segunda-feira, 21 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15881: Notas de leitura (820): "Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625)", André Donelha e o melhor da nossa literatura de viagens (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
O conhecimento da Guiné (num espaço que podemos tratar como a Grande Senegâmbia) muito deve a viajantes e navegadores e missionários que por ali transitaram.
A obra mais prodigiosa é indiscutivelmente o Tratado de André Álvares de Almada, mas não podemos prescindir ou desgraduar relatos da maior importância como os de Valentim Fernandes, padre Fernão Guerreiro, Duarte Pacheco Pereira, padre Manuel Álvares, Cadamosto, e tantos outros.
Este documento de André Donelha vem numa edição soberba com notas e apêndices de Teixeira da Mota e de P. E. H. Hair e a tradução francesa foi feita por Léon Bourdon.
Trata-se de uma edição de luxo, um acervo de notas de uma importância excecional, com ilustrações e muito bons apêndices.
Quem gosta de literatura de viagens tem aqui um tesouro.

Um abraço do
Mário


Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625): 
André Donelha e o melhor da nossa literatura de viagens

Beja Santos

Avelino Teixeira da Mota, nome cimeiro da historiografia guineense, dirigia o Centro de Estudos de Cartografia Antiga que publicou em 1977 este importante empreendimento cultural: revelar o documento de André Gonelha, peça obrigatória da nossa literatura de viagens entre os séculos XV e XVII. Teixeira da Mota escreve uma introdução primorosa, relata as viagens que Donelha fez a estas diferentes paragens, sobretudo à Serra Leoa. Donelha viajou na Guiné entre 1574 e 1585, aproximadamente pela mesma época que André Álvares de Almada, autor da obra fundamental Tratado Breve dos Rios da Guiné, em 1594.

Debruçando-se sobre as caraterísticas desta “Descrição”, refere Teixeira da Mota os comentários de autores como Jaime Cortesão, Hernâni Cidade e Joaquim Barradas de Carvalho, enfatizando a abundância, riqueza e profundidade destas obras, e cita autores como Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, Padre Francisco Álvares, Padre Fernão Guerreiro entre outros. A exposição de Donelha privilegia, como se disse, a Serra Leoa. Teixeira da Mota comenta: “Que Donelha comece a sua obra pela Serra Leoa é sintomático da importância que ela assume aos seus olhos". Refere a benignidade do clima, insiste na fertilidade da terra, na abundância e variedade dos seus produtos vegetais. Tal como André Álvares de Almada, advoga o povoamento da Serra Leoa pelos portugueses, entendendo que esta poderia vir a tornar-se a terra mais abastada e de maior trato de toda a Etiópia. No que toca à Guiné, aqui entendida como a Senegâmbia Meridional, dá-nos imensas informações sobre o Gâmbia e o Senegal, descreve a fauna e a flora, as madeiras e os frutos, bichos e formigas, e momentos há em que sentimos no seu estilo descritivo uma capacidade de análise comparável a André Álvares de Almada: “O Cabo da Verga entra muito ao mar, é de pequena altura. A par dele estão os Bagas, os quais andam mal vestidos. A terra é baixa e alagadiça. Nela se faz sal cozido ao fogo. O resgate principal são tintas, de que carregam os navios e trazem a São Domingos; também se resgata escravos, arroz, cera, marfim, colas e algum ouro que vem dos Sossos. As armas que usam são a adargas e azagaias. São cobardes, traiçoeiros. Não comem carne humana, mas bebem o vinho no casco da cabeça humana, e as cortam e levam e fazem taças. E se a cabeça é de homem branco ou de preto cristão ou de algum senhor de terras ou de pessoas nobres que matam por suas mãos, as tais taças são mui estimadas, e por festas as mostram”. Estes Bagas viviam perto do rio Nuno, por tanto fora da Guiné atual.

