quarta-feira, 1 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14820: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (12) - Reportagens da Época (1967): Coluna a Farim

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 18 de Junho de 2015:

Prezado Dr. Graça:
Saúde. Mais uma vez tomo a liberdade de remeter um pequeno texto que poderá ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)

REPORTAGENS DA ÉPOCA

12 - Coluna a Farim

Dia 19 de Junho de 1967

Parti de Binta com o meu grupo de combate, e alguns nativos armados, numa escolta rotineira, como tantas outras que temos feito até Farim.
A coluna seguiu normalmente, e sem incidentes, até Canicó.
Ao atravessar essa tabanca abandonada, quando a estrada começa sensivelmente a descer, vi, não muito longe, levantar-se nos ares uma nuvem de fumo negro, e estranho.
Naquele local nada justificava o aparecimento daquele fumo.
Mandei parar a coluna de viaturas, deixei ficar metade do pessoal a manter a segurança dos camiões, e avancei pela estrada adiante, com os restantes soldados, para averiguar as causas daquele fumo insólito.

Binta, localizada na margem direita do Rio Cacheu, próximo da estrada Farim-Bigene. Vd. Carta da Província da Guiné - Escala 1:500.000

Ao fim de algumas centenas de metros, os homens que seguiam mais à frente vieram dizer-me:
- É uma viatura que está a arder.
- Uma viatura?
- Sim, uma viatura. - Confirmaram-me.

Segui adiante com bastante apreensão, e com todas as cautelas possíveis.
A dado momento começámos a ouvir gemidos, vindos ainda de certa distância.
Seguimos adiante.
O primeiro vestígio concreto de que algo de anormal se tinha passado, foi metade do pneu de uma viatura, desfeito no meio da estrada.
Algumas dezenas de metros, mais à frente, estava uma viatura, a arder.
De quando em quando, no meio do fogo detonavam munições.
Cautelosamente, fomo-nos aproximando.

Sob a viatura incendiada jazia, totalmente carbonizado, o corpo de um soldado, que só com muita dificuldade me apercebi de que era de um branco.
Ao lado da estrada, jaziam os corpos de três pretos mortos.
A gemer, desfeito em dores, encontrei o furriel H., do pelotão de morteiros, com o corpo todo coberto de pó, e desfeito pelos estilhaços.
Ali perto, escondidos entre as palmeiras, alguns nativos armados a manter a segurança.
Tropa branca, não se via nenhuma.

Depois, quando se aperceberam da nossa presença, apareceram alguns soldados brancos, bem como o alferes, comandante da coluna, que se dirigia para Binta.
O que ali estava não era uma força organizada, ou a escolta de uma coluna de viaturas, mas um grupo de homens vencidos, desmoralizados, que os turras, se o tivessem tentado, teriam dizimado, sem dificuldades, ou mesmo feito prisioneiros.
Mas ninguém decidia nada.

Perante aquele cenário, mandei avançar para junto do local, com toda a precaução, os meus soldados, que tinham ficado a guardar as viaturas, informei, via rádio, o comando do batalhão, sobre o que se tinha passado, recolhi os feridos, que mandei, de imediato, a toda a velocidade para Farim, e mandei carregar noutra viatura os cadáveres.

Entretanto, os meus homens passaram a pente fino todo o terreno à volta da estrada, e detectaram ainda uma mina anti-carro, que se fez explodir no local.
A mina que rebentou sob o rodado da viatura, bem com a que, depois, se detectou, era comandada à distância, através dum engenhoso sistema de fios.
Afinal, se eu tivesse saído de Binta alguns minutos antes, seria eu a sofrer a emboscada, e os efeitos da mina.

Entretanto, chegaram ao local os “roncos” de Farim, e um pelotão da companhia 1585, com a finalidade de verificar donde tinham vindo os turras, e efectuar a perseguição do grupo.
Quando tudo ficou resolvido dei ordem de marcha aos meus homens, e seguimos para Farim.
Regressei a Binta, fazendo a pé quase todo o percurso, e picando a estrada.
Estou, no entanto, horrorizado.
Doido.

Nunca tinha visto, nem me passava pela mente ver, um quadro humano tão horrendo, e sinistro.
Esta guerra mostra-nos todos os dias cenas diferentes, terríveis, que jamais se apagarão das nossas memórias.
Mas há momentos, que são demasiado sinistros, que escapam às leis da racionalidade, que todos preferiríamos não ter vivido.
Ainda hoje, a companhia de intervenção vai realizar uma operação, que terá por objectivo seguir o trilho que os turras deixaram no capim quando se retiraram, no fim da emboscada.
Só que, a esta hora, eles já estão bem longe, no interior do Senegal, a delirar de satisfeitos, com todo este sofrimento.
A vida não passa de uma grande loucura.

No regresso de Farim, dei escolta aos homens da secção de cinema, do Quartel-General, que vieram dar umas sessões em Binta, e em Guidage. À noite exibiram, efectivamente, um filme, mas não fui assistir. Estava ainda demasiado impressionado com as cenas reais, que de manhã tinha contemplado.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (11): Buruntuma

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