quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15789: Os nossos seres, saberes e lazeres (142): O ventre de Tomar (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
Era dia ensolarado, o versátil comércio aberto toda a tarde, estávamos a uma semana do Carnaval, decidi andar pelas lojas de artesãos, carpintaria e alguns outros.
A grande surpresa, como mais adiante se enfatizará, foi almoçar num tasquinho, observei de relance uns senhores que conversavam numa mesa ao lado, saíram eles e saí eu, umas dezenas de metros à frente entrei numa carpintaria e lá estava o mesmo senhor que vira ao almoço de fato-macaco. Rimo-nos da surpresa e recebi uma lição de como se restauram móveis. Mas o mais importante era a cordialidade do meu anfitrião, comunicava a sua arte com verve, via-se que tinha paixão pelo modo como usa as mãos.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (6)

Beja Santos


Comecei o dia de andarilho, palmilhando uns quilómetros até chegar a uma quinta entre Cem Soldos e Algarvias, freguesia da Madalena. Eu conhecia esta imagem de um livro de memórias de autoria do embaixador António Pinto da França sobre a Guiné-Bissau. Ver este ambiente de trabalho deixa saudade, gostaria de ter conhecido tão afável pessoa, houve quem o apelidasse de antropólogo amador, quando li este livro de memórias sobre a Guiné-Bissau passei a estimá-lo muito, na escrita deste diplomata não há um rancor, um azedume, tudo fazia para compreender o que, em África, não se encaixa na nossa maneira ordeira de medir o tempo, o sentido da eficiência, o valor da memória. Aqui me detive e rezei por ele, ele não precisa, quem precisa sou eu.



No antigo RI 15, como é de todos sabido, funciona o Museu dos Fósforos e um belíssimo ateliê de artesãs que lavram cerâmica. Precisara de ir entregar uma caixa de fósforos que adquirira na Feira da Ladra, aproveitei para espreitar as novidades que saem dessas mãos laboriosas. Captei estas duas imagens e vale a pena justificar-me. O azulejo com o guerreiro monge em oração é uma ternura, e não resisti àquele sol radioso que parece estar a iluminar o magote de santos e santas.


Estamos agora no interior de uma livraria papelaria, anuncia-se o entrudo, nunca escondi que me rendo facilmente aos coloridos vistosos, as revistas ao fundo dão o ritmo de que há cores que não se chocam, mesmo que possamos supor que esta imagem possa ser tomada como uma partida de Carnaval. Asseguro que não é.


É bem agradável encontrarmos uma loja onde se vendem belas réplicas das cerâmicas que outrora foram desenhadas por aquele que eu considero o maior artista português do século XIX, Rafael Bordalo Pinheiro. Gosto de várias coisas: as cores quentes da parede, um vulto para lá do vidro, a projeção do ângulo, não sei se é o nosso olhar que vai até ao fundo se é esse fundo que caminha para nós. Parecem considerações patetas mas não são, os fotógrafos amadores muitas vezes embevecem-se com estas minudências, e não escondo que gosto muito do que aqui fica.




Farejo tudo quanto é papel e não resisto a entrar, a perguntar, a trocar impressões com quem sabe da poda. Este espaço tem a seu favor uma atmosfera de antiquário, o papel espalha-se de tal modo que apetece pôr a mão em cada livro que encontramos, e há cadeiras para nos sentarmos, folhearmos o dito papel e depois tomar uma decisão criteriosa. Um bom livreiro é sempre bom comunicador, aqui há bons modos genuínos. Havia no passado um jingle radiofónico que terminava: “O cliente sai sempre bem-disposto”. No caso em apreço, o cliente ou o perguntador sai sempre com vontade de voltar.


Havemos de voltar a esta carpintaria. Imagine o leitor que almocei numa tasquinha da cidade, quem nos servia era um parisiense de gema. Comi polvo à lagareiro, numa outra mesa havia um senhor que trocava umas frases com outro conviva. Não é que, ao recomeçar as minhas lides, entrei numa rua ali perto da igreja de S. João Batista e dou com este cliente a afagar a madeira? Sorrimos um para o outro e fiz-lhe perguntas sobre a reparação deste tampo de mesa, no tom mais natural do mundo explicou-me a sequência de operações, ouvi-o atentamente. O que gosto da imagem, e logo a aparto de outras que guardarei para melhor oportunidade é que nela há qualquer coisa que representa o momento da verdade, quando o artífice se entrega à lide e refaz a beleza do móvel deformado. Terá sido por acaso que Jesus passou a infância entre momentos de verdade como este?

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15760: Os nossos seres, saberes e lazeres (141): O ventre de Tomar (5) (Mário Beja Santos)

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