terça-feira, 14 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14877: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (11): De 23 a 24 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 7 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 11.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

11 - De 23 a 24 de Maio de 1973

23 de Maio de 1973 - (quarta-feira) - Cumbijã

Mais uma vez tenho o grupo de reserva. Ontem à noite mandei uma mensagem para Aldeia Formosa para saber se continuamos aqui: afirmativo. Continuamos, portanto, (...).

De manhã recebi correspondência para o meu pelotão e cerveja, mandada pelo nosso Cap. B. da C. que nos levantou um bocado o moral, sobretudo pelas suas palavras, e bem que precisávamos, pois há nove dias que saímos de Nhala e vivemos quase como animais. Junto à encomenda que nos enviou, vinha um aerograma que dizia:

“Meu caro Murta: 
Estava ansioso por saber notícias vossas, embora soubesse que não tem havido problemas com o nosso pessoal. (...) Já falta pouco para isso acabar e tentarei dentro das limitações recebê-los cá o melhor possível. Poderá parecer-lhe estranho, mas todo o pessoal daqui [Nhala] sofre visivelmente com a vossa situação. Se precisar de alguma coisa diga para aqui (...). Envio-lhe 5 cx. de cerveja por pelotão e 500$00. Das cervejas ofereço particularmente 2 a cada homem. O resto será vendido em cantina. O dinheiro será para financiar de momento o pessoal completamente teso, ao menos para cerveja. Depois apresentará contas. Desculpe não poder mandar mais nada mas nas condições de limitação económica em que nos encontramos, foi o que se pôde arranjar. Coragem, que é pouco mais.
Peço-lhe que transmita um voto de apoio e noção da situação a cada um dos seus homens. Um grande abraço do vosso melhor amigo, B. da C.".

[Ainda pensei não publicar esta carta, por respeito e protecção do recato do autor. Mas, se o fizesse, não se perceberia quão benéfica ela foi junto dos meus soldados e até em mim, tão carenciados de uma palavra amiga. Para se perceber melhor devo dizer que, a caminharmos para o décimo dia sem tomar banho e sem mudar de roupa, tínhamos que cumprir com as obrigações operacionais, suportar o calor inclemente, comer insuficientemente e quando calhava e, no final, não nos podíamos refrescar com uma cerveja por falta de dinheiro... É fácil de entender como seria o estado físico e psicológico de todos, propício, ainda, a atritos e quezílias que agravavam ainda mais o estado geral. Outros estariam na mesma situação ou, até piores, ali e por toda a Guiné, mas a mim o que importava era defender o meu grupo de combate, sabendo que havia alternativas àquela situação desumana, tal como se veio a verificar.

Depois desta atitude nobre e solidária do nosso comandante de Nhala, outras se seguiriam no futuro, já com a Companhia toda reunida mas sofrendo, periodicamente, da escassez de tudo, devido à falta de reabastecimentos. Certo dia relembrei-lhe que a falta de tabaco na Cantina de Nhala, estava a raiar o insuportável. (Quem não fuma não poderá entender isto!). Disse-lhe, ainda, que o pessoal estava em vias de se recusar a sair para o mato, amotinando-se. E que eu próprio, que comprava o tabaco por grosso e não à unidade, estava a ficar sem ele pois estava, já há algum tempo, a distribuí-lo aos fumadores do meu pelotão para serenar os ânimos. Em pouco tempo uma avioneta fretada foi a Buba deixar-nos o tabaco e outros bens essenciais. Toda a Companhia pareceu refrescada por um bálsamo. Poderia dar outros exemplos da generosidade e solidariedade do nosso capitão, mas eles surgirão a seu tempo.

Com estas palavras de gratidão e, porque não dizê-lo, de homenagem genuína, poderão ficar confusos aqueles que conheceram o modo infausto como ele acabou a comissão, mas esses derradeiros acontecimentos em nada beliscam ou anulam, tudo o que eu disse atrás sobre o homem de carácter íntegro e de grande formação humana. Com fraquezas, naturalmente, como qualquer ser humano].

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Desde que aqui chegámos a Cumbijã que me tem doído a cabeça. (...). Hoje já não suportava mais e resolvi pedir ao Cap. Horta (?) para ir ao médico a Aldeia Formosa. Tenho o sistema nervoso arrasado e grande fraqueza geral. Meti-me na coluna que vinha de Nhacobá com a Engenharia e, caso curioso, a dor de cabeça começou a passar-me com a aplicação de álcool puro na cabeça. Já tenho o organismo cheio de Acetalgina.