E bem interessante é o que ele escreve sobre o grande império de Mandimansa: “A origem dos Manes, dizem os antigos por tradição de seus avós e o que deles ouviram, é que uma senhora mui principal, agravada do grande imperador da Etiópia Mandimansa, saiu de uma cidade com o exército de seus parentes e vassalos, tão grande e copioso que bastou a conquistar muitas e diversas terras e diversas nações. Esta senhora dizem que se chamava Macarico. E porque a multidão era grande depois que chegou ao mar, que vinha buscar o fim da terra dividiu o exército em três partes. Tinham no marchar ordem com vanguarda e retaguarda, e a força do exército no meio, por cuja causa caminhavam devagar. Com esta ordem chegaram à Mina de S. Jorge e tiveram com os nossos do castelo recontros e escaramuças”. E explica mais adiante que os capitães desta senhora depois de falecida se meteram pelas terras de Serra Leoa, alguns reis e senhores fugiram destas crueldades, meteram-se em navios de portugueses e vieram para o rio de São Domingos, fizeram as suas aldeias ao lado dos tangomaos. Chama-se tangomaos aos portugueses lançados na Guiné.

Deve-se a André Donelha uma boa descrição sobre Farim Cabo, território dos Mandingas. E começa a descida do rio Sanaga (Senegal), aqui se fazia comércio com a ilha de Santiago, comércio que se estendia até à Serra Leoa. E diz o seguinte: “O rio de Sanaga é dos três maiores rios que há na nossa Guiné. É muito largo, alto, todo de água doce; pode-se navegar por ele naus grossas mais de 100 léguas, segundo me disseram pessoas que a esse rio foram”. Estamos pois no rio de grande resgate de ouro, cera, marfim e couros. Escreve igualmente o reino dos Jalofos, estamos claramente entre o rio Gâmbia e a região do Casamansa. Segue-se um dado capital na viagem que fez a São Domingos onde há um rei que se intitula Farim, e o rio de São Domingos (Cacheu?) é apresentado como muito largo, espaçoso e fundo, e comenta da seguinte maneira: “Dizem ser muito fresco e aprazível, e há grande resgate de tudo, pelo que agora em Guiné chamam a esse rio o novo Perú, como tenho ouvido algumas pessoas. Por aqui terá andado um rei Fulo que se chamava Dulo Demba e que se envolveu em escaramuças com os reinos Mandingas da região do rio Senegal. Este rei foi destruindo tudo e avançou até ao reino dos Beafares, em Guinala, que Donelha diz ser o nosso melhor porto antigo do rio Grande e melhor para o tráfico de escravos".

A partir desta descrição Donelha regista o comércio do rio Gâmbia, não esquecendo São Domingos, descreve o reino do Casamansa, temos depois uma detalhada apreciação do reino de Guinala, com o seu porto, e volta a sublinhar que aqui há a melhor escravaria de toda a Guiné, além de se resgatar ouro, cera, marfim e às vezes âmbar. Presença constante no detalhe desta viagem são os tangomaos que como se sabe eram luso-africanos. A edição é aprimorada com um acervo de notas de grande importância e tem em apêndice um documento deveras espantoso intitulado António Velho Tinoco e a sua viagem à Guiné em 1574. Em investigação posterior, Teixeira da Mota analisa este importante relato, Velho Tinoco pretendia pedir a capitania da Serra Leoa, a qual viria a ser concedida, nos começos do século XVII, a Pedro Álvares Pereira. Vale a pena mais tarde voltarmos a velho Tinoco. Quem apreciar literatura de viagens não ficará desiludido com a primorosa Descrição de André Donelha.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15874: Notas de leitura (817): "Seis Irmãos Em África", narrativa cativante à volta de seis irmãos nascidos entre 1936 e 1951 que foram à guerra em Angola, Moçambique e Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Grande BS.

Essa do vinho bebido em África por crânio de cristão, hoje não seria possível, pelo menos mais raro naquelas regiões.

Hoje deve estar a aumentar muito o numero de abstémios e a diminuir muito o numero de cristãos.