quarta-feira, 27 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16024: Os nossos seres, saberes e lazeres (150): A pele de Tomar (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Prossegue a itinerância pelos garbosos exteriores da vetusta Tomar.
É necessário percorrê-la em várias direções, à cata de preciosidades. Consola o que se restaura e bem, magoa o que se degrada e parece inexoravelmente abandonado. Como se dirá no fim desta viagem, houve um atropelo em se passar do exterior para o interior, o viajante foi literalmente seduzido por uma amena cavaqueira dentro de uma barbearia, espaço de serviços, aliás, com imensos pergaminhos para tertúlias e difusão de rumores.
O viajante andava desorientado à procura de beirais de outras eras, ouviu gralhar, entrou, cumprimentou, pediu licença, e registou uma lembrança invulgar, convenhamos que aquele barbeiro é galã de cinema ou de teatro, mais à-vontade não pode haver. Esperem-lhe pela pancada, há muito mais pele para esticar, mais Tomar para vagabundear.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (2)

Beja Santos

Quantas vezes passamos, anos e anos, por aquela rua e subitamente acordamos para um detalhe insuspeitado? Por aqui tenho andado com bastante frequência e só agora aqui me quedei com este lance de escada que é deslumbrante, quem remodelou o edifício explorou magistralmente o contraste entre a pedra e alvenaria, e há este pormenor gracioso de poder congelar a imagem e ficar a supor que ninguém usa aquela escada, é como se não houvesse saída. Aqui se deixa o leitor a interrogativa para esta ilusão da ótica.



A ermida possui uma enorme harmonia, cheira muito a bafio, não se podem esconder as cargas de humidade, é rastejante e capilar. Detenho-me nesta fachada de uma grande sobriedade renascentista, paro muitas vezes diante deste portal, é para mim uma das grandes preciosidades tomarenses, daquelas que podem concorrer com o que de melhor temos pelo país fora. Se outra razão não houvesse, por aqui passo dando hossanas a Santa Iria.


Exatamente deste lugar foram vendidos dezenas e dezenas de postais que a minha avó recebeu em Luanda, Malange, Lucala, Vila Salazar (hoje N’Dalatando). Postais que foram pretexto para esta avó me falar das delícias nabantinas, misturava as filarmónicas com as mulheres a lavar roupa no rio Nabão, abria os olhos e o rosto transfigurava-se quando falava do convento e da charola, não sabia esconder a saudade, por estar entrevada, de não poder voltar a assistir à Festa dos Tabuleiros.


Tomar, de certo modo, está aberta à imprensa mundial que se exprime em inglês, francês e castelhano, já encontrei esta imprensa em três pontos, mas captei esta imagem porque aqui prima o mundo anglófilo, devem andar espalhados pelo concelho, conversei com um casal inglês em S. Simão, estão felizes da vida, são o bilhete turístico ao vivo de que a região tem belezas, tem repouso, tem segurança e não está muito distante da Portela de Sacavém.


Ah, pudesse eu e comprava este belíssimo imóvel, tem toda a estamparia da Arte Deco, até esta publicidade em azulejos, gritante, me impressiona, veio do tempo em que havia mais papelarias/livrarias. Questiono como é que é possível deixar expetante o que é verdadeiramente património, num local histórico. Ainda se irá a tempo para a sua reabilitação, está abandonado mas não está completamente degradado. Este edifício ombreia com o que há de melhor na nossa arquitetura Arte Deco. Por favor, não o deixem degradar mais, deem-lhe uso, nem que seja para um hotel de charme, hoje apresentado como panaceia para todo a edificação que requer investimentos chorudos.



Sempre que posso, venho aqui farejar um livro esgotado, uma pechincha, uma inutilidade que me dá prazer à vista. Por cautela, os vendedores abrigaram-se nas arcadas, a chuva miudinha assim o aconselhava. Há objetos para todos os gostos, felizmente. Mesmo com o tempo sombrio, por aqui andava muita gente à espera da sua hora de sorte. Oxalá que estes mercados se expandam, têm a ver com a recuperação e não com a destruição de bens, são ambiental e socialmente desejáveis.


Andava no casco histórico, à cata de uma varanda muito bela, esquecera o local. É nisto que topei com uma barbearia, não resisti a dar as boas tardes, e fiquei paralisado com a franca e amena cavaqueira ali instalada. Sei muito bem que a imagem ficaria melhor naquelas andanças de interiores a que chamo o ventre de Tomar. Mas que imagem melhor para me despedir até à próxima que ver gente tão bem disposta e um garboso barbeiro, um quase artista de cinema? Então adeus, até ao meu regresso.

(Continua)
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Notas do editor

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