À saída de Mampatá houve um acidente mortal: um rapazito da Engenharia, (são rapazitos e quase crianças muitos dos assalariados - quase todos capinadores -, caiu da viatura em que seguia, sentado no taipal, e bateu com a cabeça no chão tendo morte imediata. Embora não me impressionasse nada, porque já nada me impressiona, fazia pena o pobre do rapaz. Atravessado na estrada, braços debaixo do ventre, coberto de pó, (...). Levámo-lo connosco para Aldeia Formosa.

À chegada a Aldeia Formosa falei com o médico, que me deu um medicamento para os intestinos. Tomei banho e vesti uma farda que me emprestou o camarada alferes José Maia da 3.ª CCAÇ. Depois de jantar ouvi música e fui para o quarto dos oficiais onde dormi. Qual quê?!... Até à uma da madrugada diverti-me com as canções e os disparates dos meus camaradas de Aldeia Formosa. Era disto que eu precisava. Quase todos eles estão marcados pela situação. São crianças barulhentas e todos estão completamente “apanhados”.

[Para além do Maia, sempre sereno, recordo com saudade o António Marques da Silva com a sua boa disposição, o Amado João e a sua bonomia, e o Manuel Mota que era o cúmulo da irreverência].

Eu em Aldeia Formosa num domingo de Julho de 1973, vindo de Cumbijã para tratar de papéis. 

Aldeia Formosa - 1974, vendo-se à esquerda a pista, ao centro o quartel e à direita a tabanca.

Aldeia Formosa - 1974: Porta de armas vista do interior do quartel.

Aldeia Formosa - 1974: Edifício do Comando ao centro.

Aldeia Formosa - 1974: Aspecto da pista.

Aldeia Formosa - 1974: Tabanca e paiol.


24 de Maio de 1973 – (quinta-feira) – A. Formosa / Cumbijã

Levantei-me tarde, tomei o pequeno-almoço e escrevi para casa. Fui novamente falar com o alferes médico e ele receitou-me uma série de medicamentos. Às 11 horas regressei a Cumbijã integrado na escolta da água. O meu grupo continua hoje de serviço e, até agora, sem problemas. Os rapazes estão um bocado mais bem-dispostos, embora continuem sujos. À noite tive momentos altos de boa disposição, (era disto que eu precisava!), com o Cap. Vasco da Gama (de Buarcos) e restantes graduados da sua Companhia. Discutiu-se alegremente e bebeu-se muito uísque. A Companhia do Cap. Vasco da Gama sai amanhã de manhã para se instalar definitivamente em Nhacobá, aliás, foi esta companhia (a 51 de CAV), quem teve maior participação na expulsão do PAIGC.

Perto das 0 horas, depois de ter dormido, mal, durante umas duas horas, acordei com o barulho dum temporal que, de repente, se aproximava. Estava a dormir numa tenda grande de campanha superlotada, e tivemos que sair de emergência para ir esticar os cabos que a sustentavam de pé, de modo que o vento ciclónico não a arrancasse do chão. Em breve começou a chover, mas por pouco tempo e, até o vento, subitamente, deixou de soprar. A tempestade passou ao lado. Mesmo assim deixou-me com os nervos arrasados, pois se as condições já eram precárias, depois do breve temporal ficaram piores.

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[É notório, e ao mesmo tempo curioso, que estes meus registos da época estejam tão focados nos problemas do pessoal e nos meus próprios, passando de leve as referências às actividades operacionais. Dou-me conta disso ao transcrever, agora, apontamentos que nunca relera. Mas isso tem uma explicação: se me dissessem, naquela altura, que mais tarde iria sentir a falta das notas com resenhas militares, eu fartar-me-ia de rir com tamanho disparate. Na minha cabeça, e na dos outros por certo, a guerra ficaria ali enterrada para sempre com os seus aspectos burlescos e trágicos, mal virássemos costas no regresso à Pátria. E assim foi durante 40 anos. Até conhecer a nossa Tabanca Grande e mergulhar nas histórias de quantos por lá passaram, surpreendendo-me e alentando-me a contar as minhas].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513 e Resumo dos Factos e Feitos

Maio/73, 25 - De acordo com as ordens do COMCHEFE, pelas 22h00 inicia-se o movimento de retirada da região de NHACOBÁ até CUMBIJÃ. No entanto mantem-se os patrulhamentos constantes na região e as acções de segurança aos trabalhos de Engenharia. (!!!).

