segunda-feira, 6 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14840: Notas de leitura (734): A Guiné Portuguesa em 1928: Segundo o anuário da Escola Superior Colonial de 1929 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
A historiografia da Guiné não se pode cingir às chamadas obras de referência e aos documentos dos arquivos, identificados ou por espiolhar.
Ao longo dos dois últimos séculos, como a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa atesta, há monografias, livros institucionais, brochuras, panfletos, publicações espúrias que necessitam de atenta vistoria.
No caso em apreço, desconhecia por inteiro a importância dos anuários da Escola Superior Colonial, são alfobre de informações por vezes de extrema utilidade. Confesso que desconhecia haver apologistas do caminho-de-ferro na Guiné no início do século XX. Estamos sempre a aprender, a aguçar a curiosidade.
A Guiné merece e agradece.

Um abraço do
Mário


A Guiné Portuguesa em 1928
Segundo o anuário da Escola Superior Colonial de 1929

Beja Santos

A Escola Superior Colonial sucedeu à Escola Colonial, em 1926, a instituição funcionou com este título até 1961, o leitor interessado encontrará todos estes dados no Google. O interessante é que a Escola caprichava pelos seus anuários dirigidos, como é óbvio à sua clientela: alunos destinados à administração colonial e respetivos docentes. Publicava números temáticos e o de 1929 centrou-se nas comunicações, transportes e infraestruturas afins. Vê-se que os seus autores conheciam com alguma profundidade a situação da Guiné como se descreverá. Fazia parte do espírito da época apoiar a construção de caminhos-de-ferro como o meio mais eficaz e menos caro para uma nação colonizadora estabelecer solidamente o seu domínio, cita-se mesmo Cecil Rhodes que terá observado que o carril era mais barato e tinha maior alcance do que o canhão. E escreve-se textualmente:
“No espírito dos indígenas, os caminhos-de-ferro produzem forte impressão, convencendo-os do caráter definito do domínio, e como ao mesmo tempo lhes acarretam benefícios são o mais poderoso de todos os elementos de pacificação”.
Estamos pois no tempo em que a civilização para África anda de mãos dadas com a locomotiva.

Os autores do anuário começam por dizer que a Guiné é colónia de grandes recursos naturais e largo futuro, mas o problema das comunicações condiciona o desenvolvimento económico e está a agudizar-se de ano para ano. As matérias-primas exportáveis, então, eram a mancarra, o coconote e a borracha. A drenagem destes produtos era facilitada pela rede fluvial. Mas logo adiante estes autores condicionam o desenvolvimento da colónia aos propósitos da África Ocidental Francesa e refere empreendimentos com grande importância: a linha Conacri-Kankan, a aproximar-se dos centros produtores do Futa-Djalon que drena para o porto de Conacri as riquezas da região; prosseguiam na época os estudos da linha férrea de Casamansa que, previa-se, iria drenar os produtos da bacia hidrográfica do rio do mesmo nome. Referindo ainda que a África Ocidental Francesa possuía em 1923 cerca de 15.000 quilómetros de pistas para automóveis, na estação seca, os autores estão conscientes que o Estado português não pode abalançar-se num plano de viação para transportes pesados e põe a hipótese de adotar projetos com capitais estrangeiros, uma concessão do género da Companhia de Ferro de Benguela. E concluído o texto introdutório, lançam-se nas informações.

No que toca a comunicações marítimas, havia mensalmente um vapor de cada uma das companhias Nacional de Navegação e Colonial de Navegação. Além destas, havia uma companhia holandesa e uma companhia alemã com uma carreira bimensal.

Havia o cabo submarino da Western Telegraph Company. A Guiné possuía 668 km de linhas telegráficas ligando as principais localidades da colónia e permitindo a comunicação com Dakar por Farim-Koldá. E referem a navegabilidade dos rios: O Cacheu é navegável até à ilha de Bafatá; o rio Mansoa, num total de cerca de 200 km, tinha 120 navegáveis; o rio Geba em território português tinha aproveitáveis para transporte 170 quilómetros; o rio Corubal era apenas navegável cerca de 50 km; o rio Grande de Guinala ou de Bolola era navegável até próximo de Buba; o rio Tombali (designação imprópria dada a uma braço de mar) era navegável cerca de 60 km; o rio Cumbidjan, com um percurso de 90 km, era em grande parte navegável; e o rio Cacine, com um percurso de cerca de 50 km tinha cerca de 40 km navegáveis.

