domingo, 20 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15514: Libertando-me (Tony Borié) (48): Vamos para Norte

Quadragésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




Vamos para Norte

Com atenção ao trânsito, ouvindo música, conversando com a nossa companheira e esposa, viajámos mais de setecentas milhas na óptimas estradas do sul. Parecem pistas, onde se viaja sem custos até entrarmos nos tais estados no norte, encostados ao Oceano Atlântico, bastante comerciais e industriais. Aí começamos a pagar por usar as estradas rápidas, tal como na Europa, as tais “Portagens” e, a estrada não apresenta um bom estado de conservação, não se comparam com as do sul, a única razão compreensível, é que necessitam de reparação frequente, pois o inverno no norte é rigoroso.

Já passámos Washington, é o mesmo que passar de sul para norte, não sabemos se ainda existe a tal influência da federalização das dívidas contraídas ao longo da guerra de independência, pelos estados, onde, os estados do sul já haviam pago a maior parte das suas dívidas, de que já falámos no texto anterior, o que é certo é que ainda hoje, no ano de 2015, no sul, viajamos pela estrada rápida número 95, em óptimo estado, sem pagar qualquer “portagem”, a partir de Washington, existem curvas acentuadas, descidas, subidas, túneis, onde se paga “portagem”; pontes, onde se paga “portagem”; troços de estrada em melhores condições, mas também, onde se paga “portagem”; então se passarmos o estado de Nova Iorque, continuando para norte, com várias pontes e túneis, continua-se a pagar “portagem”, chegando a pensar algumas vezes que era preferível viajar de avião, pois compensava.

Mas os emigrantes que regressam de visita aos estados do norte, onde tiveram residência e ainda estão os seus familiares e amigos, querem viajar de veículo automóvel, pois no regresso querem parar em Nova Jersey, na histórica cidade de Newark, na portuguesa “Ferry Street”, e comprar, além de bacalhau e azeite, talvez, latas de conserva de atum dos Açores, marmelada, rebuçados “São Braz” ou sabão “Clarim”, para levarem para sul, onde agora vivem, e quem sabe, talvez lembrar a Inês, aquela portuguesa espanholada, que além de fumar “Malrboro” e, tudo o que já dissemos a seu respeito, também usava, pelo menos ao fim de semana um perfume exótico, parecido com aquele que usavam as filhas do Libanês, lá na vila de Mansoa, na então Guiné Portuguesa, que lhe trouxe a Eulália, que trabalhava na “fábrica dos perfumes”, que vivia maritalmente com o Zé Paulo, um rapaz muito educado, que servia ao balcão no “Bar do Minhoto”, no seu tempo livre, pois trabalhava a tempo inteiro na construção, fazendo parte do “gang” do Manuel Murtosa, marido da Gracinda, mulher honrada e respeitadora, que não falava na vida de ninguém, mas não perdia qualquer oportunidade para fazer gestos eróticos com os dedos da mão, piscar o olho ou apalpar o rabo ao Zé Paulo, que era um jovem que ao chegar do trabalho na construção, tomava banho, arranjava as unhas, vestia com elegância, com uma camisa branca e um laço preto, com que atendia ao balcão do “Bar do Minhoto”, onde sem o querer, dada a sua posição, facilitava encontros para, entre outras coisas, trabalho, pois sabia quem precisava de força laboral e quem procurava trabalho, sabia dos problemas, alegrias e desgostos de quase toda a comunidade, indo muitas vezes levar a casa alguns emigrantes que por lá ficavam a beber até mais tarde, como por exemplo o “Carlos das Pombas”, pois viviam no mesmo edifício.


Este bom homem, o “Carlos das Pombas”, cujo apelido lhe foi dado porque trabalhando na “fábrica da reciclagem”, que se localizava próximo de algumas pontes, lá para os lados do Porto de Newark, vivia amargurado, dizendo que tinha perdido a sua honra porque um dia, vendo centenas de pombas, que viviam debaixo das já referidas pontes, pensando “numa valente arrozada”, pediu a alguém uma espingarda e, aquilo era, cada tiro meia dúzia das bonitas aves que vinham parar ao chão, alguém passou por lá, talvez sentindo-se molestado, nunca ninguém soube, ouviu tiros, avisou a polícia, uns minutos depois passa por lá um carro policial, em silêncio, com dois polícias armados, que vendo um homem de caçadeira na mão, naquele local, onde a ramagem quase cobria um homem e o terreno era alagadiço, logo pensaram tratar-se de algum “ajuste de contas da máfia”, o melhor era irem embora com o mesmo silêncio com que vieram, contudo, com alguma coragem, de pistola em punho, foram-se aproximando e, ainda a uma certa distância, ficaram algo surpreendidos, ao verem o Carlos a descalçar as botas, tirar as calças e ir em cuecas, apanhar uma pomba à água, que tinha caído ao lado do rio e ainda esvoaçava.

Quando o Carlos se volta, ainda dentro da água, em cuecas, ao ouvir os polícias ordenarem-lhe prisão e para que fique quieto, mudou a cor do seu rosto, ia-lhe dando uma tontura que quase mergulhava na água, largou a pomba, começou a tremer, tendo um dos polícias entrando na água para o socorrer, claro, os polícias esperaram que se vestisse de novo, foi algemado e levaram-no preso.

Toda a Ferry Street soube da desgraça do Carlos, a sua esposa, a Lucinda, que trabalhava na “fábrica dos perfumes”, juntamente com a Eulália, foram à esquadra em seu socorro, primeiro com o senhor padre, da Igreja Nossa Senhora de Fátima, que falava muito bem inglês, que era um português do Bunheiro, uma localidade próxima da vila da Murtosa, em Portugal, depois logo apareceu o sargento da polícia, filho de portugueses nascidos no Minho, que o libertaram com a responsabilidade de se apresentar ao juiz no dia seguinte, que derivado ao bom comportamento anterior, lhe confiscou a arma, sentenciando-o, entre outras restrições para o futuro, com uma multa por não ter licença de usar arma de fogo e uma pena de serviços comunitários por o período de algum tempo, mas a partir desse momento foi sempre um homem amargurado, não se cansando de dizer que tinha sido preso em cuecas e que era agora a vergonha da família.

Ferry Street, Ferry Street!

Tony Borie, Dezembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15483: Libertando-me (Tony Borié) (47): É Dezembro, vamos ao Norte

1 comentário:

Anónimo disse...

...procedimentos e culturas que se chocam fizeram do homem das pombas e de muitos outros homens a vergonha da família. Histórias como esta dariam um livro de horrores comunitários.
Um abraço cheio de Natal para o meu vizinho do sul.
José Câmara