desde o sublime à mais degradante miséria.

Escreve-se nos dados curriculares que Brito nasceu em Coimbra e é licenciado em Direito. Antigo combatente da guerra colonial, aos 18 anos alistou-se nas Tropas Para-quedistas, sendo mobilizado para Moçambique onde combateu nalgumas das mais importantes operações militares contra os guerrilheiros nacionalistas. Figura central do romance é Zé Fraga, contrabandista e passador de emigrantes, mobilizado à má-fila. Tem todos os ingredientes para se adaptar às durezas do mato, irá tornar-se na referência de coragem e liderança da sua companhia de caçadores, colocada em Magolé. Zé Fraga tem amigos e gente que lhe vota um ódio tremendo, caso do capitão Vinhais, alcunhado de Galo Doido. Já foram praxados em Magolé, Zé Fraga, enojado com o comportamento timorato de Galo Doido durante a flagelação, quer partir. São dois amigos, o alferes Perdigoto e o sargento Bezerra, que o dissuadem.

O fundamental é pôr Magolé ao nível de um aquartelamento seguro. Trabalhou-se assim:
“Riscámos no solo um quadrado com 150 metros de lado. Cada um dos quatro pelotões instalou-se para construir e tomar conta do lado que lhe foi destinado. A nós calhou-nos um pedaço de terra plana que em tempos parecia ter acomodado uma machamba, a avaliar pelos pés de mandioca e inhame mirrados que ainda despontavam das ervas. Só vos digo que durante dias cavámos uma trincheira, em ziguezague, com um peitoril de terra virado para fora, digna do Front de Verdun. Uns metros à frente, enterrámos estacas para fixar a barreira de arame farpado, que foi crescendo como um cordão de videiras, de onde pendiam pontas aceradas, em vez de uvas. As minhas mãos, treinadas para coisas suaves como premir o gatilho e apalpar as mamas das mulheres, foram torturadas pelo cabo da picareta e pelos bicos do arame. Trabalhávamos por turnos como nas minas de volfrâmio, de calções e tronco nu. Parecíamos personagens de um filme bíblico sobre escravos do Egipto. Em vez de erguermos pirâmides, cavávamos bunkers para nos enfiarmos. Em vez de areia do deserto, derrubávamos a floresta, omnipresente, com machados e cargas de trotil. Em vez do faraó a acoitar-nos, tínhamos os ataques de fúria do Galo Doido, insultando os soldados de preguiçosos e calaceiros. Em vez das pragas e gafanhotos, tínhamos os ataques de morteiros e as nuvens de mosquitos devorando a pele”.

Assegurou-se a segurança. Começam os patrulhamentos, e um dia Zé Fraga mata um guerrilheiro:
“Caminhava curvado, apanhando do chão para dentro de um cesto feito de folhas de palmeira entrançada, as castanhas de caju caídas das árvores. A arma permanecia em repouso no ombro, pendurada pela bandoleira. Caminhava descontraído. Avançava de árvore em árvore como um barco de ilha em ilha. Rondava uma, apanhava o caju, seguia para outra. Eu olhava para ele, fascinado, na esperança de que passasse ao lado. Mas não. Viu as ramadas escorrendo até ao chão e deve ter imaginado uma boa provisão de frutos debaixo delas. Avançou, apertando as folhas com as mãos para espreitar para dentro. Não viu caju. Viu-me a mim. Ainda esboçou um gesto para levar a mão à Simonov. A boca da G3 estava a um metro dele mirando-lhe o peito nu. Apertei o gatilho e a bala rebentou-lhe com o esterno, fazendo voar pedaços de osso, num esgar que tinha mais de estupefação do que dor”.

Zé Fraga pode ser malandro e viver de expedientes, mas não mata crianças. Haverá um assalto a um acampamento da FRELIMO, Zé Fraga deixa fugir uma miúda. Regressam com troféus, desde canhangulos, passando por facas rombas até uma PPSh-41. Por ter deixado escapar a miúda, o Galo Doido recambia Zé Fraga para o Posto 36. Estão aqui páginas impressionantes, entre as melhores que Brito escreve neste livro:  
“Oficialmente, o Posto 36 era uma guarnição avançada no cimo duma colina, a um dia de marcha de Magolé, não muito longe do corredor da guerrilha que conduz à Tanzânia. Antes da guerra, era ali que se situava um depósito de água com o número 36 pintado num dos lados, onde as populações se abasteciam nos tempos de seca. No primeiro ano de guerra, o depósito foi destruído. A floresta apossou-se do local e o posto de água deixou de figurar nos mapas do planalto dos Macondes. Só os caçadores indígenas, os guerrilheiros e os batedores do Exército sabiam onde conduzia um desvanecido carreiro que partia do Chai para Magolé e depois se perdia na floresta como um fio de água nas areias. Para o Exército, o local era somente um posto avançado, a meio caminho entre o aldeamento de Miteda e a serra Mapé. Mas os soldados conheciam-no pelo tenebroso nome de Matadouro, tantas e tão frequentes eram as baixas que os iam atingindo. Foi para ali que o Galo Doido me enviou com uma punição de cinco meses”.

São descrições análogas à que vimos no filme Apocalypse Now. Uma descrição épica, aquela marcha com carregamento suplementar, com imprevistas chuvas diluvianas. Os soldados vivem em buracos, disparam para a mata quando lhes apetece. “Ao simularem ataques do inimigo, aqueles homens só vagamente lembravam um grupo organizados de soldados. Mais pareciam uma quadrilha de malfeitores fugidos das autoridades”. São finalmente recebidos por um tenente que fica furioso quando descobre que não trouxeram cerveja fresca, quando tinham trazido tudo que era essencial para a reparação do gerador. Brito é elaboradamente excessivo, agarra o leitor pela gola tratando o horrendo como se fosse trivialidade: “Em redor de montículos de insetos caídos por terra, mortos pela luz dos candeeiros, encontrei dois gajos barbudos recolhendo os insetos maiores, levando-os para cima duma chapa aquecida na fogueira. Os bichos, postos a grelhar, libertavam um cheiro estranho, como se estivessem a chamuscar alfazema e rosmaninho. Os mais gordos rebentavam libertando um líquido esverdeado que se espalhava a fumegar pela chapa quente. À medida que arrefeciam, os barbudos metiam-nos na boca, mastigando-os com deleite. Viram-me especado a olhar para eles e ofereceram-me um inseto gordo, carbonizado, que recusei, abandando a cabeça enojado. Ante a minha repulsa, um deles comentou: - Este ou é muito fino ou não tem fome. - Nem esfomeado eu comia essa merda verde – respondi-lhe”.

O posto 36 anda à deriva, não tem rotinas, não há plano de tarefas. Quando se comia, aparecia quem queria, quem não queria não aparecia. A higiene estava diretamente dependente do nível de água dos bidões de reserva. Tudo se improvisava, quando há flagelações incendeiam-se uns montículos de lenha previamente dispersos em redor do arame. Os frelimos andam por ali à solta. Os acidentes gravíssimos sucedem-se. Zé Fraga descobre num bunker o capelão Tomé, devorando pela febre do paludismo. Irão ter discussões acesas sobre os assuntos do céu e da terra. Zé Fraga descobre, aturdido, que os soldados do posto 36 guardam bocados de guerrilheiros e um dia dão-lhe uma sandes de coirato que ele irá descobrir ter comido uma orelha humana.

(Continua)
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Notas do editor

Primeiro poste de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14730: Notas de leitura (726): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte II (Francisco Henriques da Silva)

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