Canhambaque – Monumento à pacificação desta região dos Bijagós

A ideia dos caminhos-de-ferro era enorme ao tempo, falava-se na construção de duas linhas férreas pondo Bissau em ligação com a fronteira leste, por Bafatá e Cadé, e com a fronteira norte por Farim e Koldá. Mas o realismo justificava que se dissesse que havia grandes limites para os sonhos, em terrenos como os da Guiné, iriam exigir-se obras de arte muito honrosas, pelo que não se aconselhava, nas condições atuais, que o Estado se lançasse na construção de linhas férreas, tinha pouca lógica, e tudo se agravando pelo fato da colónia estar recortada por todos os lados, por estradas, rios, canais e braços de mar navegáveis. Mas o assunto linha férrea na Guiné tinha história, como os autores do anuário relevam:

“A primeira ideia de um caminho-de-ferro na Guiné pertence ao falecido colonial Loureiro da Fonseca que a apresentou numa memória, em 1907, à Escola Colonial, da qual era aluno.
Anos depois, o senador Nunes da Mata apresentava na sua Câmara uma proposta de lei autorizando o Governo a mandar proceder aos estudos de uma linha férrea desde o Xime até à fronteira leste da Guiné”.
Os críticos a estas propostas eram muitos: dizia-se que um tal caminho-de-ferro só favoreceria os interesses da colónia francesa e replicava-se que a querer-se provocar a drenagem dos produtos do território interior, francês, seria preferível aproveitar-se o Geba; e também se criticava tal iniciativa porque o comércio da Guiné estava essencialmente nas mãos de alemães e franceses. Contrapunha-se com a construção de estradas e portos mas igualmente se punha em dúvida as vantagens do empreendimento:
“Chegará um tráfego exclusivamente agrícola, embora rico, mas certamente limitado, num futuro próximo, para cobrir os encargos honrosos de uma tal empresa, em concorrência com os outros meios de transporte?"

Edifício do Banco Nacional Ultramarino em Bolama

Encerrado este capítulo, os autores passaram para as estradas: uma vasta rede de 2800 km: de Bambadinca a Bafatá, de Farim a Jumbemben, de Buba a Cacine, de Buba a Bambadinca por Xitole. Mas não deixavam de observar:

“Convém acentuar que muitas das estradas, construídas através das regiões lodacentas representam um trabalho formidável, pois que o sistema é verdadeiramente primitivo”.

Quanto aos portos, os principais eram Bissau, Bolama e Bubaque. E são úteis as informações subsequentes:
“Cacheu, que outrora teve contato com a navegação de longo curso, desapareceu da lista dos portos de escala, passando a uma categoria secundária em que não conserva um lugar proporcional à sua importância no passado, mercê das novas vias de comunicação terrestre e fluviais que, evitando a passagem da barra do mesmo nome, drenam diretamente para Bissau uma grande parte dos produtos que antes ali afluíam.
Os outros portos secundários pelos quais se efetuam o tráfego de grande e pequena capotagem são os de: Farim, Bafatá, Buba e Cacine, no primeiro plano; S. Domingos, Biombo, Geba e Xitole no segundo”.
Curioso é também notar que em termos de tonelagem, até à I Guerra Mundial, os alemães vinham à frente; em termos de carga embarcada e desembarcada, em 1913, os portos mais importantes eram Bissau, Bolama e Bafatá. A seguir à guerra, tudo mudou.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14830: Notas de leitura (733): “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012 (Mário Beja Santos)

4 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Pelas fotos e pelos textos que lhe estavam anexas poderemos fazer uma ideia do que seria a Guiné antes do começo da "guerra". Tome-se como referência a foto do BNU em Bolama. Como seria aquele edifício em 1970 ou no fim da guerra, por exemplo? Isto par não perguntar o que será feito dele hoje?
Tenho dificuldade em visualizar o que seria a Guiné de então, mas creio que o atraso seria muito e suportado por uma paz a que no mínimo chamarei estranha.
O que seria que os homens "daquele tempo" esperavam que fosse acontecer daí a 10 anos?
Creio que não teriam ideia nenhuma. O que fariam no seu dia-a-dia? Como é que se relacionavam com as populações "nativas" como então se dizia? O que pensariam elas do que os "dirigentes" faziam diariamente naquela terra?
Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

"Os portugueses nem uma linha de caminho de ferro fizeram na Guiné", só ouvi essa queixa uma única vez em vários anos de Guiné.

