domingo, 12 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14867: Libertando-me (Tony Borié) (25): Depois da guerra

Vigésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Depois da guerra, por algum tempo, ainda fui bravo, algumas vezes rude para as outras pessoas, ainda fumei e bebi álcool, ainda tive as minhas lutas, ainda fui selvagem, ainda tive experiências sexuais com raparigas estranhas, ainda mantive aquela raiva surda contra não sei quem, talvez contra a guerra, contra a morte de jovens companheiros, contra a polícia que me interrogou e perseguiu, coisas que não tinham explicações, mas que alguma audiência censurava, mas na altura, tinha a força da juventude, talvez “saúde a jorros”, nunca precisei, (nem havia naquele tempo, disponível, ali à mão, era preciso ir à cidade mais próxima), ir todas as semanas, ou cada outra semana ver o psiquiatra, para uma ajuda extra, do trauma que a maldita guerra em África me fez passar, nunca fui para a televisão, rádio ou outros meios de comunicação dizer que não tinha casa, emprego, comida ou roupa para vestir e o governo tinha que me dar todas essas coisas, continuei a ser eu, o aldeão, com aspirações a criar uma família que andava vestido conforme ganhava, como tal, andava sempre muito mal vestido.


Embora antes tivesse assinado um cheque em branco ao governo de Portugal, no montante de..., incluindo a minha própria vida, nunca esperei um subsídio do então governo, ou ser assistido por um daqueles programas que agora existem, procurei trabalho, qualquer trabalho, não queria saber quanto pagavam ou quais os benefícios, ou quantos dias de férias, o que queria era trabalhar, trazer ao fim do dia, ou ao fim da semana, algum dinheiro, fruto do meu trabalho e, para mim cinco tostões eram cinco tostões, que davam para comprar um “papo seco”, não como agora neste ano de 2015, pelo menos pelas notícias que vou tendo conhecimento pela comunicação social e por alguns companheiros combatentes, em que, este novo Portugal, país acolhedor, onde a nova geração tem muitos anos de escola, portanto tem formação superior, abriu as suas fronteiras, pelo menos na União Europeia, recebendo amavelmente qualquer estrangeiro, dos quais muitos vêm para ficar definitivamente, claro, sempre haverá excepções, mas eu entendo de que, se o tal candidato a emigrante, um dia desembarcar em Lisboa, ao encontrar a primeira pessoa na rua, que provavelmente não será um verdadeiro português, será uma pessoa oriunda da África, América, Oceania ou da Europa do Leste, mas deve dizer, depois de ter beijado o chão de Portugal:

- Obrigado senhor português, por me deixar entrar no seu País, dar-me casa, comida, ajuda médica e educação para os meus filhos.

Nós, antigos combatentes, fomos uma boa e trabalhadora geração e, neste caso, depois da guerra, vieram os outros.

Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14837: Libertando-me (Tony Borié) (24): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (5)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caríssimo amigo Tony

Estive uns dias afastado dos comentários, que não propriamente das leituras... mas isso fez com que não tivesse comentado as "últimas da Glória/Lola/Ruça".

Não sei exactamente como se passa hoje nos aglomerados populacionais menos cosmopolitas mas lembro-me que 'no meu/nosso tempo' era vulgar colocar alcunhas, 'nick names', que normalmente evidenciavam alguma característica a quem era colocada. Por exemplo, aquando da minha frequência da EICVFXira uma das moças era conhecida pela "Generosa", mas não era esse o seu verdadeiro nome....

Quando começaste este artigo lembrei-me de uma canção açoreana que começa assim. "Eu fui à terra do bravo / bravo meu bem / para ver se embravecia".... mas, pelos vistos, e pelo que escreves, não foi preciso lá ir!

Claro que nesses tempos sabia-se lá o que era isso do 'stress de guerra', sabia-se lá que iriam haver psicólogos para ajudar a superar traumas. Também, nesses aspectos, fomos pioneiros, tivemos que nos 'desenrascar, resolver (ou não) os nossos problemas.
Sabe-se, por experiência própria, por 'visionamentos de proximidade' ou também por 'ouvir dizer', que nem sempre foi fácil o retorno à 'vida civil', à reinserção social (sem subsídio...). Cada um safou-se como foi capaz e sabemos, também, que ainda hoje há quem não tenha conseguido.
Não foi fácil. Lá e cá!

Mas, tal como dizes, a nossa capacidade de adaptação, quando se sai do País, mas também quando se possibilita a integração a quem chega, ainda nos distingue, colectivamente e de modo individual, de muitos outros povos e dá-nos esperança de poder haver algum futuro.

Abraço, Tony

Hélder S.