domingo, 28 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)

Vigésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Glória, Lola, a Ruça (4)

Hoje, fomos à pesca na praia, uma cadeira, duas canas de pesca e uns calções já um pouco usados, mesmo quase rotos, mas são os nossos preferidos. Estava um pouco de nevoeiro, não havia peixe, ou se havia andava farto, não pegava na isca, era quase como se as canas de pesca estivessem no nosso quintal, já havia dificuldade em ver a ponta das canas de de tanto olhar. Tirámos a t-shirt para apanhar algum sol no corpo, quando o nevoeiro desaparecia por algum tempo. Começámos por ler um livrito, só para entreter, a Glória aparece, cedemos- lhe a cadeira, sentando-nos num pequeno balde que sempre nos acompanha quando vamos à pesca, que virámos ao contrário. Ela, com aqueles cabelos já grisalhos, mantendo aquele sorriso jovem, apesar de já andar há umas dezenas de anos os tais “entas”, continua a contar-nos a sua história. Cá vai.

Se ainda estão lembrados, o Jorge e a Glória iam a caminho da fronteira com os USA, para a atravessarem clandestinamente, os mensageiros que os acompanhavam, no local que entendiam que era o certo, pararam, explicaram as últimas instruções, a porta da pequena camioneta, abriu-se, já era noite, saíram todos ao mesmo tempo, com a ordem de correrem o mais que podiam naquela direcção, pois do lado de lá daquelas pequenas montanhas era os Estados Unidos, onde alguém os ia contactar. Boa sorte.

A Glória e o Jorge correram abaixados, o Jorge tropeçou numa pedra e caiu, a Glória parou, vem para trás, ajuda o marido a levantar-se, pega-lhe na mão e arrasta-o atrás de si, como fazia aos irmãos em pequenos, e diz-lhe:
- Anda Jorge, esta é a oportunidade da nossa vida.

Dando-lhe coragem, correram e caminharam por mais de uma hora, com os jovens brasileiros sempre atrás, os outros companheiros deixaram de se ver, não sabem se tomaram outra direcção, ou se foram parados pela polícia de fronteira. Contavam truques de passarem a fronteira, em que alguns eram as “cobaias”. Essas “cobaias” iam só para manterem a polícia de fronteira ocupada, enquanto outros passavam livres. Eram “cobaias” profissionais, eram pagos para isso, sabiam que depois de uns dias presos eram mandados para o seu país, sem nada lhes acontecer.

De súbito, dois homens surgem na sua frente e lhes comunicam numa linguagem entre o espanhol e o português, mas com sotaque brasileiro:
- Ok, já estão nos Estados Unidos, venham atrás de nós.

Tanto a Glória como o Jorge, assim como os jovens brasileiros, ficaram assustados, a Glória, apertou mesmo a faca, que trazia embrulhada num lenço na mão, quase que se cortava a si mesmo, tal era o medo. Viram a cara dos homens, traziam duas espingardas caçadeiras de canos serrados, usavam calções, pareciam mesmo “passadores”. Seguiram-nos.

Tinham uma carrinha aberta atrás, escondida alguns metros à frente, onde seguiram, os dois homens na frente, a Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, atrás. Andaram umas horas em direcção ao norte, por estradas de terra, levantando muito pó. Abriram as sacas, puseram qualquer coisa a encobrir a boca e o nariz, para puderem respirar por causa do pó. Era quase madrugada quando pararam. Os dois homens pedem cinquenta dólares a cada um e que sigam naquela direcção onde alguém os espera, terminando com os desejos de boa sorte.


A Glória pensou logo que esta atitude dos cinquenta dólares era um roubo, pois já tinham pago à organização do “passador” o exigido no contrato. Depois de andarem alguns quilómetros, muito próximo da estrada rápida número 10, que atravessa todo o continente desde Los Angeles, no estado da Califórnia, até Jacksonville, no estado da Flórida, surge um riacho, seguido de uma povoação, onde aproveitam para se lavarem do pó, bebendo alguma água, entrando de novo em contacto nessa povoação, com alguém que os esperava e encaminhou.

Aqui, com a ajuda desse alguém, compram nova roupa, já com outro aspecto, telefonam a amigos dos pais dos jovens brasileiros, pois eles vinham com a recomendação de se dirigirem à Florida, onde essas pessoas lhe deram todas as indicações de como deviam de proceder.

Seguem tudo à risca, sempre orientados pelo instinto da Glória, algumas vezes por estradas secundárias, andam de táxi, de camioneta e tomam o comboio. Passados cinco dias, aparecem, não duas mas sim quatro pessoas, em Miami. A Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, cansados, com um aspecto terrível, vão bater à porta dos amigos brasileiros.

A colónia brasileira, naquela região da Florida, é muito grande, os amigos tinham muitos contactos, a Glória, passados uns dias, vai trabalhar com uma senhora também brasileira, nas limpezas de casas de famílias com algumas posses financeiras, que vivem nas praias. Uma dessas famílias tinha filhos pequenos e precisava de alguém que os cuidasse em casa. Depois de verem a maneira como a Glória lidava com crianças, decidem contratá-la para trabalhar lá em casa e, deste modo, a legalizariam assim como ao Jorge, se este aceitasse ser algumas vezes o motorista, limpar e cuidar do enorme barco, trabalhar nos jardins, além de outras ocupações no exterior da casa.

Foram sempre dedicados, passados três anos e pouco, já legalizados, com toda a documentação para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos, decidem continuar ao serviço destes senhores, mas vivendo numa sua casa, que entretanto alugaram no meio da comunidade brasileira. Iam economizando algum dinheiro, principalmente nos primeiros anos, em que trabalhando dentro da enorme casa de seus patrões, não tinham qualquer despesa. Quando entenderam que já podiam olhar novos horizontes, decidiram comprar uma oficina onde se faziam gradeamentos em ferro, que estava à venda, propriedade de umas pessoas já idosas, oriundas do Chile, que se queriam reformar e regressar ao país de origem.

Tony Borie, Julho de 2015

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)

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