Nem Luís e Amílcar Cabral escreveram ou disseram que faltava um comboio na Guiné.

Foi em 1993 que um colega meu, balanta que veio de Kiev, que em conversa me disse "porquê nem um combóio?

Nessa altura, já os comboios em Angola, Luanda-Malange, Benguela-Zambia, Moçâmedes-Serpa Pinto(Menongue), estavam à espera que um dia os chineses os concertassem à base de petróleo.

António J.P.Costa, "Como é que se relacionavam (os homens daquele tempo)com as populações "nativas" como então se dizia? O que pensariam elas do que os "dirigentes" faziam diariamente naquela terra?

Amigo António, na Guiné antes da Guerra, quem poderia informar bem, seria caboverdeanos, como Amílcar Cabral e família, e outras familias mistas e naturais, como Gomes, Mandingas, casa Esteves.

Antonio, os militares que fazem essa tua pergunta, e com muita lógica, fazem-na por duas razões, uma porque nunca houve diálogo entre militares metropolitanos e civis antigos (colon) e em segundo lugar, porque na realidade não se chegou a ver verdadeiramente colonização na chamada África Sub-sariana.

Antes da guerra eu já estava em Angola, e hoje conheço a lógica da tua pergunta.

Mas só não dou a resposta porque aqui só temos a guerra da Guiné, não de Angola.

Mas António, não houve colonização, mas também não houve a respectiva descolonização.

Houve apenas o crime da escravatura para as américas e europa.

E esta já está a ser chamada à pedra por milhões de africanos a vaguear pelas grandes capitais africanas.

Alguns, tentam a fuga ao inferno pelo mediterrâneo.

O meu porta-miras (repito) tentou num contentor para Cadis.

Cumprimentos


António J. P. Costa disse...

Olá Camarada
Até que enfim!
De vez em quanto ouço falar em "passado comum" e coisas parecidas, mas assim com esta clareza nunca tinha ouvido.
..."não houve colonização, mas também não houve a respectiva descolonização. Houve apenas o crime da escravatura para as Américas e Europa".
Ultimamente também me tenho perguntado: O que é que as pessoas que residiam e trabalhavam "lá" e que tinham 20 anos em 1961, pensavam, em 1971, acerca doa maneira como "aquilo" iria acabar.
Será que estavam convencidos que o Mondelane, o Neto e o Amílcar um dia acordavam com um ataque de pacifismo e se penduravam no pescoço do governador da "província" a fazer a paz e a querer viver à sombra da bandeira verde-rubra? Ou estavam convencidos de uma estrondosa vitória das gloriosa NT sobre os bandoleiros a soldo de Moscovo?
Era bom que se pensasse nisto...
Um Ab.

Antº Rosinha disse...

António J.P.Costa, eu com 21 22anos em 15 de Março de 1961, furriel milº não sei bem o que pensava, porque em Luanda nessa idade era difícil pensar em coisas muito sérias.

Mas sei o que pensava um capitão do quadro metropolitano que me comandou no norte de Angola que me dizia, "estou aqui, porque vocês os brancos, tratam mal os pretos" e eles revoltaram-se.

Hoje misturo na minha cabeça, após 50 anos, o que pensava naquele tempo com o que penso hoje.

De maneira que vou um dia retratar as mentiras que vi, as verdades que vi, e que me lembro, sem misturar as verdades e as mentiras que vejo hoje.

António, se o bloguesforanada permitir misturar a minha guerra e a minha paz, com a guerra e a paz da Guiné, terá que dar direito a um post e terá que ser com tempo.

É que em 1961 eu nem sabia nem queria saber quem foi Kennedy nem Kruchev nem Livingstone nem Serpa Pinto.

Muito menos quem era a rainha Vitória nem para que queriamos o mapa cor de rosa.

De maneira que é muito difícil conseguir isolar o meu pensamento actual com o que pensava em 1961.

Mas não me vou esquecer dessa tua pergunta

Cumprimentos