Do meu diário:

25 de Maio de 1973 – (sexta-feira) - O abandono de Nhacobá

Hoje o meu grupo esteve de reserva e logo de manhã tivemos autorização para irmos a Mampatá tomar banho e, embora tivéssemos que vestir a mesma roupa, isso deixou-nos bem-dispostos.

De vez em quando, como já vem acontecendo há vários dias, ouvem-se para os lados de Guilege os rebentamentos produzidos pelas bombas largadas pela nossa aviação.

À tarde, um rapaz do meu grupo, o Celso, foi acometido de qualquer ataque (supõe-se cardíaco) que o deixou inanimado e quase sem respiração. Foi evacuado para Aldeia Formosa.

Cerca das 16h30, chegaram aqui as viaturas da 51, carregadas com o material da Companhia que tinha seguido de manhã para Nhacobá. O Cap. Vasco da Gama ficou com o pessoal instalado lá, sendo arrasados os abrigos e tudo trazido de novo para Cumbijã. Não sei bem o que se passa, mas isto está tornar-se feio. Consta-se que Guilege foi ontem tomada pelo PAIGC depois de as nossas tropas terem abandonado tudo. Hoje, a decisão de abandonar Nhacobá, coincide com os boatos de que aquilo ia ser atacado em massa e, também, com a chegada de um Brigadeiro aqui a Aldeia Formosa.

A minha situação aqui continua sem alteração à vista, embora eu entupa os ouvidos aos “crânios” expondo-lhes os meus problemas. Há 11 dias que saí de Nhala com o pessoal e não vejo hipótese de rendição. Estamos a ficar com os camuflados podres, a desfiarem-se e, desde há muito que cheiram a azedo e salgado da transpiração acumulada.

Cerca das 23h30 chegou a CCAV 51 abandonando, em princípio, Nhacobá. Poucas horas depois, quando o meu pessoal já tinha entregado as tendas aos verdadeiros proprietários, desencadeou-se um violento temporal, apanhando-os a dormir ao ar livre. Isto vem agravar claramente a nossa situação.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973

8 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

12 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14603: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (4): Segunda semana de campo

19 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14637: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (5): A caminho de Nhala

2 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14691: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (6): Chegada a Nhala

9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida

16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra
e
7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14844: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (10): 20 a 22 de Maio de 1973

2 comentários:

José Carlos Gabriel disse...

Amigo António Murta.

Tenho uma recordação muito vaga da chegada a Nhala do teu GC depois de terem passado por esse suplício. Se bem me recordo o pessoal vinha todo roto (tanto de cansaço como no fardamento?). Podes acreditar que começo a ter sérias dificuldades em comentar estas tuas memórias porque ao lelas até me parece que eu estive noutra guerra que não a vossa. Nunca passei por privações como as vossas. Quanto á atitude do nosso Cap. B.C. para com o teu GC naquela altura não me espanta absolutamente nada até porque essa era a postura do mesmo para com toda a companhia. Recordo algumas passagens em que o mesmo poupou o pessoal de algumas privações. Já em tempos me referi numa das minhas memórias ao Cap. B.C. por uma atitude que teve para comigo (que mexia com a saúde da minha filha) a qual nunca esquecerei. Nenhum ser humano é perfeito e ele também o não era mas tinha como dizes um grande caráter.
Um abraço amigo.

José Carlos Gabriel

Anónimo disse...

Meu caro amigo Murta:

O que contas é a verdadeira face da guerra, não a única mas a prevalecente. Quando se fala das ostras do Bento é do excepcional que se fala. Aquelas andanças entre Combidjã e Nhacobá, com as audições dos rebentamentos em Guiledge foram o pano de fundo daquele período de grande sofrimento para muita gente. A descrição do cheiro acre da roupa apodrecida por camadas sobrepostas de suor, é perfeita. Estou-te muito grato por me voltares a reviver aqueles dias e meses dolorosos.

Um abração
Carvalho de Mampatá